"Sinto que a escola passou a ser menos focada no trabalho pedagógico, passando a estar demasiado centrada no trabalho burocrático". "Estou muito insatisfeita com o sistema, não só do ponto de vista remuneratório, mas também pela falta de dignidade que a carreira docente passou a ter". "Tudo tem corrido tranquilamente".
Três frases, três professoras e cada uma com uma visão diferente, talvez complementar no caso das duas primeiras respostas, do que é ser docente em Portugal atualmente agora que se inicia o ano letivo 2022/23.
Apesar de confiantes quanto ao novo período escolar, Catarina Batista, Cristina Domingues e Natércia Gouveia apontam as falhas e as dificuldades que dificultam a evolução do ensino em Portugal.
A mais nova das três docentes é Catarina Batista (27 anos), é de Setúbal e dá aulas há cerca de três anos. Ainda em início de carreira, a professora admite que até ao momento não atravessou adversidades na profissão e que tudo tem corrido "tranquilamente" - uma perspetiva que contrasta com a de Natércia Gouveia e Cristina Domingues, que em tantos anos de carreira já presenciaram alguns dos problemas que há muitos anos caracterizam a profissão. Mas já aí vamos.
Neste ano letivo, Catarina vai ter a responsabilidade de ensinar crianças do segundo ano de escolaridade, depois de ter iniciado a sua carreira numa época marcada pela pandemia, em que as aulas online passaram a ser rotina e as máscaras dificultaram o ensino presencial. "Foi um grande desafio, mas no final correu tudo bem e o mais importante é que os alunos conseguiram aprender", diz.
No Colégio das Faias, onde dá aulas, espera que este ano seja diferente e mais otimista tendo em conta a nova realidade, para que se consigam consolidar algumas matérias que possam ter ficado para trás. "É preciso dar um passo para trás, para depois se dar dois para a frente. Vai ser um ano de atingir objetivos", admite.
Catarina admite que o uso de máscara durante o período de pandemia na sala de aula dificultou a aprendizagem dos alunos, verificando a necessidade de terapia da fala em alguns casos específicos. "Isto envolve também a nível da escrita. Se eles não conseguem entender bem os sons, também vão ter dificuldade a escrever e a ler", explica.
Cristina Domingues, 47 anos, é natural de Pampilhosa da Serra e dá aulas de inglês há 25 anos. Atualmente na Covilhã, desde pequena que soube que queria ser professora, inspirando-se na mãe que foi professora primária: "O gosto pela profissão a juntar ao gosto pelas línguas estrangeiras levou a uma escolha natural que foi ser professora."
Depois de 25 anos nas escolas, a admiração pela sua profissão continua a mesma, sendo os alunos a principal motivação para continuar a dar aulas. No entanto, admite que existem vários fatores que têm tornado a vida de docente "menos agradável".
"Sinto que a escola mudou e passou a ser menos focada no trabalho pedagógico, passando a estar demasiado centrada no trabalho burocrático. A parte administrativa que temos de fazer acaba por tirar-nos um tempo precioso para aquilo que é de facto o trabalho pedagógico, e que devia ser a tarefa central dos professores", defende.
Para Cristina Domingues a carga burocrática das escolas tem sido um grave problema para os docentes: "Quando iniciei a minha carreira tinha tempo para ser criativa e para pesquisar atividades novas a desenvolver com os estudantes. Havia mais tempo para trabalhar em articulação com os colegas e atualmente sentimo-nos esmagados pela burocracia".
"As nossas horas livres são passadas a trabalhar para a escola e existe falta de tempo para o trabalho pedagógico. Há um grande desrespeito pelo nosso tempo de descanso e o tempo para a família", sublinha.
Desde que começou a sua carreira, diz que hoje as diferenças são "abismais", tanto nos alunos como no ensino em si. "Os alunos de hoje são radicalmente diferentes dos que quando comecei a dar aulas. Têm interesses distintos e até a forma como comunicam se alterou. Vejo diferenças também na escola que temos hoje, que é uma escola muito tecnológica".
Natércia Gouveia, 59 anos, dá aulas de história há 35 anos a jovens entre o 7.º e o 12.º ano na Escola Secundaria D. João II, em Setúbal.
Neste ano letivo, a professora acredita que todos terão de se adaptar à nova realidade, depois de dois anos de ensino fortemente condicionado pela pandemia.
Para Natércia, ser professor é "muito gratificante do ponto de vista humano", porém, considera que a carreira é tem muitos problemas, entre eles o ponto de vista monetário que é "pouco vantajoso". "Os alunos são o que me faz estar no ensino, mas estou muito insatisfeita com o sistema, não só do ponto de vista remuneratório, mas também pela falta de dignidade que a carreira docente passou a ter", resume.
Natércia Gouveia considera uma "violência" a excessiva carga horária que não permite aos professores terem tempo livre. "Levamos para casa não só os trabalhos para corrigir e a preparação de aulas, como também os problemas. Não dá para abstrair do que acontece na escola", justifica.
Aliás, a professora defende que a escola "acaba por ser muitas vezes um depósito de crianças", dado que muitos pais têm dois trabalhos e pouco tempo livre para conseguirem estar com os filhos, cabendo aos professores muitas responsabilidades.
No caso da colocação de professores, a docente destaca a instabilidade do processo e defende uma reforma do ensino em Portugal, uma vez que muitos dos docentes passam a maior parte da sua carreira à procura de "um lugar ao sol" para conseguirem pertencer aos quadros da profissão.
Resumidamente, estes são "os desafios diários que fazem parte da profissão", lamenta Natércia.
Um "desalento" no futuro
Tanto Cristina como Natércia consideram que ser professor atualmente é sinónimo de uma carreira sem perspetivas e pouco atrativa devido ao salário, excesso de carga horária e horas extraordinárias e difícil processo de colocação de professores.
"Não há dinheiro que pague a falta de condições que se sente atualmente. É preciso adequar as estratégias às realidades", expõe Natércia.
Já Cristina, revela um profundo "desalento": "O tempo passa e continuo a ver a profissão não reconhecida. Tem que haver no discurso político uma valorização dos professores. É necessário ainda haver respeito pelas situações de doença, pela proximidade à residência e é indispensável rever o regime de concursos e torná-lo mais claro no geral. Se a carreira for mais atrativa, certamente que se irá resolver a falta de professores", conclui.
Fonte: DN por indicação de Livresco
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