segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Recordar os mortos, para compreender os vivos

Durante semanas a fio, vi-o repetir o mesmo ritual. Quando a porta se abria, logo pela manhã, entrava, benzia-se e depositava um ramo de alecrim sobre a pedra tumular. Depois, como se não houvesse tempo, ficava apenas a olhar longamente as escassas palavras inscritas na lápide. Sempre em silêncio. 

Sou coveiro. Dito assim de rompante, o meu trabalho até é relativamente simples de explicar: escondo o que poucos ousam ver. Abro e tapo buracos com cerca de 2 metros de profundidade, arrasto pedras e observo a dor dos vivos que se procuram no meio dos mortos. Já lá vão mais de 50 anos que ando por estas bandas, mas ainda me lembro do dia em que pisei esta terra pela primeira vez, trazido pela mão do meu pai, ele mesmo um coveiro. Pobre do homem veio tentar mostrar-me como isto era difícil, para que eu me esforçasse mais na Escola. Nunca pude esquecer esse dia. Era Inverno e chovia desalmadamente. O cheiro da terra molhada e o pavor da cova aberta foram o suficiente para que começasse imediatamente a chorar. Então, o homem condoeu-se e, apertando-me nas pontas dos dedos, voltou a levar-me para casa.

A verdade nua e crua é que os meus pais nunca quiseram que eu enveredasse por estes caminhos. Ainda hoje não compreendo muito bem o que me trouxe até aqui. Quem pode, afinal, entender as estranhas malhas do destino? Sei apenas que nunca fui bom aluno. Na Escola, os professores diziam-me:

“– Seu asno! Hás-de ser sempre como o teu pai. Um desgraçado da morte” – e eu começava logo a chorar, porque não queria ser um desgraçado da morte. Afinal, eu até sempre tive medo do mundo dos mortos e o escuro causava-me os piores pesadelos. Contudo, que futuro poderia haver para o filho do único coveiro da povoação? Quando fiquei só neste mundo, por volta dos 16, é que compreendi o verdadeiro peso da herança. Cada vez mais, seremos apenas o espelho do berço onde nascemos...

Antes de abrir a primeira sepultura, emborquei uns bons cálices de aguardente. Queimar a alma é a melhor forma de escravizar o corpo e anular quase todos os sentidos. Mas encontrar o que resta de um ser humano condensado numa meia elástica abala a fé de qualquer um, mesmo bêbedo até à ponta dos cabelos. 

Ao longo dos anos, tive, é certo, algumas oportunidades para abandonar este ofício miserável. Ganhei a lotaria duas vezes, mas o dinheiro escorregou-me sempre das mãos com uma velocidade difícil de explicar. Um homem sem ninguém via-se de repente rodeado por amigos de todos os lados. E foi difícil não escapar à tentação de fazer cada vez mais e mais amigos instantâneos. Até perder tudo e as mãos que me apertavam passarem novamente a ignorar-me. O sabor da exclusão chama-se invisibilidade. 

Hoje, logo pela manhã, ao ver aquele menino entrar uma vez mais no cemitério, dei por mim a pensar nos motivos que o trariam ali. Então, o mais silenciosamente que consegui, ganhei coragem e aproximei-me. Chamava-se Pedro, como nos Evangelhos, tinha 10 anos e perdera recentemente o irmão. Vinha visitá-lo na sua última morada e pedir à avó que cuidasse dele.

“– E o alecrim? Para que deixas tu o alecrim?”

“– O meu irmão – respondeu – dizia-me que o alecrim era bom para a memória. Que até houve um tempo, há mais de 2000 anos, em que os estudantes gregos o colocavam atrás das orelhas para terem boas notas na Escola”.

“– Isso é muito engraçado… Mas para que trazes tu o alecrim?” – insisti.

“– Para nunca esquecer o meu irmão”...

Ao ouvir aquele menino, não posso deixar de sorrir. Afinal, as grandes perdas da vida são sempre acompanhadas de um terrível período de esquecimento. Primeiro, há um fantasmagórico nevoeiro que se apodera de nós e a imagem da pessoa amada começa rapidamente a desvanecer-se. As suas palavras misturam-se, a voz afasta-se e até os objectos parecem esvaziar-se de qualquer significado. As casas, então, transformam-se num vazio arrepiante. E ao fim de algum tempo é que começamos a compreender o esforço que é preciso fazer para não esquecer quase tudo. Sim, para não esquecer quase tudo, como se pura e simplesmente nada tivesse existido. Como se tudo não passasse de um sonho condenado a desaparecer. 

Condenado a esquecer… O Homem foi condenado a esquecer. Caso não o fizesse, desistiria rapidamente de quase tudo na vida. Trata-se de um mecanismo de sobrevivência, que, no entanto, também implica recordar. E é nessa equação, entre o que esquecemos (ou pensamos esquecer) e o que recordamos, que está algures o que somos.

Agora, que se aproxima a entrada de Novembro, muitos regressarão temporariamente ao terreno dos mortos. Passarão o velho portão de ferro, alguns irão mesmo fazer o sinal da cruz antes de refugiar-se na interminável saudade, nesse vazio imenso para o qual ainda não inventaram palavras... Quase todos, porém, continuarão a mostrar-se incapazes de compreender o drama dos vivos que por aqui trabalham.

Poucos o terão imaginado, mas cada regresso ao mundo do eterno repouso é sempre um acto de resistência. Ao depositar o ramo de alecrim, uma flor, acender uma vela, afastar o pó da imagem que insiste em apagar-se ou simplesmente permanecer em silêncio estamos a cuidar de nós, como se nos fosse dada a possibilidade de entrar no hospital onde estamos internados e vigiar a própria doença. Em certo sentido, é uma viagem ao futuro, onde nos reencontramos, despidos de todos os títulos e cosméticas. Nesses instantes, apenas os símbolos parecem fazer ainda algum sentido. 

Símbolos e utopias que nos fazem cada vez mais falta. O feriado de Novembro e, em especial, o segundo dia consagrado à memória dos que já partiram também podem ajudar-nos a pensar nisso… Ou não fosse a memória o pólen indispensável para cada um pensar depois a sua própria história.

Renato Nunes 

(renato80rd8918@gmail.com)

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