sábado, 6 de abril de 2019

Implementação polémica do novo regime jurídico da educação inclusiva

Em entrevista à Plural&Singular, David Rodrigues, conselheiro Nacional de Educação e presidente da Associação Nacional de Docentes de Educação Especial (Pró – Inclusão) manifesta-se a favor da mudança de paradigma que o Decreto-Lei n.º 54/2018, que estabelece o regime jurídico da educação inclusiva, representa. Aponta como lacunas a falta de formação e dos recursos necessários para a implementação desta legislação mas sugere que as escolas reflitam “nas condições que têm e que precisam ter para que a Inclusão possa ser uma realidade mais eficaz e humana”. 

Plural&Singular (P&S) - O que é que o Decreto-Lei n.º 54/2018 - Educação inclusiva vem, essencialmente, alterar? 
David Rodrigues (DR) - Diria que as alterações são fundamentalmente em 3 áreas. A primeira - e talvez a mais importante - é a de conceber uma escola que não faz uma divisão entre alunos “especiais” e os outros. Penso que esta mudança constitui uma profunda mudança na escola dado que se situa no coletivo da escola a possibilidade de responder às necessidades dos alunos e que, por outro lado, assume que qualquer que seja a diferença dos alunos ela não é suficiente para os classificar como “especiais”. Uma segunda alteração é a institucionalização da equipa multidisciplinar. Apesar desta equipa já funcionar de forma menos formal em muitos agrupamentos, a sua criação realça a importância de recolher a melhor informação disponível para pensar na qualidade educativa para todos os alunos. Por fim citaria a criação do Centro de Apoio à Aprendizagem que permite concentrar o melhor conhecimento e os melhores recursos para responder às necessidades educativas menos habituais com que a escola tenha de lidar. 

P&S - Representa uma mudança de paradigma? Que opinião tem? 
DR - Eu penso que sim. Representa uma mudança de paradigma na medida em que assume que não é preciso rotular para responder competentemente. Muitas pessoas ainda veem esta legislação como a “nova legislação da Educação Especial”. Na verdade, esta legislação não fala em lugar nenhum de Educação Especial mas sim de Educação Inclusiva. Esta mudança de paradigma vai certamente influenciar outras mudanças, implicando por exemplo, que os atuais professores de Educação Especial venham a assumir outra designação. 

P&S - Que passos estão a ser dados para a respetiva implementação? 
DR - Ainda antes da publicação desta legislação assumi publicamente que esta mudança deveria vir acompanhada de duas medidas muito importantes: uma é a da formação e a outra a do reforço de recursos. Estamos ainda no primeiro período letivo, mas acho que seria muito importante levar a sério estes dois desafios. É preciso que a formação robusteça a confiança das escolas para responder aos novos desafios e é preciso que os recursos sejam reforçados por dois motivos evidentes: é mais que provável que o número de alunos que precisam de apoio aumente (até mesmo através das medidas “universais”) e por outro lado é considerado já muito tempo, que o apoio dos CRI’s – no qual repousa muito do apoio especializado a alunos com maiores dificuldades - é insuficiente e deixa ficar muitos alunos sem o apoio que é considerado necessário. 

P&S - Que feedback lhe tem chegado em relação ao início deste ano letivo? Dos pais, professores, direção das escolas? 
DR - Tenho feedbacks muito distintos. Vamos ver: antes de mais os princípios da legislação são consensualmente julgados positivos, mas muitas escolas estão ainda com muitas dúvidas sobre qual o impacto desta legislação no quotidiano do trabalho pedagógico. Dizemos muitas vezes que é preciso tempo para consolidar e sedimentar esta legislação, mas sempre chama também a atenção que é essencial não deixar que o sentimento de “entregues a si próprias” cresça nas escolas. Penso também que muitas escolas estão a procurar – responsavelmente – cumprir o melhor que podem e sabem esta legislação e isso torna este processo muito exigente dado que não se trata de uma mudança na “Educação Especial” mas sim em toda a escola. 

P&S - Uma das questões/reclamações colocadas diz respeito à data da publicação (julho, já depois de acabar o ano letivo). É esse o principal motivo da dificuldade de implementação das alterações no ano letivo de 2018/19? 
DR - A data de publicação da lei 6 de julho é um problema, sim. É um problema em termos pragmáticos – as escolas tinham-se organizado em função da legislação anterior mas é também um problema em termos psicológicos, isto é, as escolas ficaram com a sensação de surpresa, de imprevisto e estas sensações rapidamente conduziram a falta de confiança, dúvidas e “confusão”. Não ignoro que qualquer que fosse a data de publicação haveria sempre a necessidades de uma profunda adaptação, mas a data desta publicação não contribuiu para olhar esta legislação de uma forma equilibrada, confiante e possível. 

P&S - A existência de um Manual de Apoio à Prática basta ou seria necessário formar os professores? Existe o apoio necessário à escola e ao professor para avançar com o novo regime de escola inclusiva? 
DR - O manual de apoio à prática (uma versão lusitana no “Code of Practice” muito popular nos Reino Unido) é uma boa iniciativa. Muitas dúvidas podem ser atalhadas estudando este manual que, inclusivamente, fornece pistas e materiais de intervenção. Mas nada substitui a formação. Porquê? Porque a formação – a boa formação em serviço – permite debater, permite mudar não só o que se pensa, mas também a forma como se sentem estas mudanças e isso num ambiente de inovação é fundamental. 

P&S - Que ânimo encontra junto da comunidade escolar? 
DR - Os tempos não vão bons para o ânimo… há um conjunto de fatores que não predispõem os professores para uma adesão rápida, entusiástica e positiva a mudanças educacionais. Por vezes penso que muitos professores e comunidades educativas vivem neste princípio de ano uma posição defensiva, “voltada para dentro” e que não é certamente a mais recetiva a mudanças no trabalho pedagógico. Seria injusto não citar tantos professores entusiastas, positivos e pragmáticos que fazem todos os dias o melhor que podem e sabem para que todos os alunos tenham a melhor educação que é possível proporcionar-lhes. Estes professores positivos são uma grande riqueza e fonte de inspiração nas escolas. 

P&S - E o que se espera em relação ao envolvimento dos pais/encarregados de educação com a escola neste processo? 
DR - Esta legislação considera que o envolvimento parental é muito importante e deve ser reforçado. Mas isso tem de passar de papel para o quotidiano das escolas. Os pais têm que ser ouvidos e as suas opiniões levadas em conta. Esse trabalho, esta determinação, tem de ser antes de mais assumida por cada escola pensando as melhores e mais eficazes medidas para motivar e acolher a participação dos pais na Educação dos seus filhos e de toda a escola. 

P&S - Este é o caminho para a efetivação da Escola Inclusiva? 
DR - Penso que este é o caminho ou pelo menos este é o mapa no qual temos de traçar o nosso caminho. Explico: Portugal fez um caminho extraordinário no aprofundamento da Educação Inclusiva até agora. Temos que o valorizar. Dou-lhe um exemplo: no dia em que respondo a esta entrevista saiu uma notícia em que Portugal é considerado o país da Europa em que os africanos se sentem mais protegidos do racismo. Isto não significa que tenhamos de ficar deslumbrados: significa que temos este incentivo para ir mais longe e acabar com algumas vergonhosas bolsas de racismo no nosso país. Diria o mesmo em relação à inclusão: sabemos que há muito caminho a percorrer mas custa-me ouvir algumas opiniões de pais e de professores que falam da Inclusão como se fosse uma verdadeira catástrofe humanitária. Não é e estou certo que estamos no caminho para a melhorar. 

P&S - Que mensagem gostaria de deixar às escolas e aos professores? 
DR - Gostaria de lhes dizer que não desistam, que não se deixem abater por discursos do tipo “isto está cada vez pior” ou “antes é que era bom”. Gandhi escreveu que deveríamos ser “a mudança que queremos ver no mundo”. Eu acho um bom mote para escolas, pais e professores. Sem estarmos sempre a pensar no que falta, olhemos para o que podemos fazer com que temos. 

P&S - Podem contar com a Pró – Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial? 
DR - Gostaria de apelar que esta mudança seja vivida como uma efetiva inovação. Tenho encorajado as escolas para refletirem pormenorizadamente nas condições que têm e que precisam ter para que a Inclusão possa ser uma realidade mais eficaz e humana. Precisamos desta avaliação detalhada no final deste ano. A Pró – Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial está disponível para receber e organizar estes dados oriundos das escolas e que serão transmitidos às autoridades educativas.

Fonte: Entrevista concedida à revista Plural&Singular, Edição 21 SEMESTRAL DEZ a MAI, pp. 12-14.

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