Começa o regato
onde acaba o caminho.
O olhar não para.
A Declaração de Salamanca proclamada pela UNESCO em 10
de Junho de 1994 na cidade de Salamanca constitui um daqueles marcos
indispensáveis para compreender o desenvolvimento da Educação Inclusiva ao
nível internacional e nacional. Tal como todos os grandes marcos que assinalaram
mudanças substanciais na forma como se entende a vida
das sociedades e das pessoas, a Declaração de Salamanca não é
um documento de “geração espontânea”, produzida a partir de
nada, num arroubo intelectual de alguns “bem pensantes”. Salamanca é antes de
tudo o culminar de um caminho que foi começado a trilhar muitos anos antes (por
exemplo na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 onde se
afirma o direito à educação para todos e que este direito deve promover a “fraternidade
entre os povos”). Não é possível entender a genealogia de
Salamanca sem referir a Declaração Mundial de Educação para Todos
feita 3 anos antes em Jomtien na Tailândia. Vale a pena retomar um
dos parágrafos da Declaração de Jomtien: “cada
pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar
as oportunidades educativas voltadas para resolver as suas necessidades
básicas de aprendizagem. Estas necessidades compreendem tanto os
instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura, escrita, a expressão
oral, o cálculo e a resolução de problemas), quanto os conteúdos
básicos de aprendizagem como conhecimentos, habilidades, valores e as
atitudes necessárias para que os seres
humanos possam sobreviver e desenvolver plenamente as suas
potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente no
desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões
fundamentadas e continuar aprendendo”.
A Declaração de Salamanca reafirma o que tinha sido
proclamado em Jomtien mas leva esta reflexão mais longe ao proclamar
que “as escolas regulares, seguindo esta orientação inclusiva,
constituem os meios capazes para combater as atitudes discriminatórias, criando
comunidades abertas e solidárias, construindo uma sociedade inclusiva e
atingindo a educação para todos”.
Salamanca teve um grande impacto em Portugal antes de
mais e certamente por Portugal estar comprometido com o
desenvolvimento de políticas consistentes de “integração educativa”. Em
1994 muitas escolas portuguesas eram já consideradas os “meios capazes”
para educar alunos com condições de deficiência e, assim, a
Declaração deparou-se com um ambiente recetivo aos seus princípios. Esta
recetividade pode aquilatar-se por Portugal se encontrar no conjunto dos
95 países e organizações que foram de imediato signatários da Declaração. Três
anos mais tarde o Despacho Conjunto 105/97 preconizava um conjunto de
modificações (surpreendentemente atuais em 2019…) sobre a educação de
alunos com necessidades educativas especiais. Salamanca tornou-se
pois uma referência incontornável na inspiração de políticas educativas,
de investigação e trabalhos académicos e os princípios enunciados encontraram
terreno poroso e fértil nos valores e nas práticas educacionais.
Agora que se assinalam as “bodas de prata” da
Declaração se Salamanca é uma boa altura para olhar o caminho que desde aí se
fez até aos dias de hoje. Centraria esta reflexão em três eixos:
conceptual, organizacional e de impacto no sistema educativo:
Na dimensão conceptual convém assinalar como o
conceito de inclusão na educação surgiu e evoluiu em Educação. Salamanca
representou o grande avanço conceptual de passar de uma escola onde o aluno se
integrava (isto é, se moldava), para um conceito de inclusão, isto é, uma
escola que não fica à espera que o aluno se molde, mas que vai
ao seu encontro moldando-se a ele. Esta formulação alimenta
muitos mal-entendidos sobretudo de quem quer entender mal…
diz-se por vezes que se a escola se moldar ao aluno não lhe poderá ensinar
nada porque vai estar a apresentar aquilo que ele já é. Não é
isso que se entende por inclusão. Inclusão é procurar encontrar o aluno onde
ele está (com as suas motivações, atitudes, formas de aprender, interesses, …)
para o levar mais longe. A inclusão é uma perspetiva de respeito
pelo aluno, mas simultaneamente de inconformismo com o que ele é
e sabe. O conceito de Inclusão em Salamanca é sobretudo um conceito de inclusão
de alunos com necessidades especiais. É este ainda o conceito prevalente em
Portugal no dec-lei 3/2008. Na presente
legislação (54/2018) entende-se Inclusão como um valor transversal a
toda a escola que se propõe a educar todos os seus alunos a partir das
suas diferenças sejam elas de género, de etnia, de deficiência de
processo de aprendizagem.
A segunda dimensão – a dimensão organizativa –
centra-se na forma como a escola dispõe dos seus recursos para que
possa ser uma estrutura inclusiva, isto é, que não aceite ou promova
a exclusão de nenhum aluno. Aqui o caminho andado desde Salamanca é também bem
visível. Em 1994 tínhamos equipas de professores itinerantes, isto
é, equipas que desenvolviam ações sobre um conjunto de
escolas que “visitavam” tentando nestas visitas, que eram
frequentemente consideradas raras e fugazes, contribuir o melhor que podiam
para que as escolas encontrassem respostas e possibilidades de
responder à educação de alunos com deficiência. Hoje a situação é bem
diferente. Temos um número bem mais elevado de professores de Educação
Especial, com melhor formação do que os colegas que intervinham em 1994
(não esquecer que os que eram formados no Instituto António Aurélio da Costa
Ferreira e nas ESE de Lisboa e Porto eram bem
minoritários…) e, sobretudo, professores que desde 2006 têm um
quadro de recrutamento e são elementos fixos de um dado agrupamento. Esta
situação dos PEE que, sem dúvida poderá ser melhorada tanto
em termos de formação como em termos quantitativos, constitui um
forte alicerce do desenvolvimento de políticas inclusivas e que é
apreciada por países que estão num processo de aprofundamento das
suas políticas inclusivas.
Por fim a dimensão da Inclusão no contexto do nosso
sistema educativo. Portugal é dos países do mundo em que mais alunos com
condições de deficiência são educados no sistema regular de ensino (cerca de
98%). Este número sofreu um crescimento regular desde a Declaração de Salamanca
e comprova a determinação dos vários governos dos últimos 25 em aprofundar a
inclusão nas nossas escolas. Pode-se dizer hoje que a inclusão está na ordem de
trabalhos de todos as escolas portuguesas. Dirão os céticos/críticos:
também pelas más razões. Certamente. Mas vamos ver: não há dúvida
que está na ordem do dia e nunca dispusemos de tantas e tão
boas experiências e nunca soubemos tanto sobre o que é necessário
para que essas experiências possam ser generalizadas.
25 anos depois de Salamanca é tempo para, inspirados
pelo deus romano Janus, olhar simultaneamente para trás e para a
frente. Olhar para trás para sabermos de onde vimos, o tanto caminho que
honestamente, denodadamente e corajosamente fizemos. Olhar para a frente
para sabemos como podemos ir mais além. Por vezes
parece que há pessoas que olham para trás para ver o que não foi feito e para a
frente para ver o que é óbvio que não se consegue fazer. Também há quem se
defenda dos novos tempos dizendo que “antes é que era bom”. Salamanca é um bom
antídoto para as pessoas que acham que a utopia está no passado (os “retrópicos”).
A utopia (o setting que nos faz imaginar e caminhar para o que
achamos bom e justo) está sempre à frente como nos mostrou Salamanca ao apontar
a urgência da inclusão num momento em que nem sequer a integração conseguíamos
fazer eficazmente.
Celebrar Salamanca é comemorar (“lembrar em conjunto”)
o caminho e abastecer energias para fazer das nossas escolas espaços de
cidadania, de participação de fraternidade. Na verdade, a
Inclusão não é só colocar alunos “diferentes” na escola; é antes o que se faz
para que desta presença não se origine desigualdade. Foi isso que Salamanca
apontou e, como escreveu José Saramago, “se puderes ver…
repara”.
David Rodrigues
Conselheiro Nacional de Educação
Presidente da pró – Inclusão
1 comentário:
Parabéns!
Excelente postagem.
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