O que faz um bom professor? Aos olhos dos alunos podem ser gestos simples. Desses que não constam nas grelhas de observação. Ou são reconhecidos anos mais tarde, já a escola ficou para trás. Em tempos conturbados para educação, os professores reclamam mais atenção ao trabalho que fazem dentro e fora da sala de aula, e que nem sempre é visível, ou dificilmente conta para a avaliação.
O educare.pt recolheu testemunhos marcantes sobre docentes que fizeram a diferença. Esteve também à conversa com sociólogos na área da educação para entender a evolução histórica da carreira docente, e perceber como se revaloriza a profissão, sendo certo para os professores que nunca se sentiram tão desvalorizados.
Apoiar os alunos
Imagine-se, sem muito esforço, porque a situação poderia bem ser real, que um professor de Matemática se depara com uma aluna adolescente grávida, e que passa horas a conversar com ela depois das aulas, para tentar resolver o dilema de como contar aos pais. Almerindo Janela Afonso, investigador na área das Ciências da Educação da Universidade do Minho, serve-se deste exemplo para lamentar o modo como se estão a avaliar os docentes. A moral da história é a de que “a avaliação de desempenho daquele professor não tem em conta o que ele fez para apoiar a aluna”.
Não é de hoje a discussão sobre a tentativa de quantificar tudo o que é feito nas escolas. Seja o trabalho do professor seja o sucesso ou insucesso dos alunos. Avaliam-se os docentes pelas notas dos alunos. Os alunos pelas notas dos exames. As escolas hierarquizam-se nos rankings. “Com o peso de mostrar resultados mensuráveis, tudo o resto é desvalorizado”, critica Almerindo Janela Afonso. Transformado num “operário produtor de resultados”, o professor deixa de ser um educador, “e se é, porque tem de continuar a ser, esse papel não lhe é reconhecido”.
Educador, mediador, interlocutor. São atributos que as Ciências da Educação reservam para o professor. Mariana Ferreira, 33 anos, é capaz de juntar muitos mais predicativos ao seu professor da Escola Primária da Mealhada, apesar de ter levado com ele o seu primeiro puxão de orelhas. “Nessa altura os professores tinham mais liberdade para isso”, reflete. Não recorda se o castigo foi merecido, mas nunca precisou de levar o segundo. Do professor Manuel Santos guardou outras memórias.
“Era, porque já faleceu, uma pessoa espetacular, íntegro, interessado, humilde e exigente.” Mesmo depois de ter deixado para trás a atividade de docente, continuava interessado nos progressos escolares de Mariana. “Sei que se sentia orgulhoso do meu percurso e de ter feito parte dele. Quando fiz o doutoramento ficou muito feliz!” Hoje, olhando o caminho percorrido na área das bioquímicas, Mariana está grata ao professor por ter tido “umas boas bases”. “A exigência dele, o gosto e a vontade com que nos ensinava faziam-nos gostar da escola. Ele fazia o que fazia por vocação. E isso nota-se e transmite-se.”
Socialização e instrução
Para Maria João Duarte, 32 anos, ir à escola em criança “era um verdadeiro pesadelo”. “Fiz o ensino primário num colégio de freiras e os meus professores primários ainda utilizavam o método de bater quando fazíamos algo errado.” O receio de dar um passo em falso era constante. E os professores, marido e mulher, bastante temidos pela turma. Hoje, Maria João tem outra visão da educação “rígida e católica” desses dias passados nas “Florinhas do Lar”, no Porto. E não hesita em dizer que gostaria de ver o filho ser educado com os mesmos valores morais.“O medo que sentia consigo vê-lo como respeito. Eles [os professores] souberam educar. Agora sei dar valor e até sou capaz de considerar [a primária] o melhor período da minha vida escolar.”
As atitudes e gestos que os professores têm com os alunos são o que muitas vezes fica na memória dos tempos de escola. “O que nos marca são aspetos de socialização, mais do que de instrução”, conclui Almerindo Janela Afonso, que nunca esqueceu o professor de Físico-Química do ensino secundário que o dispensou da aula sem marcar falta, ao saber que a sua namorada tinha sido presa pela PIDE nesse dia. Num tempo marcado pela ideologia dominante do Estado Novo, pequenos sinais faziam grandes diferenças na imagem do professor. “Tinha-lhe um grande respeito, porque ele lia o República, um jornal de esquerda.”
Com a democratização da escola, do pós-25 de Abril, a profissão docente caminha para a valorização. O aparecimento dos sindicatos de professores, a expansão da escolaridade, a complexificação da formação docente, enriquecida com as ciências da educação, a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, e a criação do primeiro Estatuto da Carreira Docente, que consagra um mínimo de formação superior para dar aulas, são fatores que contribuem para a afirmação do professor como profissional.
De missionário a funcionário
Almerindo Janela Afonso identifica três fases na história da carreira docente: a do professor missionário, marcado pela ideologia do Estado Novo; a do profissional, fruto da revolução de Abril e, por último, a de funcionário, como a mais atual. “A ideia do funcionário como aquele que executa coisas; a do profissional, como aquele que tem autonomia para fazer escolhas e pô-las em prática, está-se a perder.”
“São tempos difíceis para a educação”, reconhece Helena Araújo, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, da Universidade do Porto. Cortes salariais, congelamento da progressão nas carreiras, excesso de turmas e de trabalho burocrático estão a contribuir para agravar a desmotivação dos professores.
Sónia Alexandra, 41 anos, conhece bem os problemas da profissão. Seguiu o sonho de lecionar, contra a vontade do pai, pelo exemplo de duas professoras da Escola Secundária Aurélia de Sousa, no Porto. Delfina Martins, professora de Português, e Madalena Serdoura, que lhe ensinou História do 8.º ao 11.º ano, de quem recorda “a dedicação, o orgulho em ser professora e a sua humanidade. Estava sempre preocupada com os seus alunos.” A lecionar em Lisboa, Sónia Alexandra aproveita a oportunidade para desejar às docentes “um bem-haja”, caso leiam o artigo.“Devo muito a estas duas senhoras que me deram pontos de referência para ser uma profissional melhor.”
Com um extenso trabalho sobre como a Primeira República ignorou as vozes das mulheres em matérias de educação quando a sua presença na docência era maioritária no ensino primário, Helena Araújo defende que se ouça mais a classe.“Os professores têm de ter formas de participação nas escolas com mais sentido”. Esse será o caminho a seguir para revalorizar a profissão.
Fonte: Educare
Sem comentários:
Enviar um comentário