Quando for grande, a Laura bem pode ser a diretora desta escola. Tem 7 anos, está no 2.º ano e é mais desembaraçada do que muitos miúdos de 12. Com um brilho nos olhos, pergunta-nos se queremos fazer uma visita guiada pela Escola Básica de Fonte Santa, no agrupamento da Marinha Grande Poente. A resposta é afirmativa e Laura, vestindo a pele de anfitriã, mostra-nos tudo: o refeitório, a sala do pré-escolar, o sítio onde trocam os sapatos da rua pelas socas, os recantos do recreio, a horta do 1.º ciclo, a árvore onde costuma apanhar amoras — “Ou eram framboesas?” — e a sala da CAF. Não hesita quando lhe perguntamos o que quer dizer a sigla. “É a Componente de Apoio à Família, onde ficam as crianças até os pais as puderem vir buscar.”
O que vimos antes desta visita guiada, na escola que fica à beira de um pinhal, tem todos os ingredientes para ser uma receita de insucesso escolar. Antes do recreio, Laura partilhou uma sala de aula com mais 34 alunos, numa turma com crianças do 1.º ao 4.º ano. Na teoria, o cenário soa a péssimo. Na prática, não podia funcionar melhor. As estatísticas confirmam: por aqui, os chumbos são residuais e, garantem-nos os três professores permanentes daquela sala, isso só é possível porque as crianças, de facto, aprendem.
A Fonte Santa é uma das 10 escolas da Marinha Grande Poente, um dos sete agrupamentos do Projeto Piloto de Inovação Pedagógica (PPIP), que, atualmente, tem 2800 alunos distribuídos entre a educação pré-escolar e o 12.º ano. Com esta experiência, um dos objetivos do Ministério da Educação é perceber se é possível chegar à taxa de retenção zero, como explicou o secretário de Estado da Educação ao Observador, João Costa, em dezembro passado. A alternativa a chumbar tem de ser sempre aprender e nunca uma subida artificial das notas. Mas para isso é preciso inovar e apostar na criatividade porque participar no projeto deu 100% de autonomia à escola, mas nem um recurso a mais.
“Aqui nunca pusemos a questão da retenção em cima da mesa, nunca me pareceu que fosse isso o fulcral. A nossa grande preocupação era a qualidade das aprendizagens dos alunos. A alternativa a chumbar tinha de ser aprender”, explica o diretor do agrupamento, Cesário Silva.
Os resultados estão à vista: “No último ano, no 1.º ciclo, houve sete retenções entre os cerca de 530 alunos. Em alguns casos, tivemos de perceber se a retenção significava um momento de aprendizagem, por exemplo para alunos estrangeiros e para miúdos condicionais que entraram para a escola com 5 anos… No 2.º ciclo, tivemos apenas uma retenção em 350 alunos. No 3.º ciclo, ficámos nos 2%. E, praticamente, não temos abandono. Mas se me perguntar se fazemos o pino para os miúdos aprenderem, garanto-lhe que fazemos”, argumenta Cesário Silva.
Apresentada como “o problema mais grave do sistema de ensino em Portugal”, em 2015, a retenção dos alunos tem estado sempre no topo dos discursos de vários ministros da Educação. Naquele mesmo ano, o país estava no top 3 dos que mais chumbam na OCDE — sobretudo entre os alunos com mais dificuldades económicas e sociais. Todos concordam que é um erro simplesmente deixar passar os alunos, de forma administrativa. Mas é difícil encontrar a forma certa de conseguir que nenhum aluno tenha de reprovar, simplesmente porque aprendeu.
“Não é combater o insucesso, é promover o sucesso”
Quando começaram a olhar para o problema dos chumbos no agrupamento, onde, conta Cesário Silva, tanto andam os filhos dos operários das fábricas como os dos grandes industriais do concelho, perceberam que as soluções que ofereciam não passavam de remendos. “Antes de as dez escolas fazerem parte do mesmo agrupamento [em 2013], tínhamos um problema na escola secundária: os alunos chegavam ao 7.º ano com muitas lacunas que podiam ter sido resolvidas antes, de forma precoce. Mas não foram. A nossa atuação acabava por ser sempre remediadora.”
Já há muito tempo que o insucesso escolar preocupava Cesário Silva. Enquanto diretor da escola Secundária Engenheiro Acácio Calazans Duarte, uma escola independente por ser TEIP (Território Educativo de Intervenção Prioritária), diminuir os chumbos era uma batalha antiga, que estava a ser ganha. Quando as dez escolas se uniram, e o carimbo TEIP se estendeu a todas, a possibilidade de melhorar aprendizagens interessava a todos, da pré ao secundário.
“Identificamos crianças que, logo no 1.º ano e algumas no pré-escolar, têm problemas. As educadoras queixam-se de que as crianças têm um vocabulário muito limitado e que têm de ser muito estimuladas. A nossa aposta começou aí: na comunicação. A intervenção começa no jardim de infância. Hoje estamos cada vez mais a deixar as medidas de remediação. Já tivemos cursos de formação e educação, já tivemos cursos vocacionais [permitem concluir a escolaridade obrigatória com percursos mais flexíveis] e deixámos de os ter porque não precisamos deles. Já não temos público”, sustenta o diretor.
Mesmo antes de integrarem o PPIP, a convite da Direção Geral de Educação, a retenção era cada vez mais residual, conta Cesário Silva. “Esse trabalho começou em 2013, com a entrada no novo agrupamento. O que fazemos não é combater o insucesso, é promover o sucesso. Combater o insucesso é a atitude remediadora. Não podemos perder sucessivas gerações de jovens porque todos falhámos, porque não estivemos atentos, porque não tínhamos recursos, porque a tutela nunca pensou que prevenir era mais barato e eficaz do que remediar. Sermos TEIP trouxe-nos este foco: detetar problemas, investir e ser criativos para os ultrapassar.”
A criatividade manifestou-se de várias formas. No ensino pré-primário e no 1.º ciclo, a grande aposta é na comunicação, garantindo que as crianças ganham gosto pela leitura e pela escrita, que adquirem vocabulário e são fortes na oralidade. As escolas tornaram-se espaços abertos de aprendizagem, onde os alunos também se ensinam uns aos outros.
“No nosso modelo de organização, o ensino pré-escolar funciona de uma forma deliciosa, são os espaços de maior aprendizagem. É ali que percebo que as nossas crianças são capazes de trabalhar de forma colaborativa, são capazes de negociar, de discutir, de correr riscos — nós, adultos, temos de perceber até onde podem ir e estar na retaguarda para os amparar. Temos salas heterogéneas e isso talvez seja um dos segredos: quando valorizamos a diferença, quando mostramos que aprendemos uns com os outros, as coisas funcionam”, explica o diretor.
Na Fonte Santa, a sala de Laura — e dos outros 34 colegas — tem três professores em permanência. Fernando Emídio, Geraldina Silva e Paula Botas têm turmas atribuídas no papel, mas, no dia a dia, as fronteiras diluem-se. “Aqui não há a minha sala, estamos todos juntos e vamos partilhando”, diz a professora Geraldina, que tanto pode estar a dar um conteúdo de 1.º como de 4.º ano. Da mesma forma, se um aluno do 2.º ano souber tudo o que há a saber sobre uma matéria, não há motivo para não poder avançar e até partilhar o que aprendeu com os mais velhos.
“Administrativamente, temos as turmas atribuídas, temos de ter, mas, na prática, elas não existem. Quando fazemos o grosso da planificação, não sabemos qual de nós vai trabalhar que matéria. Não temos essas tarefas definidas. Tem é de haver uma grande cumplicidade para as coisas funcionarem. Mas não estamos sempre de acordo: é a partir dessa discórdia que conseguimos criar mais alguma coisa, porque vamos descobrindo uns com os outros”, acrescenta Paula.
A turma de 35 alunos tanto pode estar toda junta, como tem momentos em que é dividida em grupos mais pequenos e que não têm necessariamente de estar relacionados com o ano que cada estudante se encontra a frequentar. É assim que o trabalho colaborativo passa também para os alunos. “Um dia por semana há o conselho de cooperação de turma, onde fazemos a reflexão semanal entre alunos e professores. Fica tudo registado em ata e eles já sabem como presidir uma reunião: há sempre um presidente e um secretário. É um momento muito importante da nossa semana”, conta Paula.
Outro momento alto é quando os mais velhos vão ensinar os mais novos, conta a educadora Aida Mira, responsável pela sala da pré. “O que mudou mais foi esta articulação entre os diferentes ciclos. Hoje vejo que os miúdos estão mais autónomos e com mais vontade de comunicar. Como os grupos não são homogéneos, aproveitamos os saberes dos mais velhos. Eles sentem-se importantes por estarem a explicar aos pequenos e ficam mais responsáveis.”
Cada ciclo de ensino tem as suas necessidades e não há receitas repetidas. Para o 5.º e o 6.º ano, porque se concluiu que a passagem de um professor para vários era um dos obstáculos às aprendizagens, reduziu-se o número de docentes. Em vez de se ter um professor por disciplina, diminuiu-se o conselho de turma: o professor de matemática passou a dar também ciências, o de português acumula com inglês ou história e geografia, e a educação visual e a tecnológica foram fundidas numa só disciplina.
“Foi fundamental para os professores poderem trabalhar melhor em equipa. Como tínhamos turmas com muitos alunos, decidimos criar as oficinas projetos — acabam por ser semelhantes aos DAC (Domínios de Autonomia Curricular) que a Flexibilidade Curricular trouxe mais tarde para as escolas”, detalha Cesário Silva.
Nesses momentos, as turmas são desdobradas e trabalha-se em grupos mais pequenos, normalmente com dois professores na sala. “A grande mais-valia de trabalhar por projeto é o trabalho colaborativo. É estar sempre a fazer ajustamentos. Os alunos planificam o trabalho, escolhem coisas difíceis e têm de ir arrepiando caminho, vão reajustando o trabalho até chegar a qualquer coisa palpável que vão produzir”, defende Maria Fernanda Cruz, coordenadora do projeto PPIP do 5.º e 6.º ano e que, na Marinha Grande Poente, envolve 16 turmas.
“Quando se apresenta um projeto, pratica-se a oralidade, o à-vontade e nota-se a diferença nos alunos. Estão mais libertos e mais seguros do que estão a fazer. Quando cá chegarem os que começaram com o PPIP logo no 1.º ano, acredito que se vai notar uma grande diferença”, acrescenta a professora de História e Geografia de Portugal.
“Se houvesse uma palavra para distinguir estes alunos dos outros, se fosse um sentimento, eu diria alegria. Até a relação com o professor é diferente e eu tenho 38 anos de serviço. Não são salas de aula silenciosas: se não estou a fazer uma ficha, se estou a fazer uma colagem, uma pintura, a preparar um cenário, é diferente. Até as crianças com necessidades educativas especiais permanentes brilham em coisas que não estávamos à espera. Saem delas talentos que não conhecíamos”, remata Maria Fernanda Cruz.
Nem tudo são mares de rosas, acrescenta. Entre o corpo docente, nem todos acreditam que este é o melhor caminho, nem todos têm a mesma filosofia ou visão de escola. Por outro lado, o PPIP não trouxe mais recursos, nem humanos nem materiais, e alguns espaços não acompanham o andamento do projeto. “É a queixa que mais ouço. Precisamos de mais pessoas, mais recursos, mais tecnologia. Apesar disso, isto não volta atrás. O caminho vai ser por aqui e, entre os sete agrupamentos, há até quem esteja a fazer percursos mais ambiciosos”, conta a professora.
O projeto piloto começou em 2016/2017, um ano zero que serviu para reflexão da equipa. No ano letivo passado, começou a funcionar nas turmas do 1.º ciclo e nas do 5.º ano. Este ano, estendeu-se ao 6.º e, pouco a pouco, ao 7.º ano. Falta chegar ao ensino secundário. Mas antes disso, Cesário Silva defende que há um longo caminho a fazer: o currículo está muito pulverizado e o foco continua a ser nos exames nacionais.
Chumbos em Portugal: cada vez menos, mas ainda batem recordes da OCDE
Quando se olha para as taxas de retenção escolar em Portugal, há uma boa e uma má notícia. A boa é que o avanço tem sido significativo e há cada vez menos alunos a chumbar em Portugal. Em 2016/2017, atingiu-se o valor mais baixo da última década. A má é que ainda somos o terceiro país onde mais jovens chumbam antes dos 15 anos.
Dados do PISA 2015 (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) mostram que Portugal está entre os países da OCDE com taxas de reprovação mais elevadas e 31,2% dos alunos com 15 anos já tem pelo menos um chumbo no seu percurso escolar. Pior que os estudantes portugueses, só os espanhóis (31,3%) e os belgas (34%). No mesmo relatório, a taxa média da OCDE rondava os 13%, ou seja, o valor nacional era quase o triplo da média internacional.
Na altura, os dados preocuparam o ministro da Educação: “Estamos, infelizmente, numa montra em que não queremos estar, em que não nos podemos dar ao luxo de estar: o dos três países da OCDE que apresentam maior taxa de retenção entre as mais de sete dezenas de países ou economias que este relatório analisa, quase triplicando a taxa média da OCDE, que ronda os 13%”, apontou Tiago Brandão Rodrigues, em dezembro de 2016.
Há outra característica importante no perfil dos estudantes que reprovam em Portugal: quase 90% dos alunos têm um baixo estatuto socioeconómico, segundo dados do relatório PISA anterior, de 2012.
Todos estes dados, que se repetem invariavelmente nos relatórios internacionais, ainda que com melhorias, têm preocupado os ministros de Educação de diferentes governos e os principais atores da Educação em Portugal.
Em 2015, quando David Justino era presidente do Conselho Nacional de Educação, o órgão independente emitiu uma recomendação sobre retenção escolar nos ensinos básico e secundário, onde os chumbos eram considerados “a situação mais grave do sistema de ensino em Portugal”. A posição do antigo ministro da Educação (2002-2004) não mudou, embora frise que a recomendação do CNE era do organismo e não sua. Continua a defender que este é um problema no sistema educativo português, que tem de ser combatido, embora admita que levará anos até se chegar à situação ideal. E deixa um alerta sobre aquilo a que chama “a cultura da nota” e a pressão excessiva para que se obtenham bons resultados.
“Em relação à retenção, a cultura da nota é um problema: é um problema daqueles que só lutam pela nota esquecendo o resto, mas também daqueles que só querem, no fundo, elevar as notas para que não haja retenção. É necessário ver os dois lados. O que dizíamos, em 2015, era que os resultados deviam melhorar à custa de melhores aprendizagens, não de alterações estatísticas”, sustenta o antigo ministro de Durão Barroso.
Nas entrelinhas das alterações estatísticas pode ler-se as chamadas passagens administrativas. Sobre estas, a posição de David Justino é clara. “Nem pensar nisso. Nunca disse que se deviam elevar as notas artificialmente para que os miúdos não fiquem retidos. Por isso, disse na altura que este processo de redução das taxas de retenção era um processo que ia demorar muitos anos. Passaria precisamente por termos alunos a ter melhores aprendizagens.”
Não tem, no entanto, a certeza de que em alguns casos a descida das taxas de retenção não possa estar a acontecer de forma artificial.
“O problema que levanto hoje em dia é se esta diminuição das taxas de retenção resultam de haver melhores aprendizagens ou se resultam de uma pressão externa sobre as escolas e os professores para que não chumbem tanto. Não o consigo demonstrar, mas há muitos professores que se sentem coagidos a não chumbar porque têm orientações nesse sentido. Se isso é um caso particular ou outro, não fico preocupado. Se é um fenómeno mais generalizado, então fico preocupadoporque o que está a melhorar não são as aprendizagens, são as notas. E aí a cultura da nota também é negativa”, defende o vice-presidente do PSD.
Uma das recomendações do CNE, em 2o15, já é posta em prática na Marinha Grande Poente: acabar com as pautas públicas. “Era um aspeto simbólico”, diz Justino. “Porque é que se publicam pautas? Porque é um ato público. Mas essas pautas não vão ajudar os alunos a ter melhores aprendizagens. Pelo contrário, em alguns casos até pode ser um fator de estigma sobre os mais fracos. E eu não ganho nada em saber as notas dos outros.”
Para o antigo ministro da Educação, saber a média da turma para poder compará-la à obtida é interessante, mas pouco mais. Já as notas quantitativas devem continuar a existir para que possa haver esse efeito de comparação. Não têm é de ser públicas. “Em algumas situações, a publicação das notas afasta o aluno, discrimina-o. Não vejo a vantagem de se fazer afixação pública das pautas. Aquilo que é importante é ter o feedback, uma análise e uma orientação para saber como melhorar. Nesse sentido, é possível que o fornecimento de relatórios individuais possa ter um efeito mais positivo do que a afixação das pautas. Mas o elemento de comparação é importante: se tive um 12 e a maioria da turma teve acima dessa nota, quer dizer que a minha é uma nota fraca, que posso ter mais.”
É exatamente isso que é feito no agrupamento de Cesário Silva, onde do 1.º ao 7.º ano já funcionam por semestres. “Há só uma pauta no final do ano. E diz ‘transita’ ou ‘não transita’, no 5.º. E diz ‘concluiu’ ou ‘não concluiu’ no 6.º ano. Não publicamos pautas de avaliação, mas atribuímos fichas ao aluno, uma espécie de relatórios por domínios, muito semelhantes aos Relatórios Individuais das Provas de Aferição (RIPA).”
Poder funcionar por semestres, em vez de por períodos, é uma reivindicação antiga dos diretores de agrupamento e de escolas públicas e da associação que os representa, a ANDAEP. “Os semestres contribuiriam para o sucesso escolar. Este ano, o terceiro período vai ter 30 dias úteis de aulas. O segundo teve 64 dias, o primeiro teve 66. Se um aluno tiver positiva no primeiro e no segundo período, alguém tem coragem de o chumbar no terceiro? Estes alunos já sabem que passaram e podem tornar-se indisciplinados. O inverso também é verdade: quem só teve negativas já sabe que não passa. Se trabalharmos por semestres, a nota tanto pode piorar como melhorar no segundo semestre. Era uma boa opção para combater os chumbos, mas com avaliações intermédias, mantendo as pausas”, defende Filinto Lima, presidente da ANDAEP.
Cesário Silva concorda e lembra um ditado popular usado na escola. “Páscoa alta, chumbo na malta. Temos de sair de um ano letivo muito agarrado às festas e às férias que temos, e que nos faz ter períodos muito grandes e outros muito pequenos. Quando a Páscoa é tarde, como este ano, o terceiro período é muito curto. Aqui, como funcionamos por semestres, fazemos avaliações intercalares, por domínios, com informação muito mais rica que a nota, com descrição do tipo de trabalho que o aluno tem de fazer. Todos os pais entendem esta opção? Não, principalmente aqueles que estavam muito focados no teste, em que os filhos eram excelentes alunos, porque eram diariamente preparados por explicadores. Agora têm dificuldades. Se calhar não era aprendizagem, era memorização.”
As escolas do insucesso não estão espalhadas por todo o país
Olhando para os números globais da retenção, com 150 mil alunos do ensino básico e secundário a chumbar, em média, todos os anos, é fácil acreditar que se trata de um problema nacional e que afeta todas as escolas sem exceção. Mas não é isso que acontece, como ficou provado no estudo “Aprender a Ler e a Escrever em Portugal”, coordenado por Maria de Lurdes Rodrigues, antiga ministra, atual reitora do ISCTE e a primeira mulher a liderar a instituição.
No estudo, a equipa olhou para escolas do básico onde a retenção no 2.º ano de escolaridade estava acima dos 30%. Voltando aos dados do PISA 2015, Portugal é o segundo país da OCDE com mais reprovações precoces, apenas ultrapassado pela Bélgica: 17% dos alunos chumbaram pelo menos uma vez no ensino primário. Pior, tem a taxa mais alta de estudantes que chumbam duas vezes nos primeiros seis anos de escolaridade (5,4%), o dobro da percentagem do Chile, país que está em segundo lugar.
Há décadas que o padrão de chumbos no 2.º ano se mantém elevado, acima dos 10%, a taxa mais alta dos primeiros quatro anos de ensino. Entre 2001 e 2009 houve uma descida significativa (6,5%), mas os valores voltaram a aumentar e estão, de novo, na ordem dos 10%.
“A primeira grande surpresa para mim foi a concentração. A retenção não é um problema disseminado pelo país. Há a concentração de chumbos no 2.º ano, há concentração em determinadas regiões e, dentro dessas regiões, há concentração dentro de algumas escolas”, conta Maria de Lurdes Rodrigues. “Estas escolas, com 30% de retenção, fazem subir a média nacional e percebemos que há escolas com níveis muito elevados e outras onde o chumbo praticamente não existe.”
O estudo faz referência a 900 escolas do ensino primário, de um total de 3.866, onde não há chumbos. A explicar esta diferença está o facto de as 541 “escolas do insucesso”, como foram apelidadas no estudo, serem estabelecimentos que estão à margem. À margem do agrupamento, à margem dos centros de decisão e de reflexão.
“Há uma segmentação do problema, são escolas marginais que não têm as melhores condições, muitas vezes são marginais dentro do próprio agrupamento, estão distanciadas dos centros de decisão. E o problema vai sendo empurrado para o lado. Se, num agrupamento de 10 escolas, só duas dão problemas, os diretores olham para as oito que estão bem”, explica a antiga ministra da Educação (2005-2009). “Também percebemos que há escolas onde caem os problemas todos. Pensava-se que a escola tem força para mudar o meio. Não tem. Uma escola não tem força para mudar o meio, o meio é que influencia a escola.”
No estudo, publicado em 2017, percebe-se que vários fatores se acumulam sobre as escolas do insucesso: não tem condições; têm falta de recursos; têm maior percentagem de alunos com dificuldades de aprendizagem; não têm uma liderança focada no problema; e não há estratégia para resolvê-lo. Maria de Lurdes Rodrigues sublinha que aquestão acaba por ser atirada para fora da sala de aula, culpando-se o resto, como os problemas de concentração das crianças, o baixo nível socioeconómico da região ou as famílias que não se interessam pelo percurso escolar dos filhos.
“As escolas percebem que têm um problema, mas não o enfrentam. O estudo durou dois anos e, em algumas, quando chegávamos, já tinham resolvido o assunto. Na maioria das vezes foi porque o diretor do agrupamento enfrentou o problema e isso fez a diferença. Houve escolas que saíram de um buraco negro porque passaram a ter condições, porque foram alocados recursos, porque houve envolvimento da direção da escola, porque se conseguiu trazer a escola para dentro do centro de decisão. A liderança é fundamental para resolver o problema”, detalha a reitora do ISCTE.
O insucesso escolar e a baixa condição socioeconómica andam de mão dada em Portugal. O facto de a área de residência ter sido, nos últimos anos, uma das prioridades determinantes para um aluno ser colocado numa escola pública tem levado a que, na mesma cidade, haja estabelecimentos de ensino vizinhos onde, num deles, há alunos de classes baixas e, no outro, crianças de classes altas. Esta perceção levou a que, no último ano letivo, o Ministério da Educação mexesse nas prioridades. A Ação Social Escolar, apoio dado a alunos carenciados, passou a ser fator de desempate entre alunos que vivem na mesma área de residência.
Maria de Lurdes Rodrigues alerta para os efeitos negativos que a excessiva concentração de alunos com problemas de aprendizagem pode trazer. “É muito diferente uma escola ter dez alunos com dificuldades e pôr um em cada turma, ou pôr os dez na mesma. É diferente um professor ter de lidar com um aluno ou com dez com problemas de aprendizagem. Se tenho 10, é impossível de resolver”, explica. A mesma lógica é usada para sublinhar a dificuldade que uma escola tem se concentrar dentro dos seus muros todos os alunos com dificuldade de aprendizagem da região.
Cultura de retenção. Existe ou não em Portugal?
O que é que explica que os números de retenção sejam tão elevados em Portugal? Partindo do princípio que os alunos portugueses não têm maiores dificuldades de aprendizagem do que os de outros países, como é possível haver diferenças tão grandes nas taxas de chumbo? Entre os especialistas ouvidos pelo Observador, há duas teorias avançadas. A primeira é a de que há uma cultura de retenção impregnada na comunidade educativa (pais incluídos), a segunda é de que, para muitos professores, não há alternativa ao chumbo quando os seus alunos não aprendem.
Maria de Lurdes Rodrigues rejeita a primeira teoria. “É muito importante perceber que não há uma cultura de retenção em Portugal. O que existe é um fenómeno em algumas escolas do país e que são exatamente as que estão à margem. Quando fomos estudar o excesso de repetência, percebemos que há um acantonamento — que foi uma coisa que muito me surpreendeu. Pensamos que o chumbo está disseminado pelo país e não está. São escolas que estão distantes dos centros de reflexão”, insiste.
Algumas das conclusões do estudo “Aprender a Ler e a Escrever em Portugal” mostram isso mesmo: 87% dos professores das escolas do insucesso consideravam que repetir o ano trazia vantagens para os alunos, mesmo reconhecendo que um chumbo traz riscos de desmotivação. No final, a maioria considerava que chumbar dava mais tempo aos alunos para consolidar aprendizagens. Da mesma forma, os professores das escolas visitadas discordavam da proibição de chumbar um aluno no 1.º ano (só é possível chumbar por faltas) e apontavam esse como o principal motivo para as elevadas taxas de retenção no 2.º ano.
“Imagine que é uma escola no fim do mundo. Não há alternativa à repetência porque para o professor passar o aluno sem saber não é alternativa. E não é. O professor sente que não tem outra hipótese, mas não chega à reflexão de que se os alunos não aprendem então vai ser preciso que aprendam de outra forma”, argumenta a antiga ministra da Educação de José Sócrates. É por isso que insiste na ideia de que estas escolas estão à margem, longe dos centros de reflexão que estudam as alternativas pedagógicas que promovem aprendizagens.
Opinião divergente tem Maria Emília Brederode, presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), que, em novembro passado, no prefácio do “Estado da Educação”, um dos mais importantes relatórios para perceber como vão as escolas e os alunos em Portugal, defendeu estar na hora de acabar com a cultura da retenção em Portugal.
“Acho que há uma cultura do chumbo, absolutamente. Olha-se para isto com naturalidade. O chumbo é uma arma para levar os meninos a aprender, nem passa pela cabeça que se possa aprender sem haver essa ameaça, não é? Quando digo estas coisas olham para mim como se fosse ingénua, mas, de facto, é uma cultura que existe em Portugal e que não existe noutros países. Depois culpa-se o meio, a família… não interessa. Eles estão lá para aprender, vamos fazer com que aprendam, apesar das dificuldades que possam ter”, defende.
Nuno Crato, ministro da Educação entre 2011 e 2015 no governo de Pedro Passos Coelho, pede que não se aponte o dedo ao corpo docente. O problema passará ainda muito pela falta de meios nas escolas. “Não culpemos os professores! Não têm sido dadas aos professores e às escolas as ferramentas necessárias. Começámos a fazê-lo há alguns anos, disponibilizando créditos adicionais, em horários de professores, e possibilitando o agrupamento e apoio especial, temporário, de alunos com mais dificuldades, para além do tempo letivo. E isso tem dado alguns resultados, mas ainda há muito a fazer.”
É esse também o ponto do presidente da associação que representa diretores de agrupamentos e escolas públicas (ANDAEP). “O paradigma ainda não mudou nas nossas cabeças, incluindo na dos pais. Não sei se há uma cultura de chumbo, mas há a cultura do teste. Se um professor não fizer dois testes por período, os pais dizem logo que ele não está a avaliar os alunos. Ao nível da avaliação, continuamos a avaliar muito os estudantes pelos testes que fazem quando há muitas outras ferramentas para o fazer”, diz Filinto Lima que acredita que ainda há a ideia de que chumbar um aluno serve para ele recuperar as aprendizagens que ficaram por fazer.
“Os alunos quando chumbam é uma bola de neve. Ficam desmotivados, vão frequentar aulas de muitas disciplinas a que tiveram positiva, o que não faz sentido. É uma desilusão para o aluno. Não acho que os professores reprovem por prazer, mas quando o aluno não adquire as competências essenciais nas suas disciplinas o professor não tem outra alternativa que não seja chumbar”, esclarece o presidente da ANDAEP.
O chumbo é benéfico para o aluno?
A maior parte dos estudos internacionais, incluindo os da OCDE, conclui que chumbar um aluno não lhe traz benefícios nas aprendizagens futuras. Em Portugal, em outubro de 2016, um estudo publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, “Será a repetição de ano benéfica para os alunos?” conclui que os benefícios até existem, mas não numa ordem de grandeza suficiente para compensar o resto.
“É sempre muito difícil estudar os efeitos da retenção quando as comparações são mal feitas. Às vezes, até nas conclusões do PISA há algumas conclusões forçadas. Nós comparámos o que é comparável: pegámos só em alunos que tinham tido negativa nas duas provas de aferição do 4.º ano e que, à partida, tinham dificuldades quer a matemática quer a português. Depois, fomos ver o que lhes acontecia quando faziam a prova de 6.º e quanto tempo é que levavam para acabar esse ano de escolaridade”, explica Ana Balcão Reis, que assina o estudo com Carmo Seabra e Luís Catela Nunes, sendo este último o coordenador.
“Os resultados que obtivemos são dentro do que aparece na literatura. Neste grupo, em que todos eram alunos com dificuldades, os que tinham sido retidos tinham resultados ligeiramente melhores. A nossa conclusão foi que não eram suficientemente melhores para justificar fazer mais um ano. Porquê? Por que a diferença é pequenina e, provavelmente, há outras formas de conseguir esta melhoria. O que é relevante é conseguir apoiar os alunos de outra forma”, diz a professora associada da Nova School of Business & Economics.
Outras das conclusões do estudo é que tanto os alunos que passaram como os que reprovaram no 4.º ano tinham maus resultados académicos quando chegavam ao 6.º. “O que isto nos mostrou é que não estávamos a conseguir recuperar os alunos com dificuldades, nem retendo nem passando, ou seja, eles precisavam de outra intervenção”, argumenta Ana Balcão Reis.
Por isso mesmo, a investigadora acredita que chumbar não está a resolver o défice de aprendizagem destes alunos, mas passá-los de ano também não. E se tivesse de escolher entre o pior de dois males, arrisca dizer que talvez escolhesse a retenção.
“Se as únicas hipóteses que nós temos são passar ou chumbar os miúdos com dificuldades no 4.º ano, se calhar até dizia que mais vale retê-los, pois sempre ganham um bocadinho. Passar toda a gente ainda é pior porque nem aquele pequeno benefício há. O que me parece é que há outras alternativas e o que seria interessante era haver uma intervenção que evite que os alunos fiquem com estas deficiências”, afirma a professora.
Pelo caminho, lembra que o estudo não mediu outros indicadores como aquele apontado por Filinto Lima, o representante de diretores de agrupamentos: a desmotivação dos repetentes.
Isadora Pereira, pedopsiquiatra, não tem dúvidas de que ficar retido num ano terá um impacto psicológico na criança ou no jovem. Mas, tal como a investigadora da Nova SBE, não vê vantagens em passar quem não aprendeu. “Ficar retido terá, com certeza, impacto psicológico no estudante, embora dificilmente vá ser uma surpresa. Passá-lo sem estar preparado trará outros problemas, porque coloca a criança numa situação de incompetência. Se a primeira situação, da reprovação, pode deixar o aluno com um sentimento de desvalorização, passá-lo de ano é uma falácia, pois acabará certamente por ter de repetir o ano seguinte”, defende.
A questão colocada por Isadora Pereira é o que é que a escola vai oferecer à criança que passa de ano sem aprender. “Vamos dar-lhe apoio, vai ter acompanhamento adequado ou vai ser tratada como todas as outras que aprenderam? O mais importante é que estas situações sejam sinalizadas: quanto mais cedo se intervir, melhores resultados se obtém.”
Este efeito, lembra Ana Balcão Reis, não foi medido no seu estudo. “Temos de pensar que, com a retenção, os alunos estão mais um ano na escola e sabemos que há efeitos que não são medidos. Não olhámos, porque não tínhamos indicadores, para os efeitos psicológicos. Também não fizemos a análise de custo benefício, que implica saber quanto custa ter um aluno mais um ano na escola e perceber se, por exemplo, esse dinheiro podia ser usado para ter mais um professor na escola e ter aulas extra para esses alunos com dificuldades”, detalha.
Na sua opinião, não há nenhum trabalho em Portugal que consiga dizer de forma segura quanto custa ter um aluno na escola pública e mesmo a estimativa do Tribunal de Contas é “muito limitada”. Em 2012, uma resolução da Assembleia da República pediu ao TdC que aferisse qual o custo médio de um aluno na escola pública. O resultado foi uma estimativa de 4.415 euros, apenas válida para 2009/10, segundo o próprio auditor, já que muitos pacotes de austeridade se seguiram após aquele ano letivo.
A pergunta de um milhão de dólares: quais são as alternativas?
Nuno Crato, que considera que chumbar não é nem uma solução facilitista nem sinal de exigência — a visão dualista com que se costuma olhar para este tema —, resume bem a opinião de todos os especialistas ouvidos: “O objetivo principal deve ser a formação dos alunos. Como se consegue isso? O que sempre disse é que ‘queremos que todos passem, mas que todos passem sabendo’. Aí está a diferença, devemos trabalhar para reduzir as retenções, mas não de forma administrativa, antes elevando o conhecimento e formação dos alunos ao ponto de estes reunirem as condições para progredir de ano.”
Este é o ponto assente. Todos querem que os alunos aprendam mais. Resta saber como.
“Essa é a pergunta de um milhão de dólares”, diz Maria Emília Brederode, que defende que a aposta deve ser a diversidade de modelos de ensino. “O que é importante são as aprendizagens, mas há muitas maneiras de aprender. Uma delas pode ser através da ameaça do chumbo, como com os ratos nos labirintos. Se lhes der choques elétricos, acabam por aprender que não devem ir por determinado caminho. A alternativa passa por motivar os alunos para as aprendizagens. Eles querem sempre aprender alguma coisa.”
As estratégias que aponta são o diferenciar dos métodos, ir ao encontro das dificuldades de cada criança, introduzir a ideia defendida pela OCDE de intervir ao primeiro sinal de dificuldade, para não deixar os problemas acumularem-se. “Temos de utilizar vários métodos de aprendizagem diferentes: as pessoas não são todas iguais, nem aprendem todas da mesma maneira. Cada um de nós aprende de várias maneiras diferentes: posso ouvir uma palestra, ler um livro, fazer uma oficina prática… Em relação à motivação, temos de promover que os miúdos se interroguem, ajudá-los a procurar resposta para as suas questões”, defende a presidente do CNE.
Chumbar insiste, tal como uma passagem administrativa, não serve de nada se não houver outra estratégia de acompanhamento. “A ênfase tem de ser colocada no aprender e nas melhores formas de aprender. A motivação é com certeza uma delas.”
Há pequenas mudanças que podem ser feitas no dia a dia que melhoram as aprendizagens e não custam dinheiro, lembra David Justino, que dá o exemplo de um aluno com défice de atenção. Sentá-lo na primeira ou na última fila de carteiras dará, com certeza, resultados diferentes. Também a forma como se organiza a turma, e como dentro da turma se organiza grupos de trabalho, pode contribuir para um maior envolvimento, empenho e concentração dos alunos enquanto estão a aprender. Mexer em currículos é uma discussão que não interessa ter quando se fala de chumbos.
“Há uma coisa que digo sempre: uma coisa é o currículo, outra coisa é a pedagogia. O currículo deve ser igual para todos, a pedagogia é que tem de ser diferenciada em função dos alunos. Quando se fala de flexibilidade curricular, eu discordo. Aquilo que deve haver é flexibilidade na gestão curricular, ou seja, flexibilidade pedagógica”, afirma o antigo ministro da Educação que diz aceitar que existam diferentes perspetivas pedagógicas na forma como se ensina, mas lembra que é preciso haver resultados que comprovem a sua eficácia.
“Não podemos é estar eternamente no experimentalismo pedagógico. Noto que se está a instalar nas escolas, por questões do Ministério da Educação, uma dose de experimentalismo muito forte. Não podemos andar a ver se dá, é necessário estudar e perceber que a forma como utilizamos materiais, a forma como damos matérias, como pomos os alunos a trabalhar, a consolidar o conhecimento que adquiriram, isso é que é importante. Mas isso é pedagogia, não é currículo”, defende.
Já Nuno Crato aponta que a alternativa ao chumbo é reunir condições para que todos estejam preparados para progredir. E para saber quando isso acontece, as provas finais — que criou durante o seu mandato e o atual ministro revogou — são fundamentais.
“Acabar administrativamente com as retenções, tal como se acabou administrativamente com as provas finais, não coloca exigência sobre os alunos nem sobre o sistema. Pelo contrário, quando estabelecemos as provas finais do 4.º e 6.º anos de escolaridade, as retenções acabaram por diminuir. A princípio aumentaram. Mas o sistema adaptou-se: em seguida baixaram. E quando baixaram e passaram para níveis inferiores aos níveis anteriores à existência das provas, devemos regozijar-nos duplamente: as retenções baixaram e os alunos sabem mais”, argumenta.
Por isso, não tem dúvidas: “Falar em reduzir as retenções sem ter instrumentos para avaliar os alunos e para assegurar que todos progridem razoavelmente é puro populismo, é passar a formação dos alunos para segundo plano.”
A solução: começar cedo, na educação de infância
Para quem está todos os dias no terreno, e habituado a ouvir diretores de todo o país, a solução parece óbvia. “A grande aposta do Ministério da Educação tem de ser ao nível do 1.º ciclo”, defende Filinto Lima, diretor do agrupamento de escolas Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia.
“No 1.º ciclo, as turmas deveriam ser mais pequenas, o ensino deveria ser o mais personalizado possível e, por exemplo, em alguns contextos desfavorecidos, justificava-se haver dois professores na sala de aula. Seriam medidas pró-ativas. O que hoje em dia fazemos é remediar: damos apoios e mais apoios e mais apoios aos alunos e, muitas vezes, não resulta em nada, porque falhámos na prevenção. O problema podia ser menor se fosse atacado logo no 1.º ciclo. Se os alunos chegam ao 5.º ano com dificuldades não é porque são burros. Os miúdos são muito inteligentes, mas podem não ter tido o acompanhamento necessário, e com 10, 11 anos já estão desmotivados. Se houvesse esse cuidado no 1.º ciclo, ele tornar-se-ia uma autoestrada para o sucesso de todo o percurso escolar”, argumenta o presidente da ANDAEP.
David Justino olha ainda mais para trás. “Este combate à retenção leva tempo, não há soluções mágicas e não é de um ano para o outro que se resolve, porque decorre de alterações da forma como se ensina e, acima de tudo, da forma como se aprende. Se nós queremos melhorar a capacidade de aprender por parte dos alunos, temos de começar logo. Não é no pré-escolar, é na creche. Aquilo que tenho defendido é a importância da educação de infância.”
Para o vice-presidente do PSD, quando o desenvolvimento das crianças se faz em ambientes estimulantes, elas desenvolvem-se melhor, ganhando capacidades que não disporiam em ambientes mais limitados. “O investimento na educação de infância para mim é fundamental. Quando os miúdos entram para o 1.º ciclo já vão mais despertos, mais capacitados. E isso permite-lhes aprenderem de forma mais eficaz. Por isso é que digo que demora tempo, tem de se começar desde o início. Muitas vezes, os miúdos chegam à chamada escola primária já com défices cognitivos muito diferenciados. E é muito mais difícil de combater, como é óbvio. Quando não dominam os códigos fundamentais, da leitura, escrita, cálculo, maneira de pensar, nunca mais vão recuperar. Ou são estimulados na idade adequada ou nunca mais recuperam.”
Apesar de não ser avessa à intervenção precoce, Maria Emília Brederode diz fazer-lhe confusão haver metas muito minuciosas. “Como se toda a gente tivesse de evoluir ao mesmo ritmo, ao mesmo tempo… Muitas experiências pedagógicas interessantes mostram que os miúdos têm o seu próprio tempo. Uns mais depressa, outros mais devagar. É útil ter as metas, claro, mas não impor como se tentou fazer.”
Aprender a ler na primária “deveria ser desígnio nacional”
Maria de Lurdes Rodrigues, que também defende a intervenção precoce, acredita que se se atacasse o problema da leitura das crianças, a consequência direta seria uma descida drástica das taxas de retenção nos anos seguintes.
Durante o estudo “Aprender a Ler e a Escrever em Portugal”, a equipa da reitora do ISCTE — que contava também com outra antiga ministra da Educação, Isabel Alçada — tentou perceber até que ponto a aprendizagem da leitura explicava o insucesso escolar nos primeiros anos de escolaridade. As respostas dos professores foram claras: os alunos não aprendiam a ler e, por isso, chumbavam.
“Quando perguntávamos aos professores por que é que aquele aluno chumbou, a resposta era: ‘Não aprendeu a ler. Não atingiu o nível.’. Era isto que todos nos diziam. Aquilo foi para nós a confirmação: os estudantes ficavam retidos porque não tinham aprendido a ler e porque o professor sentia que não tinha outra alternativa ao chumbo”, explica Maria de Lurdes Rodrigues. Nunca ninguém se questionava sobre como é que se fazia o aluno aprender.
A resposta, acredita, passa pelo mesmo tipo de solução apontada por Maria Emília Brederode: maior diversidade pedagógica, de ferramentas e de recursos.
“Quando as crianças entram para o 1.º ano, sabemos que em novembro/dezembro vão saber ler. Se não aprendem até essa data, é sinal de que há um problema e é preciso intervir. Hoje em dia sabemos que há crianças que aprendem melhor pelo método global, outras pelo método analítico. E há alunos que não aprendem nem por um nem por outro, que precisam de outros métodos. Mas todas as crianças podem aprender a ler. O que é preciso é a deteção precoce: sinalizar imediatamente e usar outros instrumentos pedagógicos para ensiná-la a ler. Sabemos que se a leitura falha, todas as outras aprendizagens vão falhar”, argumenta a reitora do ISCTE, que não percebe como é possível que uma criança fique até ao 2.º ano de escolaridade sem fazer esta aprendizagem.
“A criança não aprende e nós insistimos em ensinar através do mesmo método. É claro que não vai funcionar. E a repetência é uma insistência. Quando um aluno repete o 2.º ano quer dizer que em dois anos não aprendeu a ler. Quer dizer que durante dois anos a escola não foi capaz de encontrar uma alternativa ao chumbo, e que durante dois anos deixou a criança sem saber ler. Já viu o tempo que se perde? É por isso que no estudo havia professores que defendiam que era melhor deixá-las chumbar logo no 1.º ano. Não era melhor. Era a mesma coisa: a escola não arranjava solução para aquela criança. Dizer à criança ‘não aprendeste, mas passa lá enquanto eu não faço nada para te ajudar’ é absurdo.”
Maria Emília Brederode lembra os tempos em que foi diretora pedagógica da série televisiva e da revista “Rua Sésamo”. “Na altura da Rua Sésamo, percebemos que para muitas crianças a leitura e a escrita eram uma coisa desagradável. Nas suas casas, o papel era uma coisa má: era sinónimo de uma carta do tribunal, das finanças. E era preciso convencê-las de que a escrita era uma coisa positiva. Se é por aí que temos de começar, então vamos fazê-lo. Mas temos de fazer alguma coisa. A taxa de retenção do 2.º ano é absurda: é cortar as pernas dos miúdos e deixá-los sem confiança e sem vontade de continuar.”
A presidente do CNE ressalva que os professores também não podem ser responsáveis por tudo. “Há miúdos que levam mais tempo a aprender. Era importante que o próprio professor pudesse pedir ajuda. Não é vergonha nenhuma. Saber ler e escrever é fundamental e não se pode é chegar aos 20 anos e não saber fazer contas. Mas atenção: essa pessoa não tem de chumbar, tem é de aprender. É essa atitude que nos falta, esse ênfase na aprendizagem e essa confiança de que todos os miúdos podem aprender.”
Maria de Lurdes Rodrigues concorda e diz que há soluções noutros países que nos podem inspirar. E aponta um caminho: “Todas as crianças aprendem a ler, isto não é um mito. O que existe em Portugal é falta de foco. As nossas crianças não são menos capazes do que as de outros países. A leitura no 1.º ciclo tem de ser uma prioridade total, devíamos fazer disso um desígnio nacional. Estou convencida de que se fizéssemos essa aposta agora, daqui a 5 ou 10 anos as taxas de retenção baixariam.”
Fonte: Observador
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