quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Educação sexual. Como se faz lá fora e com que resultados?

O tema é controverso, já se sabe. Desde que foi introduzida nas escolas portuguesas, a Educação Sexual gera reacções diversas na sociedade civil. Uns concordam, outros discordam. Uns gostariam que os conteúdos ensinados fossem mais longe e envolvessem aspectos sociais, outros acham que mesmo a limitação à biologia já é ir longe demais. Uns gostariam que as crianças tivessem Educação Sexual logo no 1.º ciclo, outros acreditam que antes dos 15 anos é demasiado cedo. É, digamos, um debate cristalizado e que, pontualmente, ressuscita – sem novidades ou novos argumentos. Foi o que aconteceu recentemente face às alterações apresentadas pelo governo (áreas da Educação e da Saúde). Nomeadamente, face a uma alteração em concreto: antecipar o contacto dos alunos com o tema do aborto, trazendo-o para o 2.º ciclo (i.e. para alunos entre os 10 e os 12 anos de idade). No debate público, voltou o braço-de-ferro entre apoiantes e críticos.

Esse braço-de-ferro é, sem dúvida, uma parte importante do debate (e a mais visível), onde se discutem visões sobre o papel do Estado na educação para a sexualidade. Mas é, sublinhe-se, apenas uma parte do debate. Sim, é fundamental discutir o papel do Estado na educação sexual e estabelecer os seus limites. Mas, depois, é igualmente fundamental escolher abordagens, definir idades, orientar os conteúdos, formar os professores. E, claro, colocar o tema em perspectiva: não sendo este debate um exclusivo nacional, como é que fizeram os outros países europeus?

É esta a pergunta que aqui se tenta responder. E ‘tentar’ é a expressão adequada. Porque o primeiro problema em lidar com este assunto numa perspectiva comparada é a constatação de que existe pouca informação para comparar entre países, de que esta nem sempre está actualizada e de que há matérias (como o conteúdo das orientações para a educação sexual) onde a comparação se aparenta inviável. Dito isto, há contudo pistas interessantes que a comparação dos dados disponíveis permite realçar. Tomando consciência dos limites, são essas pistas que aqui se exploram.

A partir de que idade é possível ter e com que idade os alunos têm Educação Sexual?

Quando é que é demasiado cedo? E quando é que fica demasiado tarde? Faz sentido exigir ao Estado que tome essa decisão ou deve confiar-se nas escolas? O timing é tudo e os factores em causa são muitos (maturidade, possibilidade de primeiras experiências sexuais, abordagem pedagógica adequada), pelo que a idade em que a Educação Sexual entra na sala de aula é uma das questões mais debatidas – pelos pais, claro, mas também nas próprias escolas.

Como lidam os países europeus com esse dilema? Os dados falam por si (Tabela 1) e realçam uma curiosa tendência: mesmo quando formalmente a Educação Sexual é possível desde muito cedo (por vezes aos 5/6 anos de idade), as escolas tendem a adiar (até cerca dos 11 anos de idade). Mais: se a idade mínima oficial for igual ou superior a 13 anos, nas escolas também se observa uma tendência para antecipar até aos 11/12 anos de idade). Ou seja, o Estado define um ponto de partida mas confia que as escolas saberão decidir quando iniciar a Educação Sexual. E isso é válido independentemente do limite mínimo fixado pelo Estado. Na prática, vai tudo dar ao mesmo ponto: as escolas tendem a introduzir a Educação Sexual, em média, aos alunos que têm 11 ou 12 anos.

Que designação se atribui à Educação Sexual e que orientações existem?

Na maioria dos casos, o Estado fixa orientações gerais ou conteúdos mínimos para a Educação Sexual. Mas calma. Não está em causa um projecto ideológico, não há programas escolares detalhados ou sequer manuais para adquirir e estudar sobre Educação Sexual. Tal como acontece com a idade, a opção acerca das orientações curriculares é quase sempre a mesma: o Estado define orientações gerais e, depois, confia nas escolas e nos professores para as implementar à medida do que consideram mais adequado para os seus alunos.

Dito isto, é a partir daqui que a coisa complica. Afinal, de que forma entra a educação sexual no currículo e nas salas de aula? Existe, geralmente, a percepção de que a Educação Sexual deve ser transversal no currículo, uma vez que aborda questões que estão relacionadas com diferentes áreas disciplinares. No entanto, no contexto europeu, é pouco comum encontrar situações onde essa transversalidade seja alargada a mais de duas disciplinas. A situação mais comum é a de um enfoque especial nas aulas de Biologia e, complementarmente, numa outra disciplina. Por exemplo, isso é muito claro no caso belga, onde as dimensões relacionadas com o corpo humano estão na disciplina de Biologia e onde as dimensões morais estão nas disciplinas de Ética e de Filosofia. Os exemplos multiplicam-se: de país para país, a complementaridade às aulas de Biologia pode surgir em várias disciplinas – na Holanda é através de uma disciplina chamada ‘Sociedade’, na Estónia através da disciplina de ‘Estudos Humanos’.

Há, por isso, em média, maior enfoque nos aspectos biológicos do que nos aspectos sociais e relacionais da sexualidade. Mas isso não significa que, em alguns países, não se tenha optado deliberadamente por ir para além da biologia e discutir os próprios relacionamentos e os afectos. Por exemplo, na Bélgica a educação sexual é intitulada de “Relacionamentos e Educação Sexual” – o que não será alheio aos escândalos sexuais e pedófilos que o país conheceu. Ou, por exemplo, nos países do leste Europeu, onde está culturalmente enraizado o conceito de planeamento familiar, devidamente reflectido nas orientações às escolas. Inevitavelmente, os contextos nacionais (históricos, culturais, religiosos) têm uma grande influência na forma como a sexualidade é encarada na sociedade e ensinada nas escolas. E esse contexto surge espelhado na própria designação oficial da Educação Sexual. Mas há, igualmente, uma crescente consciencialização de que a sexualidade é mais do que biologia e que a dimensão afectiva deve estar presente (Tabela 2).

Quem dá as aulas de Educação Sexual?

No final de contas, (quase) tudo na educação se pode resumir ao que acontece na sala de aula. Como tal, um dos aspectos mais discutidos sobre a Educação Sexual é quem a deve leccionar. Deve ser um professor designado e preparado para esse efeito? Devem ser vários professores? Deve ser um especialista de saúde? Ou, antes, deve ser uma equipa composta por todos estes? Olhando para os dados (Tabela 3), não parece haver uma resposta certa. Mas há pelo menos duas opções dominantes. Primeiro, não existe qualquer caso onde a Educação Sexual chegue aos alunos exclusivamente através de especialistas de saúde – isto é, sem a participação ou coordenação de um professor. Segundo, o cenário mais comum é, em conjunto, um professor designado e um especialista de saúde serem os responsáveis pela Educação Sexual perante os alunos – assim cumprindo o propósito de uma abordagem partilhada entre as áreas da Educação e da Saúde.

Isto leva-nos à questão que faz toda a diferença: estão os professores escolhidos para dar Educação Sexual preparados para o desafio? É difícil de fazer essa avaliação a nível internacional, uma vez que as realidades na formação de professores variam muito (e a informação sobre o tema em concreto escasseia). Mas, em Portugal, é um facto público que há muito que os professores se queixam de falta de formação no âmbito da Educação Sexual. De resto, num estudo de caso (2015) da implementação da Educação Sexual no Algarve, cujo artigo científico foi publicado em 2015 na Revista Portuguesa de Educação, essa situação emergiu com clareza. Inquiridos sobre a sua experiência com a Educação Sexual, os responsáveis queixam-se do pouco apoio do Ministério, da falta de formação e de experiência e, aliás, evidenciam algum pouco à-vontade com a matéria da Educação Sexual face aos constrangimentos sentidos. Ou seja, pelo menos em Portugal, parece haver um consenso à volta da necessidade de dar aos professores mais instrumentos e mais formação sobre Educação Sexual.

Que evidências existem sobre os resultados da educação sexual?

É comum que os debates marcados por algum activismo de ambos os lados, como acontece com a Educação Sexual nas escolas, sejam preenchidos por argumentos de resultados contraditórios entre si. Não é novidade que, se devidamente torturados, os números dizem-nos o que queremos ouvir. E esse parece ser o mote de ambos os lados da trincheira. Quem defende o alargamento da Educação Sexual nas escolas garante ter evidências dos seus efeitos positivos para o comportamento sexual dos alunos (através da acentuada diminuição dos factores de risco). E quem é contra a Educação Sexual assegura que esta formação tem o efeito negativo nos alunos de acelerar a sua iniciação sexual (e, pela imaturidade, aumentar os factores de risco). Sim, há estudos para todos os gostos. Mas há conclusões predominantes, acerca das quais é possível ter maior confiança sobre a sua fiabilidade.

A primeira dessas conclusões é que há uma relação entre ter apenas informação sobre abstinência sexual e uma menor utilização de contraceptivos. Ou seja, os alunos que, em vez de Educação Sexual com informação sobre contracepção, têm apenas informação acerca de abstinência sexual utilizam menos métodos contraceptivos fiáveis (comparativamente aos alunos que tiveram informação sobre contracepção). Dito de forma simples: o método de informar os jovens apenas sobre abstinência sexual não é tão eficaz quanto outros métodos de Educação Sexual, em termos de prevenção de comportamentos de risco.

A segunda das principais conclusões é que há, em média, uma diferença comportamental entre as raparigas adolescentes que tiveram Educação Sexual na escola e as que não tiveram. As que tiveram exibem uma menor probabilidade de engravidar do que as raparigas que não frequentaram aulas de Educação Sexual. Ou seja, utilizam meios mais eficazes de contracepção. Contudo, a significância dessa diferença (se é mais ou se é menos acentuada) varia bastante em função dos estudos.

A terceira das principais conclusões é que, apesar dos referidos efeitos a curto e médio prazo, a longo prazo não parece haver diferenças significativas entre os alunos que tiveram e os que não tiveram Educação Sexual, em termos de benefícios para a sua saúde. Ou seja, não existe associação de longo prazo entre esta formação nas escolas e uma vida mais saudável.

So what? Três pontos para o debate em Portugal

1. A Educação Sexual está consolidada em quase todos os países europeus e com particular incidência nos jovens a partir dos 11 anos. Independentemente da idade a partir da qual as escolas podem legalmente oferecer Educação Sexual aos alunos, esse parece ser o entendimento das escolas e dos professores sobre o momento adequado para introduzir o tema. Não tendo a Educação Sexual orientações muito rígidas em termos de conteúdo, isso permite aos professores tomar as melhores decisões para os seus alunos em termos de timing, abordagem e conteúdo. Traduzindo: o critério a preservar é o da confiança. Se, enquanto pai, está desconfortável com o tema ou tem dúvidas, nada como levar essas dúvidas aos professores do seu filho. E sem esquecer que é possível falar de temas sensíveis, como o aborto, sem se parecer com a Isabel Moreira ou a Isilda Pegado.

2. A Educação Sexual tem, como finalidade número um, educar para a saúde, para prevenir comportamentos de risco que exponham os jovens a doenças sexualmente transmissíveis ou a situações de gravidez indesejada. Daí que seja grande a tentação de abordar a Educação Sexual de uma perspectiva meramente biológica, neutra e quase mecânica. Será até, do ponto de vista de um professor, a perspectiva mais confortável. Mas talvez, hoje, isso já seja insuficiente e esse possa ser um debate que vale a pena ter: num tempo de exposição constante da intimidade e do sexo na televisão e internet, o que parece faltar aos jovens não é informação sobre a mecânica biológica do sexo ou sobre a contracepção, mas sim sobre os relacionamentos afectivos e a preservação da intimidade. Há, por isso mesmo, países europeus que já deram o passo de integrar a dimensão afectiva e relacional na Educação Sexual – como evidenciam as múltiplas designações que essa formação tem na Europa.

3. O professor é o elemento-chave da Educação Sexual. Sendo um tema delicado, a boa preparação de um professor pode fazer a diferença para melhor – por exemplo, para quebrar receios nos alunos de fazer perguntas e de expor as suas dúvidas. Isto serve para lembrar o óbvio: importa, claro, discutir as orientações para a Educação Sexual, mas importa tanto ou mais proporcionar meios para uma adequada formação dos professores. Se os professores não estão à-vontade com o tema e sentem que lhes falta formação para o abordar com os seus alunos, como reconhecem geralmente os professores portugueses, então aí está um problema. E a sua resolução deve ascender a prioridade.

Alexandre Homem Cristo 

Foi Conselheiro Nacional de Educação e, entre 2012 e 2015, foi assessor parlamentar do CDS na Assembleia da República, no âmbito da Comissão de Educação, Ciência e Cultura. É autor do estudo “Escolas para o Século XXI”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em 2013.

Fonte: Observador

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