O
historiador Paulo Marques da Silva (PMS) editou recentemente a obra A PIDE e os seus informadores. O caso de
Inácio, sob a chancela da Palimage. Trata-se de um estudo alicerçado num
minucioso trabalho de investigação, em especial, das fontes primárias
existentes nos Arquivos. Um facto que merece ser enaltecido, na medida em que
este esforço vai rareando, mesmo entre estudos académicos, mas também porque o
investigador em causa, PMS, residente em Condeixa-a-Nova (distrito de Coimbra),
desempenha uma actividade profissional desligada da historiografia e paga do
seu próprio bolso as avultadas despesas inerentes ao processo de investigação
em arquivos distantes, como sejam o Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre
do Tombo e a Biblioteca Nacional, ambos localizados em Lisboa.
A
obra em causa integra uma nota de apresentação do consagrado historiador da
Época Contemporânea Luís Reis Torgal, possui cerca de 350 páginas e encontra-se
estruturada em dez parte: I – “A PIDE e os informadores”; II – “O informador Inácio”; III – “Inácio e a Oposição ao Regime em Coimbra”; IV – “Inácio e as informações sobre
militares”; V – “Inácio na
Universidade”; VI – “Inácio pela
região de Coimbra e pelo país”; VII – “Inácio
nos espaços de actuação da Oposição”; VIII – “Inácio e os tempos da Oposição”; IX – “Inácio e as iniciativas de propaganda e de cultura da Oposição”; X
– “Inácio (ele próprio) e os outros”.
Já em anexo, é apresentado um breve apêndice documental, seguido de um sempre
útil índice onomástico.
O
estudo que inspira o presente artigo desenrola-se em torno de um prolífico informador
da polícia política, que actuava, fundamentalmente, na região centro (em
especial, Coimbra) e assinava com o pseudónimo “Inácio”. Este zeloso
funcionário dos Caminhos-de-Ferro enviou informações à polícia política entre
1935 e 1971, denunciando, segundo PMS, mais de duzentas pessoas, entre as quais
se contam nomes como Miguel Torga, Fernando Namora, Fernando Valle, Alberto
Vilaça e Tomás da Fonseca (PMS – ob.
cit., 2019, pp. 46-48). As informações eram prestadas através de relatórios
escritos, mas também via telefónica ou talvez até mesmo através do contacto
directo e representavam um rendimento extra para “Inácio”, cujo obsessivo
trabalho de vigilância parecia ser apreciado e valorizado pelos funcionários da
polícia política, em Coimbra. Tal como teve oportunidade de recordar Irene
Pimentel (A História da PIDE, 1.ª
edição, 2007, pp. 312-337), é possível constatar que as denúncias enviadas à
“PIDE” não radicavam apenas em motivos políticos, mas, por vezes, decorriam
também de rivalidades, invejas, questiúnculas pessoais e sede de vingança, o
que, de certo modo, não pode deixar de fazer-nos recordar o que sucedeu em
Portugal durante o longo período em que a Inquisição se manteve em
funcionamento.
Dos
relatórios elaborados por “Inácio” sobressai quase sempre o ataque pessoal do
denunciante em relação ao visado e o – mais ou menos directo – apelo para que
os agentes policiais intensificassem a vigilância e a repressão. E destas
informações, não o esqueçamos, dependia muitas vezes a decisão sobre a
concessão (ou não) de empregos públicos, de bolsas ou passaportes, para já não
falar na própria demissão da Função Pública. Citemos apenas três exemplos.
Num
relatório datado de 31 de Agosto de 1966, “Inácio” tecia as seguintes
considerações a respeito de Joaquim Cameira Calado: “comunista e bêbedo, sem
qualquer espécie de vergonha”. Ainda nesse documento, agora a respeito de
António Rodrigues Novo concluía tratar-se de um “simpatizante avançado, género
ordinário e sem vergonha”. E sobre Maria de Lourdes Braga Temido, num relatório
com a data de 16 de Abril de 1948, afirmava: “Possui carro que guia (o marido
vai ao lado como lacaio e com atitude de anjinho pois nada percebe de automóveis)”
(PMS – ob. cit., 2019, ps. 225, 226 e
279).
“Inácio”
teria sido um informador especial, na medida em que não se limitava a
desempenhar as funções habituais do delator. Tratava-se de um “homem que
incorporava a ideologia e os valores do regime, situado até na sua ala mais
conservadora”, que, na sua ânsia de garantir a ordem, ousava tecer algumas
sugestões e críticas à actuação das autoridades (PMS – ob. cit., 2019, p. 267) e chegou mesmo a receber/coligir
informações disponibilizadas por outros informadores. Desempenhou, por
conseguinte, um importante papel ao nível da referenciação e da vigilância dos
principais elementos da oposição em Coimbra, com especial enfoque no meio
universitário.
Compreender os motivos que teriam
permitido que a identidade de “Inácio” não fosse revelada durante o longo
período em que se manteve activo (1935-1971), ainda para mais numa cidade
pequena como Coimbra, não é tarefa fácil. Poderia ser um “excelente actor”,
como PMS sugere (p. 45), mas também é provável que o delator em causa não fosse
tão íntimo das pessoas que denunciava, ao contrário do que pretendeu fazer
crer, talvez até para justificar junto da polícia política o seu
trabalho/remuneração. O que também nos ajudaria a compreender a inequívoca
tendência daquele para exagerar cenários comunistas ou desferir violentos
ataques pessoais aos visados nos seus relatórios/denúncias.
Face ao exposto, importa concluir
que estamos perante um estudo meritório, que é redigido num estilo claro e
fluido e atinge o seu auge quando a identidade do misterioso “Inácio” é
revelada. Até pelo aturado e demorado trabalho de investigação subjacente,
teria, contudo, sido importante proceder a um trabalho de depuração do texto,
quer ao nível da virgulação, da acentuação, da ortografia e de pequenas gralhas.
Outrossim, teria sido interessante desenvolver os dados biográficos a respeito
de “Inácio”, de modo a que o leitor compreendesse melhor o homem e as suas
circunstâncias. Essa opção, em articulação com um maior esforço de síntese e selecção
de apenas alguns relatórios considerados mais significativos, enriqueceria,
segundo penso, ainda mais a obra. Do ponto de vista metodológico, faltou
introduzir a fundamental lista de siglas utilizadas, de modo a facilitar a
tarefa do leitor.
O
legado de Abril de 1974 passa, sobretudo, pelo permanente desafio ao pensamento
individual, para o qual se revela essencial, segundo penso, o contacto com os
livros com inequívoca qualidade literária e científica. A obra do historiador
PMS ajuda-nos a compreender um pouco melhor a dimensão do legado que herdámos
de Abril, mas também a importância determinante que os informadores tiveram
para a própria sobrevivência do Estado Novo, ao longo de mais de quatro décadas
(1933-
-1974).
-1974).
Comemorar
Abril também deve passar por ler, partilhar e discutir livros como aquele que
PMS nos deixou. Esta também é a minha forma de agradecer ao autor o seu
meritório esforço para continuar a construir História, num país onde, nas mais
variadas áreas da sociedade, o espectáculo do entretenimento se sobrepõe cada
vez mais ao conhecimento e à reflexão.
Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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