Onde estaríamos sem a escrita? Desde as suas origens há mais de 5.000 anos na antiga Mesopotâmia, a história da escrita ecoa a história da humanidade. Os gregos e os romanos criaram alfabetos únicos, os chineses desenvolveram caracteres complexos e actualmente lemos romances, jornais e publicações nas redes sociais. Um alicerce da civilização humana, a escrita é fundamental para o estado de direito e acumulação de conhecimento e cultura. No entanto, as pessoas cegas só tiveram acesso à escrita no século XIX.
Entre 1824 e 1825, Louis Braille criou um sistema composto por pontos em relevo que poderiam ser lidos com as mãos. Inicialmente ignorada, esta invenção viria a ser adoptada universalmente no século XX, abrindo um novo mundo de aprendizagem para as pessoas com deficiência visual. Num discurso proferido na Sorbonne no centenário da morte de Braille, Helen Keller disse: “Nós, os cegos, temos uma dívida tão grande para com Louis Braille como a humanidade para com Gutenberg.”
Mas houve precedentes. A mudança de atitude anterior ao nascimento de Braille contribuiu para abrir o caminho para a tolerância. A Carta sobre os Cegos, do filósofo Denis Diderot, de 1749, defendeu que as pessoas cegas tinham a mesma capacidade intelectual que as pessoas com visão. As primeiras escolas para cegos abriram em França e Inglaterra no final do século XVIII, mas o sistema de escrita de Braille proporcionou-lhes um meio para interagirem com textos e partituras.
Um acidente transformador
O mais novo de quatro filhos, Braille nasceu em 1809 na aldeia de Coupvray, 35 quilómetros a leste de Paris. O seu pai, Simon-René, era correeiro, uma profissão com elevada procura. A família vivia confortavelmente e também cultivava vinhas para produção de vinho. Luxos como um forno de pão podem ser actualmente vistos na casa da família, transformada no Museu Louis Braille na década de 1950. O ponto central do museu é a reprodução da oficina do pai de Braille, onde ele sofreu o acidente que viria a causar a sua perda de visão, mudando o seu destino – e o rumo da história.
Braille era uma criança curiosa de três anos e esgueirou-se às escondidas para a oficina, para brincar com as ferramentas que via o pai usar. Quando tentou fazer um furo no cabedal com um furador, a ferramenta escorregou e furou-lhe o olho. Este ferimento horrível causou uma infecção que se espalhou para ambos os olhos, deixando-o cego aos cinco anos, uma vez que os antibióticos ainda não tinham sido descobertos.
Um museu desde a década de 1950, a casa de família de Braille foi construída no século XVIII. A oficina, reproduzida no museu (na imagem), conta com a mesa de trabalho original, freios de cavalo e um furador do mesmo tipo que cegou Braille no terrível acidente de infância. Uma placa de mármore afixada no exterior da casa homenageia o inventor com as seguintes palavras: “Ele abriu as portas do conhecimento para todos os que não conseguem ver”.
Um acidente trágico
Os seus pais, consternados, não queriam que o destino do filho ficasse traçado numa época em que as pessoas com deficiência visual eram tratadas como sub-humanas e frequentemente ridicularizadas pela sua deficiência. Nas ruas de França, os cegos desfilavam com trajes ridículos ou resignavam-se a pedir esmola. O ensino público ainda não era obrigatório em França, mas os pais de Braille estavam cientes da importância da alfabetização. Para ajudar o filho, Simon-René pregou pregos para desenhar as formas das letras do alfabeto em painéis e pediu ao abade Jacques Palluy que desse aulas a Braille.
Aos sete anos, Braille já frequentava a escola local, onde era o único aluno cego. O seu professor ficou espantado com sua inteligência e comportamento alegre – características que foram admiradas pelos seus amigos de ao longo de toda a sua vida. Alguns anos mais tarde, Braille obteve uma bolsa de estudo para prosseguir os seus estudos no Instituto Real para os Jovens Cegos, a primeira escola do género e que ainda hoje funciona, sob a designação de Instituto Nacional para os Jovens Cegos, ou INJA. Aos 10 anos, foi o aluno mais novo do instituto.
O mais espantoso de tudo foi que a sua família, que era tão unida, o deixou sair de casa. “A mãe e o pai poderiam facilmente tê-lo mantido na aldeia”, explica Farida Saïdi-Hamid, curadora do Museu Louis Braille. “Iriam escrever o seu destino sem saber.” O apoio da família seria uma constante para Braille e ele regressaria a Coupvray para descansar e recarregar baterias ao longo de toda a sua vida.
Uma oportunidade de aprendizagem
Fundado pelo educador pioneiro Valentin Haüy, o instituto foi inovador na sua metodologia e abordagem. Os alunos aprendiam uma variedade de temas académicos e um ofício manual. Haüy criara uma forma de estampar livros com letras em relevo, que as crianças conseguiam ler com as pontas dos dedos, embora com grande dificuldade. A escola seria a salvação e o fim de Braille, depois foi provavelmente ali que ele contraiu a tuberculose que acabou por matá-lo.
O edifício, situado no pólo estudantil de longa data de Paris, o Bairro Latino, era sujo, húmido e desgastado. Até fora utilizado como prisão durante a revolução francesa. No entanto, apesar das más condições e dos castigos, por vezes, severos aplicados às crianças que quebravam as regras, Braille prosperou, fazendo amigos e alcançando a excelência nos estudos. Os professores repararam na sua notável inteligência e qualidade espiritual. O seu amigo Hippolyte Coltat escreveu mais tarde: “a amizade com ele era um dever escrupuloso, bem como um sentimento de ternura. Ele teria sacrificado tudo por ela, o seu tempo, a sua saúde, as suas posses.”
A paixão de Braille pela música nasceu no instituto, onde músicos profissionais davam aulas e os alunos, mostrados a tocar nesta ilustração de 1903, se juntavam à orquestra. Ele ganhou o prémio de violoncelo no seu quinto ano, desenvolveu talento para o piano e inventou um método táctil para ler e escrever música. Enquanto organista, tocou em igrejas de várias paróquias, complementando o seu parco rendimento de professor.
Momento eureka
O catalisador da invenção de Braille deu-se em 1821. O capitão Charles Barbier, oficial de artilharia, criaria um meio de “escrita nocturna” para o exército francês transmitir e executar ordens sob o manto da escuridão. Convencido do seu mérito para as pessoas cegas, Barbier transformou este código de pontos e traços num sistema de base fonética que apresentou aos alunos. Havia falhas linguísticas – a sonografia reduzia a linguagem a sons, por isso a ortografia não era exacta e não havia pontuação –, mas Braille teve uma epifania. Um sistema de pontos seria um método fácil e eficiente para as pessoas com deficiência visual lerem e escreverem.
Ele passou os quatro anos seguintes a trabalhar nesse código. No instituto, fazia directas depois de as aulas terminarem. Mesmo quando estava de férias em Coupvray, os aldeões diziam que viam o rapaz sentado numa colina com um estilete e um papel na mão. Aos 15 anos, conseguiu criar aquela que viria a tornar-se conhecida como a escrita braille. A base do sistema eram células de seis pontos dispostos ao longo de duas colunas e três filas. Cada combinação de pontos em relevo representa uma letra do alfabeto. Era elegante na sua simplicidade e lógica.
Os alunos da escola adoptaram rapidamente o seu uso – permitido oficiosamente pelo director François-René Pignier. Braille reconheceu humildemente a sua dívida para com Barbier no seu livro Processo para Escrever as Palavras, a Música e o Cantochão por meio de Pontos, para Uso dos Cegos e disposto para Eles, publicado em 1829: “Se sublinhámos as vantagens do nosso método em relação ao dele, temos de dizer, em sua homenagem, que foi o seu método que nos deu a nossa ideia.”
A Batalha pelo Braille
Apesar de Pignier ter promovido o braille e endereçado cartas ao governo, o sistema não foi imediatamente aceite. A ordem estabelecida, ditada pelas pessoas com visão, era resistente à mudança e favorecia o uso uniforme de um sistema de escrita.
Braille tornou-se professor no instituto aos 19 anos. Aos 26 anos, foi diagnosticado com tuberculose, tendo passado longas temporadas de convalescença na sua casa em Coupvray. Entretanto, intrigas políticas na escola levaram à saída de Pignier. O seu substituto, Pierre-Armand Dufau, recusou peremptoriamente o uso do braille, chegando a queimar livros e a castigar alunos apanhados a usá-lo.
Braille também desenvolveu o sistema do decaponto, no qual pontos em relevo formam letras do alfabeto latino. O seu amigo Pierre-François-Victor Foucault desenvolveu o rafígrafo, na imagem, para escrever em decaponto. O sistema era complicado, mas Braille utilizou a máquina para escrever cartas, incluindo para a sua “querida mãe”.
Graciosamente, Braille persistiu na sua luta pela aceitação do seu novo sistema de escrita. Uma carta que escreveu a Johann Wilhelm Klein, fundador de uma escola para pessoas cegas em Viena, em 1840, mostra os seus humildes esforços de persuasão ao descrever mais uma invenção, o decaponto, um meio para as pessoas cegas e com visão comunicarem entre si: “Ficaria muito feliz se os meus pequenos métodos pudessem ser úteis para os seus alunos e se este espécimen for, a seus olhos, a prova da elevada consideração que tenho por ser, meu senhor, o seu respeitoso e muito humilde servo, Braille.”
O reconhecimento chegou finalmente em 1844, na inauguração das novas instalações da escola na Boulevard des Invalides. Por esta altura, Dufau já mudara de ideias em relação ao braille, devido à insistência do director adjunto, Joseph Guadet. Após um discurso sobre o sistema de pontos em relevo, os alunos demonstraram o seu uso, transcrevendo e lendo versos. Guadet escreveu mais tarde: “Braille era modesto, demasiado modesto... as pessoas à sua volta não o valorizavam… Talvez tínhamos sido os primeiros a atribuir-lhe o seu merecido lugar aos olhos do público, quer por termos utilizado o seu sistema de forma mais generalizada na nossa instrução musical ou por darmos a conhecer todo o significado da sua invenção.”
Ligando os pontos
Louis Braille não viveu tempo suficiente para assistir àadopção universal do braille. Morreu a 6 de Janeiro de 1852, na companhia do seu irmão e amigos. Nenhum jornal publicou a notícia da morte do homem a quem Jean Roblin, o primeiro curador do Museu Louis Braille, chamou “o apóstolo da luz”. Alunos angariaram dinheiro para o escultor parisiense François Jouffroy fazer um busto em mármore baseado na máscara funerária de Braille.
Em 1878, em Paris, o congresso global para pessoas surdas e cegas propôs uma norma internacional de braille. O braille foi oficialmente adoptado pelas pessoas de expressão inglesa em 1932 e os esforços pós-guerra da UNESCO unificaram adaptações na Índia, em África e no Médio Oriente. É impossível sobrestimar o legado profundo de Braille.
No centenário da sua morte, os feitos de Braille foram finalmente celebrados numa homenagem nacional. O seu corpo foi exumado do cemitério de Coupvray e transferido para o Panteão de Paris, o local de repouso dos grandes cidadãos de França. (As suas mãos permaneceram numa urna decorada com flores de cerâmica na sua sepultura em Coupvray.) O desfile pelas ruas de Paris incluiu centenas de pessoas cegas, de braço dado, algumas com óculos escuros, batendo com bengalas brancas nas pedras da calçada.
Contudo, a luta continua 200 anos após a invenção da escrita braille. É uma luta para preservar não só a memória de Louis Braille, tema de surpreendentemente poucas biografias, como o uso do seu sistema na era digital. As crianças com deficiência visual estão, cada vez mais, a aprender com ecrãs e programas de áudio, mas os neurocientistas dizem que a escrita é fundamental para o raciocínio, as ligações cerebrais e a aprendizagem. Os benefícios cognitivos da escrita têm uma importância fundamental. Estudos mostraram que quando uma pessoa cega lê braille através do tato, o córtex visual fica iluminado.
Perante a escassez de professores de braille em todo o mundo, a alfabetização em braille desceu a pique e o seu próprio futuro está em perigo. Saïdi-Hamid, curadora do Museu Louis Braille há quase 17 anos, compara a sua luta para defender o braille com um “combate para defender a própria inteligência”. Sublinhando a “personalidade extraordinária” de Braille, disse Saïdi-Hamid, “ele sempre encarou a sua deficiência como uma força e não como uma limitação”. Tal como Braille lutou durante a sua vida, a luta tem de continuar.
Seis milhões de pessoas usam o braille atualmente. O seu futuro está assegurado num mundo de alta tecnologia. A escrita pode ser facilmente convertida para formatos digitais e pode ser lida e escrita nos ecrãs tácteis de computadores ou tablets. Um utilizador de braille experiente consegue ler 200 palavras por minuto (a maioria das pessoas com visão consegue ler 250). Embora a alfabetização em braille esteja a diminuir, será necessária para um futuro no qual o envelhecimento da população fará aumentar o número de pessoas cegas e com deficiência visual. O seu poder como sistema universal que pode ser utilizado por qualquer pessoa independentemente do seu background linguístico, fez com que o seu criador francês alcançasse o estatuto de herói internacional.
Fonte: National Geographic por indicação de Livresco
Sem comentários:
Enviar um comentário