A cegueira ainda é vista na nossa sociedade como a “pior” deficiência que alguém pode ter. Quem não lida com esta limitação no seu dia-a-dia acha que a mesma é de tal forma incapacitante que condiciona o ato de ser feliz, daqueles que vivem esta situação na primeira pessoa ou na sua família próxima. Se perguntarmos a alguém qual é, de todas as incapacidades, aquela que não quereria mesmo ter, a resposta será certamente: ser cego. Mas o que será isto de ser cego para uma pessoa que nasce cega, ou perde a visão nos primeiros anos de vida?
Será que aqueles que podem utilizar o sentido da visão conseguirão avaliar de forma sensata o que é “não ver com os olhos?”.
Será que a visão é assim tão imprescindível para quem nunca a pode utilizar? Será que este mundo que as pessoas normovisuais conhecem é o mesmo mundo que as pessoas cegas percecionam?
Há alguns anos atrás a minha própria conceção sobre a cegueira era diferente da atual e talvez me inserisse no grupo de pessoas que achava que era a “pior” das deficiências. Contudo, há quatro anos a vida resolveu desafiar-me a ser mãe de um menino que, com apenas seis meses, ficou cego.
Perante tamanha fatalidade confesso que inicialmente o “meu mundo” desabou pois, na minha cabeça, era inconcebível que o “meu menino” não pudesse ver o mundo. Tanto que eu tinha para lhe mostrar… contudo, depressa percebi que o mundo do meu filho é muito mais do que o meu mundo e que afinal é ele que me ensina todos os dias a ver o que antes era para mim invisível. Foi também com o meu filho que percebi claramente que o ser humano tem uma capacidade inata de se adaptar a todas as situações e que as perceções de cada um são, simplesmente isso, perceções.
Há dois anos atrás, por esta altura, juntava-me a outras mães e pais de crianças cegas para iniciarmos o projeto de fundação de uma associação de pais, amigos e familiares de crianças, jovens e adultos cegos e com baixa visão. Essa associação nasceu em outubro de 2017 e chama-se Bengala Mágica. O trabalho desenvolvido é ainda “uma gota no oceano” de tudo aquilo que queremos fazer nesta área onde a “desinformação” é ainda uma realidade muito presente. Enquanto pais temos a missão de apoiar outros pais e familiares mas também profissionais que trabalham com pessoas com esta especificidade. Temos também a missão de ajudar a “naturalizar” a cegueira perante a sociedade e mostrar que as nossas crianças e jovens são “tão capazes” como quaisquer outros. A limitação não está nelas mas sim na sociedade em que vivem. De facto, não vivemos num mundo preparado para quem não vê (com os olhos) e isso obriga a um esforço permanente de adaptação por parte de quem é cego ou tem baixa visão. Um esforço de tal forma exigente que, para quem está de for, chega a ser “visto” como uma capacidade sobrenatural. Várias vezes me dizem, relativamente aos comportamentos do meu filho: “Ahh…. Ele é sobredotado!” ou… “ele ainda deve ver alguma coisa!” Na verdade, aquilo que impressiona as pessoas não é mais do que a capacidade inata que uma pessoa cega tem de viver com a condição que é a sua e de se adaptar ao mundo “imperfeito” em que vive. O que sinto é que seria muito mais fácil viver neste mundo imperfeito se ele não fosse construído, por todos nós, com base na perfeição ou, naquilo que se julga ser, a perfeição.
A Associação Bengala Mágica tem-me possibilitado conhecer adultos cegos e com baixa visão que não vivem “presos” à sua incapacidade e para quem a deficiência não é mais do que uma característica (pessoal) que, inevitavelmente os obriga a ser “todos os dias” eficientes na sua forma de viver mas que não os impossibilita de ter uma vida autónoma, independente e feliz. Do mesmo modo na minha vida, tenho contactado com pessoas que, não tendo qualquer deficiência (física, intelectual ou sensorial) têm outras características (pessoais) que não as deixam ser eficientes na forma de viver e, por essa razão, têm vidas que não desejam e onde se sentem infelizes.
A forma como cada um de nós está no mundo é sem dúvida a “chave” para VER o mundo e para VIVER nele. E aqui, a importância da atitude dos pais nos primeiros anos de vida das crianças com deficiência visual é fundamental para tudo o que vem a seguir. Como já referi, quando me deparei com a realidade da cegueira do meu filho o “meu mundo” desabou… porém, depois do tão necessário período de “luto” interior, veio o período de “aceitação” e de “transformação”. Transformar-me para poder ajudar o meu filho a crescer e a tornar-se uma pessoa “inteira” e de bem com a vida. Para tal tive, e tenho ainda, que agir com o meu filho com a maior naturalidade possível, estando também eu, de bem com a vida. Como canta Rui Veloso, “Nem Deus tem o dom de escolher quem vai ser feliz…”.
No meu dia a dia não me foco na deficiência do meu filho mas sim na pessoa que ele é e na forma como eu tenho que ser para o ajudar a encontrar o seu lugar no mundo. Tal como fazem todas as crianças desta idade o meu filho frequenta um jardim de infância, vai ao parque, vai ao supermercado, vai ao café, vai ao restaurante, vai ao mercado, vai à praia, vai à piscina, vai a casa dos avós, dos tios, dos amigos… enfim, vai onde tem que ir e fá-lo de forma completamente “normal”. A pouco e pouco as pessoas que convivem com ele foramse adaptando à sua forma de ver o mundo e aquilo que inicialmente era “assustador” é agora muito natural. Se pensarmos bem as crianças cegas apenas não têm um dos sentidos, contudo na falta deste podem rentabilizar ainda melhor todos os outros. Aqui está a forma como podemos dar a volta a esta situação que pode parecer altamente incapacitante. Se soubermos canalizar a informação, que normalmente as crianças recebem, de forma espontânea, pelo sentido da visão para os outros sentidos, estamos a ajudar a criança cega a construir a sua perceção do mundo que a rodeia. Quando escrevo “mundo” estou a referir-me a tudo, desde as pessoas, aos animais, aos objetos, aos ambientes, aos conceitos mais e menos abstratos… O importante é ir dando oportunidades de exploração à criança, não nos limitarmos apenas a descrever sem deixar que as crianças experimentem, sintam, vejam… Daqui advém a necessidade de dar a estas crianças muitas e diversificadas experiências pois é com base nestes momentos que constroem as suas imagens mentais e conceptuais. Nestes momentos de experimentação e exploração é importante deixar as crianças serem crianças e agirem como crianças. Sem medo, há que estar por perto mas não superproteger. Tal como qualquer criança, a criança com deficiência visual tem que cair para aprender a levantar-se, tem que dar cabeçadas para aprender a desviar-se, tem que sujar-se para aprender a limpar-se… gerir a ansiedade é algo que nós pais temos que aprender e para que seja mais fácil, mais uma vez, o importante é não nos centrarmos na limitação dos nossos filhos mas sim nas suas capacidades. Se nós conseguirmos deixá-los ser crianças felizes, eles vão conseguir ser jovens e adultos felizes.
A nossa postura enquanto pais é imprescindível para a formação dos nossos filhos mas também para a postura das outras pessoas em relação aos nossos filhos. Por vezes deparo-me com pessoas que não conheço e que se apercebem que o meu filho é cego. Na presença da dúvida ou perante um olhar curioso, costumo imediatamente dizer que ele não vê. Normalmente seguem-se comentários que demostram pena, compaixão, espanto ou até mesmo infortúnio, acompanhados de olhares de piedade e solidariedade. Imediatamente, procuro desmistificar este tipo de abordagem dizendo que ele é muito feliz e que a cegueira é apenas uma característica dele, infelizmente não a mais preocupante (a cegueira é decorrente de um tumor no sistema nervoso central). Outras vezes perguntam-me se é invisual ou ceguinho, quase a medo… ao que respondo de forma muito natural, não é ceguinho nem invisual, é apenas cego. Não vê com os olhos mas vê com todos os outros sentidos. Quem conhece o meu filho acaba por não se lembrar permanentemente que ele é cego, tal como não se lembra que tem cabelo castanho aos caracóis, que tem olhos castanhos, que tem quatro anos…
Para o meu filho ser cego é ainda algo que desconhece. Estou á espera do dia em que ele me pergunte o que é isso. Não sei se saberei responder mas já ando a ensaiar uma resposta. O mundo dele é assim, não conhece outro e, nessa forma de ver o mundo, sei-o feliz, inteiro, criança e pessoa. E sei também que o sentido da visão não lhe faz falta nenhuma.
Dídia Lourenço
Mãe de criança cega
Vice-Presidente da Direção
da Associação Bengala Mágica
associacao.bengalamagica@gmail.com
Fonte: Revista Plural&Singular, 22ª EDIÇÃO, julho 30, 2019
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