Carina e Madalena têm 32 anos, 18 dos quais passados em cadeiras de rodas, a viver numa casa que não está adaptada às suas necessidades e numa situação de grande dependência da sua mãe. Agora que souberam que foram escolhidas para integrar o projecto-piloto que a Câmara de Lisboa está a promover na área da Vida Independente, as gémeas acreditam que chegou finalmente a oportunidade pela qual ansiavam para começar uma nova vida. (...)
"Se a minha mãe me falta sou institucionalizada"
Duas das escolhidas foram Carina e Madalena Brandão, que sofrem de polineuropatia muscular, uma deficiência congénita que as atirou para cadeiras de rodas quando tinham 14 anos. Desde essa altura vivem num pequeno apartamento, no rés-do-chão de um edifício na Avenida da República, em Lisboa. Uma casa em que residem por a sua mãe ser a porteira do prédio e na qual não podem por isso fazer as obras que seriam necessárias para a adaptar à sua condição física.
Nos últimos anos, as gémeas de 32 anos licenciaram-se em Psicologia Social e das Organizações e tiveram diferentes experiências profissionais. Agora estão a frequentar um mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde e a realizar estágios profissionais, actividades que acumulam com várias outras, como a natação, a ginástica e a dança e a participação no CVI.
“Isto só é possível porque temos o apoio de uma terceira pessoa”, reconhece Carina referindo-se à mãe, Cristina, de quem ela e a sua irmã dependem para atividades aparentemente tão simples como entrar e sair dos carros que conduzem nas suas deslocações diárias, cozinhar e tomar banho, entre muitas outras coisas. A licenciada em psicologia reconhece que essa dependência é motivo de preocupação: “quando tinha 24, 25 anos comecei a pensar mais no futuro e a pensar que se a minha mãe me falta eu sou institucionalizada”, confessa.
Um receio que é partilhado por Madalena, para quem não é solução de futuro transferir para um namorado ou para um marido os encargos agora atribuídos à sua mãe. “Eles não têm que ser nossos enfermeiros, nossos cuidadores”, diz, defendendo que é exatamente para assumir esse papel que faz sentido que exista a figura do assistente pessoal.
Nas candidaturas que apresentaram, Carina e Madalena identificaram a necessidade de ter um assistente durante a manhã e ao fim do dia. A ideia, explicam, é terem alguém que as ajude a fazerem a sua higiene e a vestirem-se, que prepare as suas refeições, que limpe a casa e trate da roupa.
Além disso, as gémeas manifestaram interesse em poder mudar-se para um fogo municipal que, ao contrário do que acontece na casa em que hoje moram, esteja adaptado às suas necessidades. “Já estava a pensar há dois anos em sair de casa mas não reunia as condições para alugar uma casa e para pagar a um assistente”, diz Carina, sublinhando que a participação no projeto-piloto vai permitir dar resposta a essas duas necessidades.
“Quando sair de casa vou começar uma nova etapa de vida em que vou poder ser eu e não eu mais a minha mãe”, congratula-se, admitindo que com essa mudança passará também a ter uma série de novas “responsabilidades”. “Vai ser um grande desafio para mim perceber até onde vão os meus limites”, conclui Carina.
Também Madalena deposita grandes esperanças nesta iniciativa, não só por si e pela irmã, que vão “crescer como pessoas”, mas também pela sua mãe, que “vai ter mais liberdade”. “A minha mãe está sempre preocupada se vai estar em casa quando voltamos. Deixa de fazer muitas coisas para nos apoiar”, lembra. “Ela vive em função de nós. Está na altura de retomar a sua vida e a sua independência”, anui Carina.
Assistentes pessoais procuram-se
Além das gémeas, vão beneficiar deste projeto-piloto da Câmara de Lisboa outras três pessoas, duas das quais solicitaram também que lhes fossem atribuídos fogos municipais. Segundo o presidente da direcção do CVI, as cinco pessoas seleccionadas identificaram, no total, a necessidade de ter o apoio de assistentes pessoais 659 horas por mês.
Em relação aos assistentes, Diogo Martins adianta que chegaram à associação cerca de 100 manifestações de interesse. Para concorrer à posição não se exigiam grandes requisitos: no anúncio da abertura das candidaturas divulgado pelo CVI no seu site explicava-se que não era obrigatória “formação ou experiência”, que o horário de trabalho tanto podia ser “part-time ou full time” e que seriam firmados contratos de trabalho doméstico a tempo certo, sendo feito um “pagamento mensal do número de horas prestadas”.
Mas para que não houvesse dúvidas sobre o que é isto de ser assistente pessoal, no interior do anúncio havia um link para uma outra área do site, na qual se desenvolvia o assunto. “Um assistente pessoal pode realizar qualquer tarefa, dependendo da situação em que se encontra a pessoa a quem presta o serviço de apoio. As tarefas decorrerão, fundamentalmente, das incapacidades da pessoa para quem trabalha, e serão sempre previamente acordadas por ambas as partes”, explicava-se, discriminando-se que as tarefas em causa poderiam ser “pessoais”, do “lar”, de “acompanhamento”, “condução”, “interpretação”, de “coordenação” ou “excecionais”.
Apesar de toda essa informação, Diogo Martins reconhece que entre as cerca de 100 pessoas que se candidataram aos lugares disponíveis pode haver quem o tenha feito ao engano. “Provavelmente muitas destas pessoas estão a pensar que era outra coisa”, admite, sublinhando que “o conceito” de assistente pessoal “para Portugal é novo”.
Por isso, o CVI irá fazer “uma filtragem inicial” das candidaturas recebidas. Depois disso, será “obviamente” cada um dos cinco utilizadores já seleccionados a escolher o seu assistente pessoal, constata Diogo Martins. “Um assistente é como uma extensão do nosso corpo, das partes que não funcionam”, sublinha por sua vez Carina Brandão, justificando assim o procedimento que vai ser adoptado.
“Um assistente não é um enfermeiro ou um fisioterapeuta. É alguém que ajuda no que é preciso”, acrescenta Madalena Brandão, destacando que para si os únicos “critérios” para se poder ser assistente pessoal são “ter vontade, espírito de ajuda e ser flexível”.
No final de Novembro, o CVI vai promover uma ação de formação para todos os que vão participar neste projeto-piloto. A ideia é que aí recebam um conjunto de informações mais teóricas, sobre o que é isto da Vida Independente e sobre a sua história, que percebam o que é e como funciona a associação, mas também que adquiram alguns conhecimentos práticos, tanto ao nível da gestão de conflitos e das relações pessoais como das chamadas transferências (as passagens dos deficientes por exemplo da cadeira de rodas para a cama).
"O mundo tem que funcionar assim"
“O objetivo deste projeto-piloto é mostrar que é possível pôr em prática a Vida Independente, é demonstrar que funciona e promovê-la entre as pessoas que ainda não a conhecem”, resume Diogo Martins. A sua ambição é, claro, que depois de Lisboa haja outras câmaras a lançar iniciativas como esta e que o Governo “assuma a responsabilidade” que tem nesta matéria, proporcionando aos cidadãos com deficiência a possibilidade de continuarem nas suas casas com a ajuda de assistentes, em vez de dependerem de familiares ou de terem que ir viver para uma instituição.
“Acredito na Vida Independente. O mundo tem que funcionar assim. As pessoas não têm que ser institucionalizadas”, corrobora Carina Brandão, enquanto a sua irmã Madalena se mostra convicta de que, apesar de não estar isento de dificuldades, este processo “vai funcionar”. (...)
Fonte: Público
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