terça-feira, 19 de abril de 2016

Um, dois, três, os meninos todos juntos outra vez

Na janela da Escola Básica de Amor há morangos a amadurecer. Foram plantados pelos 27 meninos que compõem o total de alunos daquela escola, às portas da cidade de Leiria. Muitos desses frutos já serviram como auxiliares de estudo, por exemplo, para ilustrar a divisão e os números fracionados. A professora Sónia tem noção de que só o poderia fazer ali, numa escola do meio rural, com a ajuda dos seus dez meninos - cinco do 1.º e cinco do 2.º ano. E sabe que, àquela hora da manhã em que os alunos se organizam para o almoço - a par dos 17 dos 3.º e 4.º anos, da outra sala do edifício -, há milhares de alunos pelo país que enfrentam níveis de ruído indescritíveis, que se esforçam para se ouvir uns aos outros até dentro da sala de aula, quando se atinge o número máximo de aluno por turma: 26. Ali, na pequena escola da aldeia com nome romântico, não há agitação que belisque a serenidade dos dias, cuja paz só é ameaçada pelo esvaziamento das aldeias, pela emigração e pela reduzida taxa de natalidade que um dia há de fechar as escolas como aquela, para fazer galopar os centros e polos escolares. Até lá, a felicidade ainda mora ali.

O Conselho Nacional de Educação acabou de publicar um estudo que revela o que até agora não se sabia, com exatidão: quase um terço das turmas do 1.º ciclo do país misturam alunos de anos diferentes, num total de 94 317 crianças. Na maioria das escolas onde isso acontece, testemunha--se um regresso ao passado, como no tempo em que a luta ainda era a alfabetização e se juntavam todas as crianças da aldeia na mesma sala. O que aconteceu entretanto foram avanços e recuos. Quando Sónia Santos chegou à escola de Amor, há nove anos , já a demografia mostrava uma crescente diminuição do número de alunos. "Sempre tive dois anos de escolaridade, em turmas mistas. Mas na altura eram mais meninos...", conta (...), numa manhã em que dedicou grande parte do tempo a um exercício com os meninos e meninas de 6, 7 e 8 anos: que vantagens e desvantagens encontram eles próprios no facto de estarem juntos, na mesma sala? "Surpreendentemente, só me apontaram vantagens."

A sala do primeiro andar da EB de Amor é solarenga, e naquele dia está dividida ao meio: o grupo do 1.º ano voltado para o fundo, o do 2.º de frente para a porta de entrada. Ao meio, um conjunto de mesas faz uma ilha que é comum aos dois grupos. A professora Sónia vai mudando a disposição da sala conforme as necessidades. "A maior parte das vezes não está assim, estão mesmo todos juntos. De facto, para eles acaba por ser melhor, já que muitas vezes os do 2.º ano estão a relembrar a matéria que já deram no ano passado. E esta é uma sala atípica, dentro das turmas mistas, porque são pouquinhos. E além disso, não tenho nenhum com necessidades educativas especiais."

Não só mas também por essa razão, o nível global de aproveitamento é Muito Bom. Natural de Oliveira de Azeméis, Sónia Santos passou a maior parte destes 18 anos como professora do ensino básico em escolas do interior, de modo que as turmas mistas são a realidade que melhor conhece. Ainda assim, atravessaram-se no caminho experiências com turmas de apenas um ano. E por isso às vezes tem saudades do tempo que só precisava de conhecer um programa, em vez de dois, como agora acontece. "Acho que a principal diferença, ou desvantagem talvez, é mesmo a planificação por parte do professor. As coisas têm de ser muito bem planeadas, tendo em conta sobretudo o ritmo das crianças. A linguagem é necessariamente diferente para uns e outros. Não há dúvida de que é muito mais cansativo, há dias em que pareço uma bola de pingue-pongue". Neste ano calha-lhe assim, mas noutros anos chega a juntar na mesma sala o 1.º e o 4.º. "Se um grupo está a trabalhar no momento de forma mais autónoma, dedico-me mais ao outro. E assim vamos alternando ao longo do dia."

Ali não há quadro interativo, e a biblioteca da escola resume-se a um armário, com livros. Mas há muitas outras coisas que as escolas do meio urbano nunca chegam a conhecer. O envolvimento dos pais/encarregados de educação é disso exemplo, de forma que o telheiro do recreio foi fechado com a ajuda dos fundos angariados através de iniciativas deles. Na sala da professora Sónia há dois computadores, "e foi uma mãe que me ajudou a equipar", conta. Paredes-meias com o edifício estão os idosos da localidade, no Centro de Dia da Casa do Povo de Amor. "Há uma interação muito grande com eles", sublinha a professora, na conversa que decorre junto à parede da sala onde estão expostas as fotografias de diversos momentos do ano letivo, entre elas alguns animais, a propósito da matéria em Estudo do Meio. "Foi muito engraçado porque eles trouxeram para a escola os seus animais. E fomos ali ao vizinho ver um porco..." Afinal, apesar de viverem numa aldeia, Amor fica na periferia da cidade, onde trabalham muitos dos pais. E por isso nem todos conhecem toda a dimensão do mundo rural.

Na sala do rés-do-chão está o professor Sérgio Leonardo, 20 anos de experiência no ensino básico, os últimos seis na escola de Amor. A turma onde leciona tem 17 alunos, dois deles com necessidades educativas especiais (NES). "Já passei por todas as condicionantes do ensino no primeiro ciclo", conta (...), ele que em tempos juntou numa mesma sala os quatro anos de escolaridade. "Não é fácil", desabafa o professor, que faz depender da turma (e dos alunos que lhe calham em sorte) o maior ou menor sucesso deste modelo misto. "Se a turma for razoavelmente boa, não há problema em termos dois anos juntos. Mas às vezes torna-se difícil." E se pudesse escolher? "Nunca juntava dois anos. Porque já basta os diferentes níveis de aprendizagem por parte dos alunos. É preciso trabalhar-lhes muito a autonomia."

Os exemplos de cidadania encontrados nos pais da escola de Amor entroncam na turma mista dos filhos, quando falamos de entreajuda. A professora Palmira Simões, da direção do Agrupamento de Escolas de Marrazes (que integra a EB de Amor), aponta esse fator como uma das vantagens deste sistema das turmas mistas. "Nada é comparável", admite a professora, que lida diariamente com tantas diferenças, num agrupamento que junta cerca de mil alunos, 13 escolas e 53 turmas, entre os 1.º, 2.º e 3.º ciclos de ensino. Naquela freguesia de Amor há cinco escolas no total. Apenas na localidade de Barreiros não se aplica o sistema das turmas mistas. "Nesses casos, o professor tem o dobro do trabalho, seja a preparar as aulas seja a construir instrumentos de avaliação." Por outro lado, "o que a maioria dos professores atesta é que no campo das vantagens este sistema resulta num ótimo exercício de cidadania. Alguns alunos têm um ritmo muito mais rápido de trabalho e acabam por ajudar os colegas".

No mesmo Agrupamento de Escolas de Marrazes convivem outras realidades na constituição de turmas, por exemplo o regime de desdobramento. "Temos ainda turmas/anos com aulas só de manhã ou só de tarde", sublinha Palmira Simões. A realidade há de alterar-se quando for construído o novo Centro Escolar de Marrazes e Barosa, uma obra ainda em projeto, que a Câmara Municipal de Leiria espera, em breve, lançar a concurso.

Quando o estudo foi conhecido, no início deste mês, o presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais, Jorge Ascenção, disse (...) que, apesar dos milhares de escolas fechadas na última década, muitos destes casos das chamadas turmas "mistas" (que podem ter no máximo 22 alunos) estão relacionados com a vontade das próprias comunidades, que tentam assim manter abertos estabelecimentos com poucos alunos. É o caso de muitas escolas no interior do país, mesmo que o fenómeno esteja a ganhar terreno nas escolas de meio urbano. "As famílias preferem muitas vezes essa situação a encerrar as escolas, pelos alunos que tinham. Preferem ter a turma mista e [o aluno] ficar mais próximo de casa. Normalmente é um equilíbrio encontrado entre as famílias e as escolas", sustenta Jorge Ascenção, embora admita tratar-se de "um mal menor", já que, "provavelmente, não é a melhor situação em termos pedagógicos".

Fonte: DN por indicação de Livresco

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