Biblioteca
Nacional de Lisboa, 29 de Setembro de 2017. Depois de mais um dia de trabalho,
venho queimar os últimos cartuchos da resistência em redor dos livros. Passo os
olhos pela sala, repleta de leitores assoberbados nos seus próprios dilemas.
Mesmo ao meu lado, um “jovem” na casa dos 80 estuda Gomes Freire de Andrade, na
mesa da frente há livros sobre a I República e atrás de mim alguém se debruça
sobre o cancro. Esta sala – dou por mim a pensar – é bem o reflexo de um país,
onde cada um vive isolado nos seus próprios trabalhos, incapaz, pelas mais
variadas circunstâncias, de encetar diálogo com o semelhante. Fico até com a
impressão de que se neste momento Donald Trump lançasse um ataque sobre a
Coreia do Norte todos permaneceriam exactamente como estão. Pura indiferença, à
qual também não escapa a tapeçaria da Leitura Nova, com D. Manuel I no centro,
ali mesmo à frente...
Ironia das ironias, foi na
Biblioteca Nacional que nasceu, em 1921, um grupo de intelectuais que procurou
intervir na sociedade, responsabilizando-se pela transformação das
mentalidades. Desse grupo de republicanos, entre os quais se incluíram Jaime
Cortesão, Raul Proença e Aquilino Ribeiro, viria a surgir a revista Seara Nova, na qual seriam publicadas
ideias concretas (e em certo sentido ainda actuais) para reformar Portugal, procurando
construir uma opinião pública esclarecida e exigente. Falamos de intelectuais,
que ousaram pensar e intervir, pagando depois caro – Aquilino Ribeiro, por
exemplo, teria de exilar-se em França, na sequência da sua participação nas
revoltas de 1927 e 1928 contra a Ditadura Militar.
Neste momento, em que regressamos a
uma nova era de Guerra Fria, faz-nos cada vez mais falta uma opinião pública
esclarecida e exigente, disponível para defender a paz e os ideais democráticos
em que radica a identidade da civilização ocidental. Importa não esquecer que o
lançamento das duas primeiras bombas atómicas da História, sobre Hiroxima e
Nagasáqui, em Agosto de 1945, terá provocado, entre efeitos imediatos e
posteriores, mais de 300.000 mortos. Hoje ninguém saberá prever o que poderia
suceder, caso fosse iniciada uma nova guerra a esta escala, mas não há dúvida
de que todas as palavras seriam escassas para descrever aquele que concretizaria
o pior pesadelo de toda a Humanidade, senão mesmo a sua completa aniquilação. Oppenheimer,
o brilhante físico teórico que liderou o grupo responsável pela invenção da
arma nuclear, percebeu isso tarde de mais, chegando mesmo a perguntar-se, na
sequência das bombas atómicas que ele mesmo ajudara a desenvolver, até que
ponto a ciência era realmente boa para o Homem.
Nesta “era dos extremos” (Eric
Hobsbawm) em que ainda parecemos mergulhados, a ética será cada vez mais uma
necessidade. É também por isso que não me canso de repetir que as disciplinas
que nos ajudam a estruturar o pensamento (caso da Literatura, da Filosofia, da
Poesia, da História, da Arte, da Música, enfim, do regresso aos clássicos…) poderão
fazer toda a diferença. Sem ética e sensibilidade, o conhecimento de pouco ou
nada nos adiantará.
O actual sistema educativo nacional,
que se autoproclama inclusivo, tem na realidade vindo a constituir-se como um
foco segregador e potenciador de exclusões. Ao desrespeitar o ritmo de
aprendizagem de cada aluno (negando quase sempre o direito a que este possa
ficar retido – “chumbar” poderá traumatizar e contribui para aumentar o défice…),
ao impor programas curriculares profundamente desajustados que obrigam a
recorrentes explicações extra-lectivas (logo a partir do 1.º ciclo!) e que
conduzem ao sucesso das elites e ao insucesso (não aprendizagem e progressiva
desmotivação) dos restantes, ao transformar os professores em meros escravos de
tecnocratas políticos, enfim, ao fazer da Escola um local de repetição e não de
pensamento, está apenas a contribuir para que se criem cada vez mais e mais
focos de exclusão. Por muita retórica gongórica que para aí exista a respeito
das nossas conquistas da inclusão, a verdade é que as últimas décadas
educativas têm constituído um período de terríveis e encapotadas exclusões. E a
herança de Abril parece desvanecer-se perigosamente…
Um
dos muitos exemplos obscurantistas é a mais recente proposta apresentada pelo
Ministério da Educação para alterar a pedra angular da escola inclusiva em
Portugal (decreto-lei n.º 3/2008, com as suas revisões dadas pela lei n.º
21/2008, de 12 de Maio). Além de consubstanciar um projecto esotérico, trata-se
de um documento de tal modo subjectivo e abrangente que abre portas às mais
variadas, antagónicas e perversas interpretações, criando dúvidas
desnecessárias e fazendo tábua rasa do decreto-lei antecedente.
Sejamos práticos.Um dos grandes
pré-requisitos para a inclusão passa pela efectiva redução do número de alunos
por turma (15 no máximo). Depois, é urgente rever a questão da formação dos
docentes, a começar no conceito de especialização em Educação Especial, que,
nos moldes actuais, se revela manifestamente insuficiente para fazer face à
complexidade desta área. A formação contínua dos restantes professores, membros
de direcções de escolas, técnicos, assistentes operacionais é demasiado séria
para continuar a ser deixada nas mãos dos centros de (de)formação que para aí
proliferam como cogumelos. E quanto a legislação, não é preciso inventar, basta
aperfeiçoar a que já existe e garantir a sua operacionalização. E não –
repita-se bem alto – não é com mais leis que se melhora o sistema
educativo.
O actual paradigma de pensar a
Escola continua centrado naquilo que de pior existe nas ciências da educação
que para aí reinam: modelos teóricos e ininteligíveis, aparentemente
alicerçados numa ética inclusiva, mas que na verdade são o oposto. É hora de
fazer regressar a função primordial da Escola: a aprendizagem de conhecimentos
substantivos (ler, escrever, contar), dando aos alunos e professores tempo e
condições para pensarem e aprenderem permanentemente em conjunto, o que também
significa, repita-se, sustentar o direito à retenção dos alunos que, sobretudo
numa fase precoce, necessitam de mais tempo para consolidar os conteúdos
trabalhados. Apenas com medidas concretas poderemos efectivamente contribuir
para a melhoria das aprendizagens (o que é diferente, subentenda-se, de
garantir elevadas e artificiais taxas de sucesso para todos).
Escola pública, cada vez mais
politizada, tem vindo a perder o espírito democrático de Abril, como, de resto,
demonstra o modo como os Diretores dos Agrupamentos são nomeados por um colégio
eleitoral restrito (na verdade, é o que acontece). A recente proposta de substituição
do decreto-lei n.º 3/2008 representa mais uma poderosa machadada na inclusão, à
qual a liberdade abriu portas.
E
não nos iludamos, os excluídos de hoje serão, muito provavelmente, os miseráveis,
os criminosos e os terroristas de amanhã. Escravos que as ditaduras agradecerão.
O problema é que quando esse dia chegar não teremos a capacidade de compreender
quem as ajudou a alimentar.
Sim – André Singer tem razão – Night will fall… E fomos nós que
apagámos as luzes. Também por isso, talvez algures no futuro nos chamem os novos
pais da exclusão. Logo a nós, que tantas vezes repetimos (em vão) a palavra
inclusão.
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
Sem comentários:
Enviar um comentário