O Grupo de Trabalho de Matemática propõe a substituição de todos os programas e das metas curriculares, atualmente em vigor, em toda a escolaridade obrigatória num relatório com 24 recomendações distribuídas por quatro áreas. O documento está em consulta pública até 12 de outubro e não é visto da mesma forma. Há quem concorde e quem discorde. Há quem defenda e quem critique as sugestões feitas que, no fundo, alteram quase tudo no ensino e na aprendizagem de uma disciplina estruturante.
Queremos que os alunos saibam mais ou queremos que saibam menos? Para Nuno Crato, ex-ministro da Educação, matemático e professor, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, é essencialmento isso que está em discussão. “Coloco-me do primeiro lado da alternativa: acho que os programas devem ser progressivamente mais bem estruturados, mais exigentes e mais ambiciosos. E que devemos tentar que os estudantes sejam mais e melhor ensinados. Tanto em Matemática como nas outras áreas”, refere (...).
“O grupo de trabalho defende o contrário, apesar de os resultados terem melhorado continuamente até 2015. Melhoraram tanto nas avaliações internacionais PISA e TIMSS como na redução do abandono escolar, como na redução das retenções, como nas avaliações internas e externas. Quer dizer, professores e alunos responderam a uma maior exigência e o ensino melhorou”, sublinha. “O que o grupo de trabalho recomenda é essencialmente mudar tudo, substituir tudo, aniquilar tudo; e propor que se mude para um currículo mínimo e quase vazio”, acrescenta.
Em seu entender, há um aspeto mais grave. “Neste momento o que se propõe é ainda pior que o que existia antes dos novos programas. O que se propõe essencialmente é que não haja verdadeiro currículo, mas apenas orientações gerais. Ou seja, que quem o quer possa praticar um ensino pouco ambicioso e pouco exigente”, comenta. “É simples, há quem acha que se deve aprender menos. Lamento, eu penso que se deve aprender mais”.
Nuno Crato vai ao passado para destacar as melhorias a Matemática. No TIMSS, antigamente, em Matemática do 4.º ano, Portugal estava na base da tabela, apenas com a Islândia e o Irão atrás. No PISA, a Matemática e outras áreas, o país estava muito abaixo da média da OCDE e, lembra, “não havia problemas com os programas da altura”. “Agora, que no TIMSS passámos à frente de muitos países, incluindo a Finlândia, este grupo descobre que é preciso mudar os novos programas e as novas metas que nos ajudaram a progredir imensamente até 2015”, repara.
No PISA, os alunos portugueses ultrapassaram a média da OCDE, conseguiram os melhores resultados de sempre e as desigualdades foram reduzidas. “A OCDE afirma, no relatório de 2015, que Portugal foi um dos poucos países que simultaneamente conseguiram aumentar os alunos em melhor situação e reduzir o número de alunos com mais deficiências, tanto em Leitura, como em Ciência e em Matemática. Portugal foi também um dos dois únicos países europeus (o outro foi a Suécia) a progredir entre 2011 e 2015 nas metas 2020 para reduzir o número de alunos com deficiências básicas em Leitura, Ciência e Matemática”.
“Quer dizer, quando os programas estavam mal estruturados e eram pouco exigentes, nós obtínhamos resultados péssimos. Agora, que os programas foram mudados para programas mais rigorosos, mais bem estruturados e mais exigentes e quando tudo melhorou, é preciso voltar atrás! Não faz qualquer sentido”, afirma o ex-ministro da Educação.
Adequação, articulação, coerência
A Associação de Professores de Matemática (APM), numa primeira reação, concorda com a pertinência do relatório do grupo de trabalho. Há muito tempo que a APM vinha a pedir uma avaliação da situação do ensino da Matemática no nosso país. “As recomendações, no seu conjunto, também, numa primeira leitura, parecem cobrir os domínios fundamentais de intervenção: o currículo de Matemática (adequação, articulação, coerência, flexibilidade, alinhamento com as orientações da investigação internacional e nacional), as dinâmicas de desenvolvimento curricular, a avaliação das aprendizagens e a formação de professores”, adianta Lurdes Figueiral, presidente da APM (...).
Globalmente, numa primeira reação resultante da leitura de pouco mais do que as recomendações, a APM concorda com as sugestões, embora, segundo Lurdes Figueiral, “haja certamente a necessidade de perceber mais a fundo as razões pelas quais são apresentadas, havendo também aspetos que nos suscitam dúvidas e aspetos que, nesta primeira aproximação, não vemos espelhados nestas recomendações”.
A direção da APM está a estudar e a analisar o relatório e a preparar iniciativas para dinamizar um debate interno alargado. Além disso, vai enviar um questionário sobre o assunto a todos os associados, promover debates presenciais locais e outras consultas, e ainda organizar um conselho nacional da associação aberto à participação dos associados. Com esta dinâmica, a APM quer participar na consulta pública “com um parecer sustentado por uma ampla participação dos associados”.
“Recomendamos também, independentemente de haver ou não relação com a APM, que, sobretudo os professores, mas também outros agentes educativos participem neste debate público a larga escala. Consideramos de especial importância que as instituições de Ensino Superior que fazem formação inicial de professores dos diversos graus de ensino contribuam com o seu parecer especializado”, sugere Lurdes Figueiral.
“Visão insípida e inestética”
A Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) criticou, desde a primeira hora, a constituição do grupo de trabalho, sobretudo pelo caráter pouco representativo da comunidade científico-pedagógica dos seus membros e pelo facto de ser coordenado pelo autor do Programa de Matemática de Secundário de 1997, reformulado em 2001, e revogado aquando da implementação dos Programas e Metas Curriculares - Matemática A em 2015. “Dificilmente uma equipa com estas características conseguiria fazer um estudo técnico objetivo, o que se veio infelizmente a confirmar”, refere Filipe Oliveira, presidente da SPM (...).
“Parece absurdo recomendar-se a obliteração de todos os documentos curriculares em vigor, com a agravante de nem se propor nada de concreto em troca, apenas princípios muito gerais, em grande parte discutíveis. Há uma lição que parece não ter sido aprendida: é por sucessivos melhoramentos que se conseguiu, entre os finais dos anos 90 e 2015, inverter dramaticamente um quadro nacional em tudo deplorável, transformando-o num sistema de ensino de sucesso e de referência a nível internacional”, sublinha.
O responsável destaca vários pontos do relatório que, em sua perspetiva, é “uma análise tendenciosa que omite elementos fundamentais”. Quanto ao programa da autoria do professor Jaime Carvalho e Silva, o presidente da SPM adianta que “nunca houve em Portugal um programa do Secundário mais criticado pelas suas insuficiências científicas e pedagógicas do que o Programa do Secundário de 1997, reformulado logo de seguida em 2001, sem melhorias significativas”. “Contudo, todos os documentos oficiais que dão conta destes factos e que são fundamentais para se compreender a evolução do ensino da Matemática em Portugal nos últimos anos (tarefa que este grupo de trabalho supostamente se propõe executar) estão sistematicamente ausentes do estudo”.
Filipe Oliveira destaca, a título de exemplo do que afirma, vários elementos como os critérios de elaboração de programas de Matemática do 7.º ao 12.º ano, do Instituto de Inovação Educacional, em setembro de 1998. A análise dos programas existentes em Portugal e no estrangeiro tem algumas observações: “Temos muitas dúvidas sobre a profundidade de tratamento dos temas”, “enormes deslizes, ambiguidades”, “um texto de má qualidade, desequilibrado”.
Outro exemplo. A análise dos programas do Ensino Secundário da Universidade Técnica de Lisboa, em 2000, assinado por todos os presidentes dos departamentos de Matemática dessa universidade. Sobre o ajustamento de 2000 escrevem que há “graves lacunas: incapacidade de abstração, ausência do conhecimento do método próprio da Matemática, profundo desconhecimento de conceitos básicos de Análise Matemática e Geometria”.
Mais um exemplo. Os novos programas de Matemática para o Ensino Secundário, de Luís Sanchez, em 1997, subscrito pelo Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. E os seguintes comentários. “Os programas espelham uma visão da Matemática insípida, inestética e em alguns pontos obscurantista. Com este estilo de abordagem, o assunto que se vai pretender ensinar será cada vez mais transformado numa caricatura de Matemática”.
Desestruturar e empobrecer o ensino
O relatório recentemente divulgado é, para Filipe Oliveira, “uma análise tendenciosa que desvaloriza sistematicamente as conquistas dos programas atualmente em vigor”. “Em contraponto, o documento desvaloriza os dados objetivos que mostram a importância que teve para o país um currículo cientificamente bem construído, organizado e corretamente estruturado”. Dados oficiais da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) dão conta, refere, e de forma sistemática, “de uma subida estatisticamente significativa das médias internas dos alunos aquando da introdução das metas e a quebra nas taxas de retenção. O estudo cita estes dados mas não os relaciona com os novos programas”. Há ainda, acrescenta, a “relação evidente entre os progressos dos alunos no TIMSS, e a introdução de metas curriculares no 1.º Ciclo, parecendo conceder o relatório que de facto houve progressos mas que podia ter havido mais”.
“Além disso, o documento apresenta uma análise grosseira, parcial e com erros factuais do programa e metas curriculares em vigor”, repara. Para o presidente da SPM, o grupo de trabalho fez um documento político e não um estudo técnico. “É visível por que razão foi escolhida uma equipa que há anos critica o programa em vigor, antes de qualquer estudo ter sido publicado, e que profetizou um desastre no ensino da Matemática com os novos programas”.
Filipe Oliveira recua alguns anos, à conferência “Evitar o Desastre no Ensino da Matemática” sobre a proposta de um “novo” programa de Matemática A de Jaime Carvalho e Silva, em 2014. “Esta conferência profetiza um desastre. Hoje sabemos que os testes internacionais de 2015 foram o maior sucesso de sempre dos alunos portugueses, que as classificações internas dos alunos não param de subir desde 2013/14 e que as taxas de retenção também têm baixado consistentemente desde esse ano”.
Em sua opinião, a bibliografia do relatório é inadequada. “A bibliografia é datada e corresponde às opiniões de uma fação das Ciências da Educação que não é de todo representativa dos grandes movimentos internacionais. Deixa de fora literatura oriunda da Psicologia Cognitiva e das Neuro-Ciências, que são de facto essenciais para uma abordagem científica e moderna do problema da aprendizagem”, comenta.
Na visão da SPM, o relatório desestrutura e empobrece o ensino. “Substituir o programa em vigor e apoiar politicamente o Programa de Flexibilidade e Autonomia Curricular do sr. secretário de Estado João Costa” são, para Filipe Oliveira, os objetivos do documento. “Veja-se a este propósito a Recomendação 2: recomenda-se um currículo nacional de Matemática com nível de decisão local, na senda da Flexibilidade e Autonomia Curricular”.
“Dar liberdade curricular praticamente total aos professores e às escolas cria uma situação de profunda desigualdade. As dificuldades dos alunos com os temas fundamentais e estruturantes podem ser rapidamente varridos para debaixo do tapete ao abrigo da flexibilidade e substituídos esses temas por atividades e projetos sem qualquer pertinência formativa”. A SPM opõe-se fortemente a esta ideia que diz ser “muito perigosa” e explica porquê. “Quebra em particular a igualdade das oportunidades de aprendizagem que eram garantidas aos alunos por metas de desempenho cognitivo traduzidas em conhecimentos que todos deviam adquirir e em capacidades que todos deviam desenvolver”.
“É curioso constatar que em nome de uma suposta igualdade, estas ideias adensam a desigualdade, ampliam desigualdades regionais e socioeconómicas, comprometendo em particular o papel da escola enquanto elevador social. Na verdade, precisamos de currículos inclusivos que ofereçam a todos os alunos as mesmas oportunidades”, defende o presidente da SPM.
Fonte: Educare por indicação de Livresco
1 comentário:
À boa maneira portuguesa, deitar tudo abaixo para construir de novo. Ou deveria dizer desconstruir... Decididamente, somos o país das ruturas, e não das reformas.
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