Leandro sai disparado da sala. Volta segundos depois com uma escova de dentes na mão: “É de bambu.” Diogo demora mais tempo entre a ida e a volta. Tem de equilibrar um copo com água nas mãos. Os dois gémeos riem enquanto retomam os lugares, antes de responderem a mais uma pergunta sobre divisões. “Um momento de pausa também os ajuda a aprender”, explica depois Íris Damião, mentora dos irmãos num programa da Fundação Calouste Gulbenkian que está a apoiar alunos a quem a pandemia veio acentuar dificuldades na escola.
Todas as terças-feiras de manhã, Íris Damião ajuda Leandro e Diogo, que estão no 5.º ano, a estudar Matemática – “É o ponto alto da semana deles”, diz a encarregada de educação, Marisa Ferreira. O apoio é dado online, com os dois irmãos a partilharem a mesma câmara e o mesmo ecrã. A sessão desta semana tinha por base um jogo de tabuleiro. Sempre que avançavam uma casa, surgia uma nova pergunta: tabuada, fracções, divisões. A dificuldade vai aumentando à medida que o jogo se desenrola. As dúvidas que surgem são aproveitadas para recuperar os fundamentos de cada uma das matérias.
Pelo meio das perguntas de Matemática surge o desafio “Vamos mexer”. A mentora pede aos alunos para irem buscar determinados objectos ou, por exemplo, o seu brinquedo favorito. O momento de pausa ajuda a aprendizagem, garante. Fazê-los correr pela casa também, uma vez que “aumenta o fluxo de sangue ao cérebro”. Íris Damião, 25 anos, sabe do que fala. Fez investigação em Neurociências na Fundação Champalimaud, em Lisboa, e deu aulas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, depois de ter terminado o mestrado em Engenharia Biomédica e Biofísica na mesma faculdade.
Os 40 mentores do programa GAP, lançado pela Gulbenkian no mês passado, têm um perfil semelhante: são jovens e têm formação avançada em áreas que lhes permitem ser uma ajuda em matérias de Matemática, Português e Inglês. Foram recrutados e formados pela Teach for Portugal, o braço nacional de uma Organização Não Governamental global, que opera em território português há três anos.
O investimento do GAP foi canalizado para Matemática, Português e Inglês por serem vistas como “aprendizagens fundamentais, sem as quais as outras não podem ocorrer”, contextualiza Pedro Cunha, director do programa Gulbenkian Conhecimento. Este projecto foi pensado para ajudar na recuperação das matérias perdidas no ano lectivo passado, devido aos impactos do ensino à distância e à dificuldade que muitos alunos tiveram de acompanhar as aulas, por falta de equipamento informático ou ligação à Internet. Os primeiros mentores chegaram às 41 escolas envolvidas no GAP no início de Janeiro, mas o novo confinamento obrigou a redefinir a intervenção.
Continua a haver problemas de conectividade – cerca de 10% dos 1300 alunos que integram este programa não têm acesso regular à rede –, aos quais se “somam todos os outros estudantes que, apesar de terem equipamentos informáticos ou acesso à Internet, estão com muitas dificuldades em trabalhar autonomamente”, explica Cunha. Portanto, os mentores do GAP não estão apenas a trabalhar as aprendizagens nas três disciplinas “fundamentais”, mas também outras competências “chave” num momento de confinamento e ensino à distância: organização, auto-regulação, bem-estar e motivação.
Informalidade e auto-estima
Por exemplo, para ajudar os alunos a manter uma rotina de estudo a partir de casa, os mentores dão diariamente o “bom dia” aos alunos. É a forma encontrada para garantir que todos estão prontos para as aulas à hora marcada pelos seus professores. A forma como isto é feito varia em função dos contextos de cada escola, podendo passar pela realização de uma curta videochamada ou pelo envio de uma mensagem de voz através de uma aplicação de telemóvel. Mas, porque nem todos os alunos têm acesso à Internet, há até quem recorra a uma chamada telefónica para “despertar” os estudantes. Há ainda 50 alunos que estão a ir às escolas presencialmente, no âmbito deste programa.
Outro momento importante é a “celebração” que cada grupo de alunos partilha com o seu mentor, no final da semana de trabalho. É uma forma de fazer o balanço dos progressos alcançados e também “um espaço de socialização, que tanta falta lhes faz”, aponta o director do programa Gulbenkian Conhecimento.
Íris Damião, mentora de Leandro e Diogo, conhece bem a importância de momentos como este. Independentemente dos défices de aprendizagem com que cada aluno tenha entrado no programa, “o que falta à maioria é auto-estima no estudo”. Por isso, tão determinante como trabalhar conceitos de Matemática como a divisão, que era uma das principais lacunas dos dois gémeos, é fazer com que eles “se sintam motivados e entusiasmados” nas sessões.
Uma das estratégias passa por fazer com que os alunos se sintam à vontade. As sessões online têm “um registo mais informal do que uma aula”, reconhece Marisa Ferreira, encarregada de educação dos dois irmãos. Leandro e Diogo tratam a mentora pelo nome próprio e isso “retira algum do peso” que há na relação com um docente: “A Íris é mais uma amiga que os ajuda do que uma professora.”
Leandro e Diogo estudam na escola Soeiro Pereira Gomes, em Alhandra, Vila Franca de Xira. Os agrupamentos que integram o programa da Fundação Calouste Gulbenkian são aqueles onde há maior proporção de alunos com escalão A da Acção Social Escolar. Depois, coube a cada escola identificar as disciplinas em que necessitavam de maior apoio e os alunos que deviam ser apoiados.
O projecto GAP vai prolongar-se “pelo menos” até ao final do ano lectivo. O trabalho está a ser acompanhado por uma equipa de investigadores da Universidade do Minho, que fará uma avaliação dos impactos nas crianças, não só em termos académicos, mas também na sua capacidade de organização e motivação face ao estudo. “Em função dos resultados, vamos tomar decisões”, antecipa Pedro Cunha.
No caso dos dois gémeos, foram seleccionados por terem tido negativa a Matemática no 1.º período deste ano lectivo. Além disso, os professores entenderam que as competências transversais que o projecto pretende transmitir seriam benéficas para melhorar a atenção dos alunos nas aulas.
Muitas destas lacunas vêm do ano passado, quando estavam no 4.º ano. No primeiro confinamento, o ensino à distância de Leandro e Diogo centrou-se quase exclusivamente nas aulas da Telescola, durante as manhãs. “À tarde, às vezes tinham algumas aulas” com a professora titular, conta a encarregada de educação, Marisa Ferreira, que trabalha como educadora de infância. Esse modelo de acompanhamento “não foi, de todo, suficiente”. Os gémeos “não estavam preparados”. “Não ao ponto de reprovar o ano, mas faltavam bases.”
Boa parte do trabalho que Íris Damião tem feito com os dois alunos centra-se, precisamente, na recuperação de conceitos de anos anteriores e que são essenciais para os conteúdos que estão a aprender agora. “Isso permite-lhes ter uma outra atenção na matéria”, confia a mentora.
Apoio presencial
Na sala de Helena Castro há cinco alunos do 1.º ciclo. Quase todas as crianças estão inseridas em turmas do 3.º ano, mas, no que toca ao Português, estão “ao nível do 1.º ano”, garante a mentora, que vai ao Centro Escolar Mondim Oeste, em Mondim de Basto, quatro vezes por semana para sessões presenciais.
Dos 1300 alunos envolvidos no programa GAP, há 50 que estão a receber apoio de forma presencial, numa das 700 escolas de acolhimento elencadas pelo Ministério da Educação para receber os filhos dos trabalhadores essenciais e que também estão a receber alunos identificados pelas escolas por não terem condições para acompanhar as aulas à distância.
Os cinco alunos com quem trabalha quase todos os dias “já tinham dificuldades e problemas de aprendizagens que vinham de trás”, prossegue Helena Castro, 24 anos, licenciada em Ensino Básico, prestes a concluir o mestrado em Ensino na Universidade do Minho. “Com a passagem ao online no ano passado, ficaram pior.”
A mentora do programa GAP põe ênfase na leitura no trabalho que realiza com estes alunos. Cada sessão começa com uma história. Desta vez foi A Última Paragem, um livro de Matt de la Peña que integra o Plano Nacional de Leitura. Quando regressa do intervalo, o grupo volta a conversar sobre a obra, antes de passar ao trabalho individualizado que levará Helena Castro de secretária em secretária.
No centro da sala, Lara está há largos minutos com o braço no ar. Há mais colegas a exigir atenção e, às vezes, é preciso esperar algum tempo para poder colocar alguma dúvida. “Já li”, atira. “Queres ler para mim?”, pergunta Helena Castro. Puxa uma cadeira de uma das secretárias ao seu lado direito e senta-se ao pé da aluna.
Lara lê em voz média, sempre com muitas dificuldades. As sílabas saem uma por uma, obrigando a mentora a repetir algumas das palavras completas, para ajudar a compreensão. Ainda assim, no final da sessão, a aluna não hesita em dizer “gosto muito de ler”. A mentora parece satisfeita: “Mesmo com dificuldades, se gostam do que fazem, fazem-no com agrado.” Quando isso acontece, os bons resultados “são uma questão de tempo”.
Fonte: Público
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