A Leonor vai à escola, faz ginástica rítmica, nada, pratica ténis, anda de bicicleta, está a aprender a patinar e tem um canal no YouTube com 1200 seguidores. Chega a casa e prepara sozinha as suas torradas bem barradas com manteiga, antes de se sentar a ver os vídeos favoritos no canal da internet, onde meninas de outras geografias fazem desafios e brincadeiras como aqueles que ela faz em casa com a mãe e outros convidados. A Leonor tem 14 anos, mas parece mais nova. É mais pequenina do que as colegas do colégio que frequenta no Porto, não tem trabalhos de casa e demora um bocadinho mais de tempo a fazer tudo. A Leonor tem Trissomia 21 e não é uma menina exatamente como as outras, mas, às vezes, é difícil percebê-lo.
A culpa é da família, que desde o primeiro momento, luta para que o cromossoma a mais da Leonor não a limite. Não foi uma notícia fácil. Helena Bela, a mãe de Leonor, já tinha dois filhos quando soube que o bebé novo que ia chegar era diferente. Diz que nunca pensou em não levar a gravidez avante, porque, simplesmente, isso jamais faria parte dos seus planos. Para ela, qualquer interrupção de gravidez equivale a “matar um filho” e diz que não seria capaz de o fazer. O momento do parto, diz, foi “o maior alívio” da sua vida.
Porque a Leonor nasceu de parto normal e sem qualquer complicação. Perante as hipóteses de o bebé nascer com outros problemas associados, a descoberta de que “só” teria de lidar com a Trissomia 21 foi uma benesse. “Agora, podia arregaçar as mangas e ir para a guerra”, diz a mãe de menina, de 47 anos, no campo de ténis da Foz do Douro, onde Leonor tem mais uma das aulas habituais. “A gravidez foi uma experiência muito rica e muito dura. Para termos experiências muito ricas, elas têm de ser duras, o que é um bocado irritante”, diz, a sorrir.
Leonor soube que era diferente desde o primeiro momento. Ao mesmo tempo que lhe tentava dar uma vida o mais normal possível, a família nunca lhe escondeu que ela tinha Trissomia 21. Helena diz que lhe explicou a condição com que iria viver de forma simples. “Disse-lhe que as pessoas com Trissomia 21 são mais carinhosas, dão abraços melhores, são mais doces, mas não são tão boas a Português e Matemática. Ela ficou radiante”, conta.
Por enquanto, a diferença que sente em relação aos outros é algo que não pesa à menina, diz a mãe. “Por enquanto, ela ainda vê isso como uma vantagem. Ela percebe que a escola é mais fácil para ela do que para os outros. Ainda não sofre com isso”, diz Helena. Ainda assim, há coisas que a miúda já vai notando. “Ela sente-se sempre um bocado à parte, porque os outros são mais rápidos. Com os meninos normais, está sempre em esforço. Mas esteve, pela primeira vez, num encontro em que só havia praticamente meninos com Trissomia 21 e também se sentiu um bocado deslocada. Não está nem num lado nem noutro”, conta.
O grande receio é que a chegada da adolescência possa trazer à criança uma consciência mais dura do que é ser diferente, o que pode levar à depressão. Lá em casa, faz-se tudo para que assim não seja.
Desde o primeiro momento que lidar com Leonor foi diferente de lidar com os dois filhos mais velhos - um rapaz, hoje com 22 anos, e uma rapariga, de 18 - nas coisas mais simples. “Todos os brinquedos e jogos são pensados para o objetivo daquele momento. São os mesmos jogos, mas a maneira como se brinca é diferente, porque tudo é pensado e tem de ser ensinado”, diz Helena. Agora, chegou a vez do Youtube.
O Canal da Lê Belo começou há cerca de um ano e a menina tem agora 1200 seguidores. Não tem periodicidade certa nem um só tema. Às vezes Leonor conta cenas do seu dia-a-dia, outras vezes recebe convidados e faz jogos ou então pode estar com a mãe e os irmãos a realizar desafios. Desenrascada em frente a um computador - escreve em word, envia emails e acede à internet sem dificuldade - Leonor começou a seguir youtubers de livre iniciativa e a falar, entusiasmada, do que via, e a mãe viu ali mais oportunidade no caminho da autonomia da filha. “Não consigo ver nada sem olhar para a parte útil.”
Um dia desafiou-a a fazer os seus próprios vídeos, a criar o seu próprio canal. “Achei logo piada”, ri Leonor. A mãe gosta que a filha se divirta a fazer vídeos, mas quando lhe sugeriu a criação do canal, não foi com esse objetivo. “O canal é para quando ela for adulta. Não é para ser famosa nem para se divertir, embora ela se divirta. Os vídeos fazem com que ela fale com o público, pense e responda rápido, tente decorar algumas coisas. Quero que comece a saber falar em público. Começa com uma câmara para depois passar à fase seguinte. Não sei se ela vai querer, mas gostava que ela fosse uma oradora de superação. Para explicar aos outros como chegou aqui e dar forças às outras famílias. Não quero que ela esteja limitada”, diz a mãe de Leonor.
Nem sempre é fácil, até mesmo para ela. Foi preciso uma terapeuta dar uma ajuda a forçá-la no caminho da autonomia da menina. Em coisas simples. Deixá-la tomar banho sozinha. Dar-lhe a chave de casa. Permitir que ela faça algumas tarefas na cozinha.
Graças a esse empurrãozinho, é Leonor quem abre a porta do apartamento, em Matosinhos, depois de encontrar a chaves no fundo da mochila, quem prepara sem problemas as torradas com muita manteiga e corta dois grandes pedaços de limão para levar para o quarto onde se vai instalar a ver algumas das suas youtubers favoritas. “Adoro chupar limão”, explica a menina, ao mesmo tempo que diz que podem acompanhá-la, “desde que não façam barulho” para não quebrar a sua atenção.
Dos vídeos que vai fazendo, diz que os dos desafios são os que mais a entusiasmam e gosta particularmente do “Torta na Cara”. Um pequeno filme em que ela e a irmã mais velha levam com chantilly na cara de cada vez que erram uma pergunta. Terminaram as duas besuntadas. Leonor ri-se. A mãe diz que ela está sempre a querer fazer novos desafios. Nos vídeos que agora vê, podem nascer novas ideias para o próximo filme que Helena vai filmar e a filha, sorridente, protagonizar. Um dia destes, há um vídeo novo no Canal da Lê Belo.
Fonte: Público
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