terça-feira, 7 de maio de 2019

Um informador da “PIDE”


O historiador Paulo Marques da Silva (PMS) editou recentemente a obra A PIDE e os seus informadores. O caso de Inácio, sob a chancela da Palimage. Trata-se de um estudo alicerçado num minucioso trabalho de investigação, em especial, das fontes primárias existentes nos Arquivos. Um facto que merece ser enaltecido, na medida em que este esforço vai rareando, mesmo entre estudos académicos, mas também porque o investigador em causa, PMS, residente em Condeixa-a-Nova (distrito de Coimbra), desempenha uma actividade profissional desligada da historiografia e paga do seu próprio bolso as avultadas despesas inerentes ao processo de investigação em arquivos distantes, como sejam o Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional, ambos localizados em Lisboa.  
A obra em causa integra uma nota de apresentação do consagrado historiador da Época Contemporânea Luís Reis Torgal, possui cerca de 350 páginas e encontra-se estruturada em dez parte: I – “A PIDE e os informadores”; II – “O informador Inácio”; III – “Inácio e a Oposição ao Regime em Coimbra”; IV – “Inácio e as informações sobre militares”; V – “Inácio na Universidade”; VI – “Inácio pela região de Coimbra e pelo país”; VII – “Inácio nos espaços de actuação da Oposição”; VIII – “Inácio e os tempos da Oposição”; IX – “Inácio e as iniciativas de propaganda e de cultura da Oposição”; X – “Inácio (ele próprio) e os outros”. Já em anexo, é apresentado um breve apêndice documental, seguido de um sempre útil índice onomástico.
O estudo que inspira o presente artigo desenrola-se em torno de um prolífico informador da polícia política, que actuava, fundamentalmente, na região centro (em especial, Coimbra) e assinava com o pseudónimo “Inácio”. Este zeloso funcionário dos Caminhos-de-Ferro enviou informações à polícia política entre 1935 e 1971, denunciando, segundo PMS, mais de duzentas pessoas, entre as quais se contam nomes como Miguel Torga, Fernando Namora, Fernando Valle, Alberto Vilaça e Tomás da Fonseca (PMS – ob. cit., 2019, pp. 46-48). As informações eram prestadas através de relatórios escritos, mas também via telefónica ou talvez até mesmo através do contacto directo e representavam um rendimento extra para “Inácio”, cujo obsessivo trabalho de vigilância parecia ser apreciado e valorizado pelos funcionários da polícia política, em Coimbra. Tal como teve oportunidade de recordar Irene Pimentel (A História da PIDE, 1.ª edição, 2007, pp. 312-337), é possível constatar que as denúncias enviadas à “PIDE” não radicavam apenas em motivos políticos, mas, por vezes, decorriam também de rivalidades, invejas, questiúnculas pessoais e sede de vingança, o que, de certo modo, não pode deixar de fazer-nos recordar o que sucedeu em Portugal durante o longo período em que a Inquisição se manteve em funcionamento.
Dos relatórios elaborados por “Inácio” sobressai quase sempre o ataque pessoal do denunciante em relação ao visado e o – mais ou menos directo – apelo para que os agentes policiais intensificassem a vigilância e a repressão. E destas informações, não o esqueçamos, dependia muitas vezes a decisão sobre a concessão (ou não) de empregos públicos, de bolsas ou passaportes, para já não falar na própria demissão da Função Pública. Citemos apenas três exemplos. 
Num relatório datado de 31 de Agosto de 1966, “Inácio” tecia as seguintes considerações a respeito de Joaquim Cameira Calado: “comunista e bêbedo, sem qualquer espécie de vergonha”. Ainda nesse documento, agora a respeito de António Rodrigues Novo concluía tratar-se de um “simpatizante avançado, género ordinário e sem vergonha”. E sobre Maria de Lourdes Braga Temido, num relatório com a data de 16 de Abril de 1948, afirmava: “Possui carro que guia (o marido vai ao lado como lacaio e com atitude de anjinho pois nada percebe de automóveis)” (PMS – ob. cit., 2019, ps. 225, 226 e 279).
“Inácio” teria sido um informador especial, na medida em que não se limitava a desempenhar as funções habituais do delator. Tratava-se de um “homem que incorporava a ideologia e os valores do regime, situado até na sua ala mais conservadora”, que, na sua ânsia de garantir a ordem, ousava tecer algumas sugestões e críticas à actuação das autoridades (PMS – ob. cit., 2019, p. 267) e chegou mesmo a receber/coligir informações disponibilizadas por outros informadores. Desempenhou, por conseguinte, um importante papel ao nível da referenciação e da vigilância dos principais elementos da oposição em Coimbra, com especial enfoque no meio universitário.
            Compreender os motivos que teriam permitido que a identidade de “Inácio” não fosse revelada durante o longo período em que se manteve activo (1935-1971), ainda para mais numa cidade pequena como Coimbra, não é tarefa fácil. Poderia ser um “excelente actor”, como PMS sugere (p. 45), mas também é provável que o delator em causa não fosse tão íntimo das pessoas que denunciava, ao contrário do que pretendeu fazer crer, talvez até para justificar junto da polícia política o seu trabalho/remuneração. O que também nos ajudaria a compreender a inequívoca tendência daquele para exagerar cenários comunistas ou desferir violentos ataques pessoais aos visados nos seus relatórios/denúncias. 
            Face ao exposto, importa concluir que estamos perante um estudo meritório, que é redigido num estilo claro e fluido e atinge o seu auge quando a identidade do misterioso “Inácio” é revelada. Até pelo aturado e demorado trabalho de investigação subjacente, teria, contudo, sido importante proceder a um trabalho de depuração do texto, quer ao nível da virgulação, da acentuação, da ortografia e de pequenas gralhas. Outrossim, teria sido interessante desenvolver os dados biográficos a respeito de “Inácio”, de modo a que o leitor compreendesse melhor o homem e as suas circunstâncias. Essa opção, em articulação com um maior esforço de síntese e selecção de apenas alguns relatórios considerados mais significativos, enriqueceria, segundo penso, ainda mais a obra. Do ponto de vista metodológico, faltou introduzir a fundamental lista de siglas utilizadas, de modo a facilitar a tarefa do leitor. 
O legado de Abril de 1974 passa, sobretudo, pelo permanente desafio ao pensamento individual, para o qual se revela essencial, segundo penso, o contacto com os livros com inequívoca qualidade literária e científica. A obra do historiador PMS ajuda-nos a compreender um pouco melhor a dimensão do legado que herdámos de Abril, mas também a importância determinante que os informadores tiveram para a própria sobrevivência do Estado Novo, ao longo de mais de quatro décadas (1933-
-1974).
Comemorar Abril também deve passar por ler, partilhar e discutir livros como aquele que PMS nos deixou. Esta também é a minha forma de agradecer ao autor o seu meritório esforço para continuar a construir História, num país onde, nas mais variadas áreas da sociedade, o espectáculo do entretenimento se sobrepõe cada vez mais ao conhecimento e à reflexão.

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

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