sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Apenas 1% dos educadores de infância são homens. "A nossa sexualidade é posta em causa"

O destino estava escrito no nome, diz Diogo, palavra derivada do latim didacus, que significa "professor". Mas foi apenas quando a professora Albertina, do 12.º ano, lhe lançou a questão que decidiu que queria seguir Educação. Mais especificamente, ser educador de infância, uma profissão maioritariamente feminina. Os números não deixam mentir: de acordo com o relatório "Educação em números 2019", da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, a taxa de feminidade na educação pré-escolar em Portugal é de 99%. Diogo Guerreiro, 40 anos, integra estes restantes 1%. Ao todo, são apenas 157, num universo de 16 065 educadores portugueses. Já em Beja é o único, garante.

"Diogo" é repetido vezes sem conta nas vozes miúdas das crianças que estão sob a alçada deste educador na Associação Escola Aberta, em Beja, uma instituição particular de solidariedade social. Encontramo-lo sentado no parque infantil exterior da escola, com os mais pequenos a trepar pela sua camisa ao xadrez e a brincar com a guitarra que carrega na mão. "Diogo, Diogo", repetem. Homem e educador. E nada nesta conjugação parece ambíguo ou digno de discussão para as crianças. Aos olhos delas, ele é o professor e não uma ínfima parte das estatísticas nacionais.

Aqueles com quem é mais difícil de lidar são os adultos, explica. "Tive algumas touradas com mães principalmente, embora a maioria confie porque me conhece há vários anos." Já lá vão quase 16 de carreira. "Várias vezes disseram-me: 'O Diogo não sabe o que faz.' Porque sou homem é que isso acontece", garante.

Um caminho solitário

Sabia exatamente ao que ia quando decidiu ingressar na profissão, embora só muito tarde tenha decidido o que queria fazer profissionalmente. Passou a adolescência "perdido", até ao dia em que a professora Albertina, do 12.º ano, o "encostou à parede" e lhe disse que tinha de se orientar, escolher um futuro. "Propôs Educação porque achava que eu tinha jeito para as crianças, já que tomava conta dos filhos dela", conta. E a ideia não lhe pareceu estranha. Por isso, viajou do Estoril, onde nasceu e cresceu, em direção a Beja, para se tornar estudante universitário. Era o único homem a frequentar a licenciatura de Educação de Infância, no Instituto Politécnico de Beja, distrito onde permaneceu até hoje.

"Só a partir dos anos 1970, quando começou a aparecer formação (pública) que tinha sido extinta, é que a possibilidade foi aberta aos homens", lembra presidente da Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI). Luís Ribeiro é também ele formado em Educação de Infância, embora já não esteja a exercer diretamente junto das crianças. Nem uma década após o início desta reforma, acabou o curso em Évora como "um dos três primeiros homens a saírem formados da área".

Não tem dificuldades em enumerar as razões que estão na origem deste número tão residual. São poucos na profissão não só "pelo preconceito em torno de uma figura masculina cuidadora", mas também porque "a mobilidade na rede educativa é escassa", fazendo que entrem menos educadores, e ainda menos os que são homens. "Os que conseguem acabam por ingressar na rede privada ou solidária."

É um caminho de desencantos fáceis, acrescenta o educador Diogo Guerreiro. Como formador num curso profissional de Educação de Infância, conta que dos poucos rapazes que chegaram às suas turmas, a maioria acabou mesmo por desistir devido à "pressão". "A nossa sexualidade é posta em causa", lamenta.

E nem os vários anos de experiência podem descansar os pais de primeira viagem. "O que se vai ouvindo fora destas paredes, das nossas cidades e às vezes até do país assusta-os." Diogo sentiu-o, imediatamente no início da sua carreira, em 2003, que coincidiu com o auge do processo Casa Pia. "Embora os pais das crianças não o dissessem em voz alta, senti que havia ali alguma cautela", lembra.

O dirigente da APEI, Luís Ribeiro, acrescenta que, no seu tempo, "as mães perguntavam a orientação sexual do educador para compreenderem que tipo de relação teria com as crianças".

Profissão interdita a homens

As estatísticas mostram que a presença masculina numa profissão que se diz feminina tem oscilado ao longo dos anos. Entre 2004 e 2010, por exemplo, a taxa de feminidade variou entre os 96% e os 98%. E já lá vai o tempo em que os homens eram realmente um tabu entre os números - contavam-se zero, antes do 25 de Abril.

"Deus, pátria, família", ditavam as lições de Salazar, onde à mulher cabia a figura de cuidadora e educadora dos menores. Os homens, pelo contrário, eram vistos meramente como trabalhadores, o ganha-pão da casa, com um peso inferior na educação dos próprios filhos. Nos anos em que vigorou o Estado Novo, foi assim mesmo que se determinaram os papéis. E é possível ir ainda mais longe na cronologia. Basta retroceder até à Pré-História, no tempo em que os humanos habitavam as cavernas. Também aqui o sexo feminino era visto como o cuidador, enquanto o homem ia caçar.

A história foi ditando os papéis, sempre estereotipados, e assim o futuro da educação em Portugal. Tornou-se estranho, até exótico, pensar numa figura masculina como educador. Por isso, antes da Revolução de Abril, era proibido um homem exercer esta profissão. Mesmo com a queda deste regime político, estas ideologias foram sobrevivendo aos anos seguintes, deixando partículas desse tempo nas páginas mais contemporâneas da história.

Depois de licenciado, enquanto entregava currículos, José Gonçalves, 30 anos, foi recusado numa instituição infantil como educador devido ao seu sexo. "Disseram-me logo que não aceitavam homens para o cargo", conta o educador de Vila Nova de Gaia. Foi a única vez que tal aconteceu, mas "mostra como a sociedade ainda pensa que o sexo masculino não pode ser o cuidador". Ele próprio ponderou: "Será que vou ser aceite no meio? Como é que a sociedade vai ver o meu papel como homem educador? Ainda por cima estarei a concorrer numa altura tão difícil para a educação", recorda. Decidiu arriscar e descobrir sozinho a resposta.

José lamenta o perfil estereotipado que tem resistido ao passar do tempo, mas é mais otimista: "A sociedade está a mudar." Em grande parte, explica, devido às novas dinâmicas familiares. "Hoje, um pai está mais ou tão presente na educação de um filho comparativamente com a mãe. E isso faz que os casais e as crianças não considerem tão estranho um cenário em que o professor que os espera na escola é homem."

As mentalidades são outras, é certo. Mas "é preciso não nos esquecermos de que continuamos a ser poucos", acrescenta Diogo Guerreiro. Na perspetiva do educador, o trabalho deve ser feito em conjunto com as mães e as mulheres deste país, que "muitas vezes ainda escolhem não dar espaço aos homens para que a revolução aconteça".

Fonte: DN por indicação de Livresco

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