Terminou, no final do passado mês de setembro, o período de consulta pública referente à proposta de alteração ao Decreto-Lei n.º3/2008, de 7 de janeiro, que há quase dez anos regulamenta as questões inerentes à educação especial. Relativamente a esta discussão, sinto-me profundamente ambivalente, pois as reflexões apresentadas em encontros de discussão pública e o que já li sobre este assunto entram em choque com a minha perceção pessoal e com os muitos comentários que me têm chegado dos elementos da comunidade escolar com quem interajo constantemente.
Confesso que é com algum ceticismo que olho para este decreto e que algumas questões me causam uma certa inquietação, pois me parecem um pouco utópicas. Estarei eu a assumir o papel de “Velho do Restelo”? A ver barreiras intransponíveis, que efetivamente não o serão? Apesar de não ter certezas absolutas e de me questionar permanentemente, passarei a aflorar algumas preocupações que ainda não vi apresentadas publicamente, mas que traduzem também os receios dos profissionais com quem trabalho mais de perto.
No quarto parágrafo desta proposta é referido que “Procura-se, deste modo, garantir que o Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória seja atingido por todos, (…)”. Era excelente que esta premissa fosse concretizável, mas quem trabalha na escola sabe que há muitas crianças para quem estas metas são inatingíveis, porque, e contrariamente ao que é dito no parágrafo anterior, conhecer as barreiras não nos permite eliminá-las todas nem garantir o acesso ao currículo e às aprendizagens por parte de todos os alunos.
No artigo 3.º, a inclusão é definida como “o direito de todas as crianças e alunos no acesso e participação, de modo pleno e efetivo, aos mesmos contextos educativos”. Na linha deste princípio, extinguem-se as unidades especializadas e a medida “Currículo Específico Individual” (CEI) e as escolas são obrigadas a incluir nas salas de aula, durante mais tempo, crianças com graves dificuldades de acesso ao currículo. Convém sublinhar que os alunos que até ao momento integram as unidades especializadas e as salas CEI são crianças com limitações muitíssimo acentuadas e em relação às quais a escola já tinha implementado, sem o sucesso necessário, várias estratégias, no sentido de as ajudar a ultrapassar as barreiras que condicionavam severamente a sua evolução académica, antes de optarem por essas medidas. Pensando em alunos concretos que avaliei e acompanhei - crianças que não adquiriram o mecanismo da leitura e da escrita; que não conseguem registar a informação do quadro, mesmo com o constante incentivo do professor; alunos para quem as aulas de Português, Ciências, História e outras disciplinas apresentam uma linguagem indecifrável; alunos com dificuldade de regulação emocional, que emitem ruídos de forma incontrolável e constante - colocá-los numa sala de aulas será incluí-los ou torturá-los? Será ajudá-los a sentirem-se mais semelhantes aos outros ou ainda mais diferentes, na medida em que serão permanentemente confrontados com a incapacidade de acompanharem as abordagens que estão a ser feitas em sala de aula? Os mais otimistas poderão argumentar que estes meninos vão ter na sala um professor da educação especial a orientar as suas tarefas. Será que vão? Haverá recursos humanos para acompanhar devidamente estes meninos, cuja autonomia é reduzidíssima?
No ano anterior contactei com pais preocupadíssimos porque os filhos, com perfis semelhantes aos descritos anteriormente, estavam inseridos em grupos-turma, frequentando todas as disciplinas. Estes, para além de academicamente não apresentarem nenhuma evolução, mostravam-se emocionalmente muito perturbados, porque frequentemente andavam perdidos no espaço escolar, dada a dificuldade de orientação espacial que também lhes é característica. A somar ao rol de dificuldades, o facto de os mega-agrupamentos tornarem o espaço escolar demasiado grande e impessoal, não facilitando a proximidade entre os alunos e a restante comunidade, torna o processo inclusivo ainda mais complexo e difícil.
Se as unidades especializadas e as salas CEI são vistas como guetos, não seria de pensar em alternativas formativas diferenciadas, com uma vertente mais técnica (aprender fazendo), para estas crianças que, efetivamente, não conseguem aceder ao currículo? Colocá-las em salas de aula, verdadeiros universos paralelos, será uma real estratégia de inclusão?
Adriana Campos
Fonte: Educare por indicação de Livresco
4 comentários:
As alterações ao Decreto-Lei propostas do MEC sucitam diversas dúvidas, reparos e reservas. Agora, tendo em conta que o artigo 37.o - Acolhimento de valências - refere: "os centros de apoio à aprendizagem acolhem as valências existentes no terreno, nomeadamente as unidades especializadas", cada escola poderá continuar a encontrar as melhores respostas para a inclusão. No caso da "minha", as valências que existem e visam preparar os atuais alunos CEi para a vida, bem as unidades especializadas, continuarão a sua missão, melhorando-a dia após dia. Nada do que li na proposta do MEC impede isso. Com a designação CEI ou com outra. Ou existe algum artigo que o impeça e eu não o vi?
Mas se os Cei terminam, os alunos serão todos reavaliados e nos casos em que for possível, se reverterá o CEi (dito pela Secretária de Estado para a Inclusão), os alunos voltam ao currículo normal? E onde cumprem o currículo? Nas salas de aula da turma com apoio individualizado, sempre que possível? è que se for como o Anónimo diz, fica tudo na mesma.
Ana, há muitas situações a clarificar. Os princípios subjacentes à proposta podem ser bons mas é necessário ponderar a sua aplicabilidade. No pior cenário, fica tudo igual!
O ideal é que o que está a funcionar bem continue e que se melhore o que pode melhorar. Quantos aos atuais alunos CEI, nos casos em que achar por bem "reverter", só peca por tardio. Lido com alguns alunos CEI que merecem essa oportunidade. Aliás, como vieram de outro agrupamento, ainda estou por perceber como e porquê foram para aí "atirados".
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