A escola é, desde sempre, o palco da escrita, a entrada para o mundo da cultura escrita, do conhecimento. De que forma a escola foi então recalcando as suas origens, negando ou ocultando as práticas da escrita? Por que razão a escola não gasta tempo a trabalhar com os seus alunos na produção e revisão de textos escritos? Por que razão há pouca produção escrita e não se cultiva a escrita nas escolas? De onde virá esta espécie de traição da escola, por que se privam os alunos do prazer de escrever? O Conselho Nacional de Educação (CNE) debateu estes pontos no webinar “O que a escola não diz: da escrita negada ao prazer de escrever”.
Inácia Santana, professora do 1.º Ciclo do Ensino Básico, conselheira do CNE, falou das suas experiências, das práticas de produção de escrita no 1.º Ciclo, da interpretação de excertos, da construção de enunciados, da estruturação de textos. Vários autores de estudos realizados a partir dos anos 70 do século passado reuniram recomendações e avisaram que “é necessário inscrever a aprendizagem da escrita na escola em contextos comunicativos, criando destinatários reais para os textos em sistemas pedagógicos cooperativos”. O que promove o desenvolvimento da própria escrita e a compreensão da leitura.
A realidade mostra rotinas instituídas, redações com tema igual para todos os alunos, o professor como único destinatário do que se escreve. É necessário cultivar o prazer de escrever e isso implica, revela Inácia Santana, “a criação de condições na escola para a produção de fluxos de escrita pelos alunos sem o policiamento que habitualmente se faz daquilo que as crianças escrevem para que não se vejam os seus erros”.
Há caminhos experimentados para escrever pelo prazer de aprender e pelo prazer de escrever, como a revisão de textos em cooperação, cadernos de escrita livre para que os alunos possam escrever quando querem, como querem, com quem querem. Escrever para a turma, por exemplo, a turma como audiência, colegas a interpelar os autores. São dinâmicas que exigem espaço, tempo, e liberdade de escrita.
Há vários caminhos possíveis. Um momento semanal dedicado à escrita, cada aluno oferece um texto, os colegas fazem perguntas, apresentam propostas, acrescentam elementos, pormenores. Desta forma, expande-se e aperfeiçoa-se o texto através da sua revisão. Apontar palavras repetidas, detetar falta de pontuação, trocar ou acrescentar elementos, verificar se o contexto é adequado, sugerir propostas de reescrita, mudar ou não o título, usar sinónimos, reduzir elementos redundantes. Tudo é possível.
Além da turma, segundo Inácia Santana, é importante criar outros canais de divulgação do que se escreve, como um jornal da escola, correspondência interescolar com duas turmas a corresponderem-se, cartas coletivas. “Como uma necessidade e não como uma formalidade”, repara. No tempo de diferenciação pedagógica, a troca de cartas individuais é uma possibilidade.
“Se as crianças têm voz na escola, se lhes é permitido ser autores e tomarem iniciativas, se lhes é dado espaço de comunicação, os problemas de interação com a escrita vão melhorar”, sustenta. Escrever para aprender, escrever para comunicar o que se aprende, para tirar apontamentos, escrever para ajudar a pensar, escrever por prazer, escrever para aprender palavras novas, escrever sobre sentimentos para libertar pensamentos, histórias e a imaginação, para recordar para sempre. Construir guiões, organizar, discutir, ordenar acontecimentos, verificar se as ideias estão bem explicadas e relacionadas com o mesmo assunto, ver os erros como motores de reflexão.
“Reescrever para aprender a escrever”
Marina Lopes, professora de Português do 3.º Ciclo, conselheira do CNE, participou no webinar e avisou que o domínio da escrita traz desafios. A escrita, sublinha, é um “poderoso dispositivo”, é necessário continuar a escrever para aprender a escrever, transformar a sala de aula num espaço de comunicação. “O professor precisa de acompanhar a escrita dos seus alunos”. Ao trabalhar sobre a escrita, propondo alterações aos textos, os alunos têm consciência dos erros de escrita, mais do que ter um professor a impor tarefas e a corrigir redações. “É necessário escrever e reescrever para aprender a escrever”, sustenta.
Tudo é uma possibilidade. Criar fluxos de escrita através de cadernos de escrita e de percursos de leitura. Escrever para construir produtos culturais sustentados por uma cultura de projeto e orientados por circuitos de comunicação. Criar momentos de revisão de textos como motor do desenvolvimento e aprendizagem do discurso escrito. “Se queremos escutar o que os alunos nos têm para dizer temos, então, de encontrar tempo e espaço para a inscrição de desejos, vontades, interesses no próprio currículo”, refere.
Marina Lopes partilha experiências dos alunos com a escrita. Há estudantes que revelam o desejo de escrever histórias de amor com mil reviravoltas, histórias com personagens diferentes de todas, textos poéticos, momentos mais pessoais do quotidiano. Tudo pode acontecer num caderno de escrita. Escrever a sós ou a pares. É importante alimentar o diálogo, os comentários, as apreciações. “É a escrita que organiza os nossos gestos quando antecipamos o que fazer e o que pretendemos executar”.
“Quando se escreve estamos sempre no domínio da resolução de problemas”, afirma Marina Lopes. Trinta alunos numa sala, o apoio do professor ou da professora é essencial, reveem-se textos. Pede-se fluência e clareza, leem-se rascunhos, revê-se, edita-se, sai-se da área do controlo e da classificação. Partilham-se textos, partilham-se ideias, trocam-se pontos de vista, aprendem-se coisas novas. E de tudo isso pode nascer uma revista da turma com críticas de livros e discos, entrevistas, notícias recentes. E os professores podem integrar comunidades e oficinas de escrita para absorver mais ideias, mais conceitos, mais experiências.
“Como fazer permanecer o adorar escrever e livrarmo-nos da aparência do não desejo através de uma estrutura de cooperação?”, questiona Marina Lopes. A escrita pode desenvolver a leitura, é um processo de reciprocidade, é uma escrita apoiada pelas vozes uns dos outros.
Viajar num texto, circular entre narrativas
Jorge Ramos do Ó, investigador e professor de História da Educação, do Instituto da Educação da Universidade de Lisboa, também participou na iniciativa do CNE e olhou para o passado para resgatar experiências alternativas. Por um lado, o ensinar tudo a todos ao mesmo tempo, uma escola como uma maquinaria de produção, um ensino de cópia, da leitura que domina a escrita, livros intactos, por abrir, por ler. Do outro, a lógica criativa, a escrita que conduz a leitura, livros à disposição dos alunos, a escrita como fim e princípio das aprendizagens.
A subalternização da escrita ligada aos saberes enciclopédicos que destroem a relação com a escrita, manuais e sebentas que impedem a viagem no interior de um texto, de circular entre narrativas, não ajudam, não mostram como um livro deve ser lido, pensado, dito. “A escrita nasce na Grécia sob o signo da magia, ajuda-nos não apenas a recordar o passado, mas também nos convida a ver o pensamento, e o pensado e o dito de uma maneira diferente”, observa Jorge Ramos do Ó. E acrescenta: “As novas tecnologias são um recurso muito importante para a revisão textual, na medida em que permite apagar e circular no texto”.
Há mais vida para além da pandemia e do ensino à distância, conversar sobre a escrita e o prazer de escrever é importante. Para Maria Emília Brederode dos Santos, presidente do CNE, faz sentido abordar e debater o assunto. “Parece que, neste momento, se descobriram as desigualdades sociais, económicas, territoriais, desigualdades que obviamente já existiam. A escola tem tido um papel que é simultaneamente reprodutor dessas desigualdades e também, mais ou menos, conforme as escolas, um papel emancipatório em relação a essas desigualdades”, adianta. A escola tem outros papéis. Em seu entender, não pode apenas exigir o domínio da escrita através da avaliação, dos testes, dos exames, tem também de proporcionar o ensino da escrita.
Fonte: Educare
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