quinta-feira, 23 de março de 2017

DAS BIRRAS NAS CRIANÇAS

As birras são um tema recorrente nas conversas com pais sobretudo com os que lidam com filhos mais pequenos.

A frequência com que as birras são abordadas é proporcional à preocupação e receio que causam nos adultos. As crianças desencadeiam as birras ao longo das diferentes situações do seu quotidiano e por vezes “decidem” também apresentar uma birra em espaços públicos, restaurantes por exemplo, ou quando estão em casa adultos amigos dos pais. Nestes contextos a coisa fica particularmente embaraçante para os pais e, não raras vezes, perturbador para outras pessoas. Aliás, já começam a surgir espaços, hotelaria e restauração, interditos a crianças justamente pela “má vizinhança” que fazem. A este propósito recordo algo que li há dias e achei curioso e elucidativo, um restaurante em Itália procedeu a um generoso desconto no custo do almoço de uma família cujas crianças tiveram um comportamento exemplar durante a refeição. Bonitos meninos que proporcionaram um prémio aos pais.

Esta preocupação com as birras tem levado a que se multiplique a oferta de aconselhamento, os manuais de que falei no texto anterior, em que se prescreve o modo de lidar com as birras dos mais novos prevenindo o seu aparecimento ou apressando o seu fim.

Esta oferta alargada começa a ser especializada em diferentes contextos de ocorrência de birras, à mesa ou ao deitar só para citar exemplos mais correntes. Não ficará por aqui.

Algumas notas simples.

Em primeiro lugar referir que o comportamento a que chamamos birra cumpre na maioria das situações um papel no desenvolvimento de crianças e adolescentes associado à construção e testagem de limites e regras, imposições ou orientações dos adultos e consolidação de auto-regulação e resiliência face à frustração, ou seja, como lidar com a não realização do que apetece ou não ter o que se quer no momento.

Quero sublinhar que não estou a desculpar ou minimizar as birras, estou apenas a tentar mostrar por que razão acontecem.

Como sempre defendo, quanto melhor entendermos os processos que levam aos comportamentos, em melhores condições estaremos de evitar que aconteçam ou minimizar o seu impacto.

Aliás, num pequeno parêntesis, deixem-me recordar que as birras não são um exclusivo dos mais novos, quantos de nós fazemos regularmente algumas pequenas “birras” que nos trazem dividendos que levam a que … as tornemos a repetir.

Neste contexto, o que julgo relevante não é centrarmo-nos no comportamento de birra das crianças mas nos nossos comportamentos. Somos nós e a nossa acção que poderão minimizar, intencionalmente não escrevo eliminar, o risco das birras e, ou do grau de “espectacularidade” que por vezes assumem.

Desde logo é fundamental que saibamos usar o “não”, o “não” é um bem de primeira necessidade na vida dos miúdos que, como disse, nos testam continuamente. Por várias razões muitos de nós somos capazes de providenciar mimos e afecto mas expressamos dificuldades em estabelecer regras e limites de que as crianças precisam tanto como de respirar e alimentar-se.

Para além de alguma insegurança que os pais possam sentir face aos desafios da parentalidade, estas dificuldades estão com alguma frequência associadas aos estilos de vida das famílias que não permitindo a disponibilidade do tempo desejado para estar com as crianças instalam algum desconforto (culpa) que pode levar a que alguns pais no momento em que precisam de dizer “não”, “agora” ou afirmar outra qualquer decisão hesitem e deixem cair o “não” em nome de um “não estragar” o pouco tempo que estão juntos.

As crianças percebem que muitas vezes o “não” é um sim a prazo, demora menos tempo se a birra for forte e, de preferência, com assistência, sejam os amigos dos pais lá em casa, ou outras pessoas num restaurante ou no centro comercial.

Crescendo com esta falta do “não” algumas crianças transformam-se, de facto, em pequenos ditadores que assumem um comportamento desregulado e despótico que é pouco saudável para toda a gente a começar por si próprios.

Como já aqui escrevi em texto anterior, é nestas circunstâncias que se torna frequente ouvir algo como “tem mimos a mais” que me incomoda seriamente pois acho que encerra um enorme equívoco. As crianças não têm mimo mais, têm “não” a menos, têm mau mimo e é por isso que faz mal, não é por ser muito.

Precisamos de não nos esquecermos que as crianças são inteligentes, entendem com muita clareza quando o “não” com algum “trabalho” da sua parte se torna um “sim” em variantes como, “vá lá, pronto”, “só mais um bocadinho” ou ”podes mexer mas não estragues”, etc. E também porque são inteligentes compreendem com alguma tranquilidade se também a usarmos o estabelecimento de regras e limites de que, creiam, também sentem precisar mesmo quando aparentemente as rejeitam. A sua ausência é que é o grande risco e a sua solidez atenua o risco de repetição dos comportamentos não desejados.

Assim sendo, seria positivo que sem grandes receitas ou esquemas os pais se sentissem confiantes e seguros para oferecer o “não” no tempo adequado e oportuno ainda que de forma flexível.

Seria também desejável que os pais não temessem as birras ou eventuais olhares reprovadores da assistência. Para as crianças mais pequenas o disponibilizar ao mesmo tempo que um “não” um “sim” a algo aceitável pode ser uma ajuda para drenar a frustração e recuperar a serenidade. Para as mais velhas, o diálogo discreto e firme pode também ser uma ajuda pois, como disse, as crianças são inteligentes e sabem “ler” muito bem os nossos comportamentos.

E a verdade é que se sentem melhor em ambientes educativos regulados e serenos apesar de, desculpem a aparente contradição, as crianças saudáveis também o serem porque de vez em quando lá vem uma birra como “prova de vida” e tarefa de desenvolvimento.

José Morgado

Fonte: Visão por indicação de Livresco

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