Estudo do Programa de promoção da Literacia revela que as crianças estão a dominar menos o conhecimento das letras. Pais e psicólogos também estão preocupados com a falta de socialização.
As crianças de 5 anos que estiveram em confinamento no ano passado desenvolveram menos de 50% das competências de literacia do que as submetidas às mesmas provas no ano letivo anterior, garante o coordenador do Programa Integrado de Promoção da Literacia, investigador do Centro de Investigação e Estudos da Criança da Universidade do Minho.
As conclusões do estudo que abrangeu mais de mil crianças de 5 e 6 anos, de três agrupamentos de escolas da Área Metropolitana do Porto, não deixam margem para dúvidas. Em fevereiro de 2019, a média de conhecimento era de 24,3 letras escritas de quatro formas diferentes (maiúsculas, minúsculas, impressa e manuscrita) e, em setembro de 2020, era de pouco mais de sete letras, revela Miguel Borges.
"O ensino online está a ter uma repercussão negativa tremenda no sucesso educativo das crianças entre os 4 e os 8 anos e vai acentuar as desigualdades", assegura o investigador, que considera um erro transpor as aulas presenciais para as aulas à distância. "As crianças não têm capacidade de concentração, porque é mais cansativo e a interação mais fria e mais distante, o que gera tédio e frustração", garante. Apesar disso, diz que há bons exemplos e que os professores têm dado o seu melhor, mesmo sem formação.
Carga horária varia
O número de horas online (aulas síncronas) varia de escola para escola. No caso de Abigail Cabral, que estuda na Maia, tem três tempos letivos de manhã e um ao final da tarde. Já Rúben Silva, que estuda em Leiria, tem apenas um tempo letivo de manhã e outro de tarde.
Tanto um como outro têm ainda de desenvolver outras atividades entre os blocos de aulas (sessões assíncronas) e "provar" que as realizaram através de uma tarefa concreta.
Pai de Abigail, Luís Cabral conta que a filha de 7 anos se "adaptou muito bem às aulas à distância e é muito concentrada", apesar de antes não ter contacto com ecrãs, mas, por vezes, fica "um bocadinho enfadada".
Aproveita, por isso, os dois intervalos de 15 minutos entre as aulas da manhã para brincar com os irmãos de 4 e 5 anos. Outras vezes, fica a conversar online com os colegas de turma, de quem diz sentir saudades.
Luís Cabral explica que Abigail manifesta frustração por ter menos possibilidades de interagir do que nas aulas presenciais. "Sente bastante falta do professor, de mostrar que sabe e da sua aprovação", justifica.
Após duas semanas de quarentena e mais de seis de confinamento, teme que as aprendizagens da filha sejam afetadas, mas o que o preocupa mais é o impacto na socialização. "O entusiasmo antes era maior".
Saudades de jogar à bola
Do que Rúben, de 6 anos, sente mais falta na escola é de jogar à bola. Filho de um casal de brasileiros a residir em Leiria, esteve cinco semanas de quarentena, desde o início do ano letivo, porque dois colegas, os pais e uma das irmãs ficaram infetados com covid-19. E agora está em confinamento desde 15 de janeiro.
Além disso, a mãe, Rejane Silva, conta que como só têm um computador em casa, ao início, era partilhado por Rúben e pela irmã, que anda no 8.º º ano. "Num dia, o meu filho assistia à aula da manhã e a minha filha às da tarde. No dia seguinte, trocavam".
Como a situação se tornou insustentável, Rejane pediu a Carolina Cravo, coordenadora do programa Redes na Quinta, para arranjar uma vaga para Rúben poder assistir a todas as aulas. E assim tem sido desde o final de outubro. "Comparando com as minhas filhas, que tinham muitas dificuldades, ele parece-me muito inteligente e desenrolado. Faz os exercícios sozinhos e sabe ler. Só se baralha um pouco", afirma.
A coordenadora do Redes na Quinta - projeto de intervenção social no multicultural Bairro da Quinta do Alçada que apoia 15 crianças e jovens sem computador ou internet em casa - confirma que Rúben é "muito interessado e empenhado em aprender". Contudo, diz que sente falta da socialização e de rotinas. "É uma falácia dizerem que as famílias podem substituir o apoio fundamental dos professores e acharem que todas as crianças conseguem realizar trabalho autónomo em casa".
Efeito tóxico com os pais
"As tarefas da escola não são da incumbência dos pais", defende o psicólogo do Serviço de Pediatria do Hospital de Santo André, em Leiria, Paulo José Costa. "O facto de as crianças não terem o papel moderador de outros adultos provoca um efeito tóxico na relação com os pais, que pode gerar descontrolo, frustração e raiva", assegura. Defende ainda a importância de os meninos brincarem na rua uns com os outros, para libertarem a tensão, e de os parques infantis estarem abertos. "O contágio [vírus] faz-se por via direta oral", lembra.
Paulo José Costa destaca a importância da escola para adquirir rotinas, competências sociais, relacionais e de autonomia. "Do ponto de vista relacional, social e comportamental, o impacto do confinamento é muito severo, porque as crianças não estão a aprender a lidar com a frustração, nem a cumprir regras de respeito pelos outros nas brincadeiras, competências fundamentais para a vida", alerta. Preocupa-o ainda o facto de não ser possível identificar, de forma precoce, as necessidades de apoio individualizado.
Professora do 1.º Ciclo numa escola da Grande Lisboa, Cláudia Fandango utiliza jogos nas aulas online, divididas em dois blocos de 45 minutos por dia, para captar a atenção dos alunos. Esta semana, trabalharam os sólidos geométricos, pelo que promoveu uma caça ao cilindro em casa dos alunos.
Utiliza ainda o jogo da roleta para sortear uma palavra, a partir da qual as crianças desenvolvem uma atividade relacionada com a leitura, em que todos participam. À tarde, promove atividades dramáticas ou musicais porque os alunos já não conseguem estar sentados. "A pandemia vai ter alguns efeitos negativos, mas acho que se vai refletir mais na socialização", acredita.
Fonte: JN
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