“Há pessoas que não aceitam o rótulo deficiente. Quando eu era pequena custava-me. Agora aceito bem. É uma palavra normal, a maldade está na cabeça de quem a diz. Cabe ao deficiente perceber quando é pejorativa ou não”, acredita Ana Luísa Sousa.
Depois de ter sido vítima de bullying a jovem de Paços de Ferreira, hoje com 24 anos, superou a situação e garante que a deficiência não a impede de concretizar os sonhos.
Ambiciona por uma carreira na escrita e já lançou um livro, estando a escrever outro. Tem carta de condução e está a tirar um curso técnico de secretariado, mas, se não encontrar trabalho, quer voltar a tentar entrar na universidade. As limitações também não a impedem de desejar constituir família, cumprindo o grande sonho: ser mãe.
Ana Luísa tem hemiparesia esquerda associada a um atraso cognitivo ligeiro. Uma expressão difícil que justifica que, desde o nascimento, esta jovem, que viveu a vida entre Lustosa, Lousada, e Raimonda, Paços de Ferreira, tenha de se debater com dificuldades de motoras, na parte esquerda do corpo, problemas de equilíbrio e de dicção.
“A minha mãe teve uma gravidez normal e nasci com nove meses em Guimarães. Tive paragens cardio-respiratórias e passei três meses na incubadora. Estava tão mal que não deram grandes esperanças aos meus pais. Cheguei a desligar por completo e depois o meu coração voltou a bater. Há quem diga que foi milagre”, conta.
Os pais não estavam preparados para a luta que se avizinhava, assume a jovem. “Fui uma má surpresa”, diz. A mãe passou por uma depressão e o pai, na altura empresário, esforçava-se por arranjar sempre tempo para ainda estar com ela ao final do dia, apesar do cansaço.
Aos seis anos via mal e quase não ouvia. “Ninguém me percebia a falar”, refere. Teve de ser submetida a uma cirurgia que lhe melhorou a qualidade de vida. Só aos sete anos entrou para a escola. As consultas, a fisioterapia e a terapia da fala eram recorrentes. “Era muito cansativo. Chegava a dormir na sala”, explica Ana Luísa. Costuma dizer que não teve infância, tal era o tempo que passava em hospitais.
O diagnóstico tardou. E o nome à doença só foi dado aos 18 anos, depois de realizar uma nova TAC ao cérebro. “Já tinha feito um em pequena, mas não acusou nada porque o cérebro ainda estava a desenvolver-se. Eu sempre desejei saber o porquê, sempre procurei respostas. A TAC mostrou que sofri uma hemorragia interna e que a parte esquerda do meu cérebro é mais pequena que a direita”, justifica a pacense.
“Crescer com esta diferença foi muito mau. Não tive acompanhamento psicológico e sempre fui muito revoltada. Demorei muitos anos a aceitar a deficiência, sobretudo por causa dos outros”, assume Ana Luísa Sousa.
“Na escola sempre fui vítima de bullying. Já me custava entender porque tinha problemas, era uma criança, e essa incompreensão dos outros chocava-me. Fui vítima de uma sociedade retrógrada que não aceita a diferença”, acredita a jovem.
Nos colégios pelos quais passou na juventude era discriminada pelos colegas, mas também pelos professores e não esconde que chorou muito. “Punham-me de parte e não me integravam. Sofri muito no 5.º e 6.º ano de bullying físico e psicológico, se bem que o psicológico foi muito maior que o físico e deixou marcas irreparáveis”, garante a pacense.
No 7.º ano passou para a escola pública, e diz que, curiosamente, a sua vida melhorou. Na escola que frequentava em Lustosa encontrou amigos e passou a ser acarinhada. “No início foi difícil, porque vinha traumatizada pelo que se passou. Eles tentavam aproximar-se e eu, com medo, retraía-me”, não esconde. Mas depois, esses colegas e o melhor amigo que fez para a vida ajudaram-na a superar e a ganhar auto-estima.
Mas isso não impediu de sofrer problemas mais para a frente. “No 11.º ano tinha uma professora que não me escolhia para ler porque eu lia de forma muito lenta por causa do meu problema de dicção. Em todas as aulas lia um aluno diferente e ela passava-me sempre à frente”, dá como exemplo.
“Hoje, isso está ultrapassado, mas ainda vivo com as marcas e não as vou esquecer. Tiveram consequências na personalidade que tenho hoje de não confiar em ninguém e ser introvertida e anti-social”, acredita Ana Luísa.
Fez o 12.º ano e tentou entrar na universidade na vertente de ensino. Ficou de fora por uma décima. “Era uma aluna razoável, mas com tudo o que vivia não era aluna de cincos”, reconhece.
Ficou triste, mas não baixou os braços. Foi tirar a carta de condução, algo que sempre quis. “Um carro é a minha independência. Passei à primeira em tudo e estou à espera de que a minha vida se componha para comprar um carro, que tem de ser automático”, explica.
Desde Março, está a tirar um curso remunerado de secretariado. Vai cumprir um estágio. O futuro dependerá de conseguir ou não um emprego. “Se não arranjar trabalho, o que neste país é o mais provável, quero voltar a tentar a universidade”, adianta.
As opções passam por cursos na área do apoio à gestão, organização de eventos ou comunicação. “Sou multifacetada, mas com o meu problema não posso estar muito tempo de pé”, diz.
Pelo meio disto tudo nasceu um livro, escrito ao longo de vários anos. “Sempre gostei de ler e de escrever. A literatura e a escrita eram o meu refúgio”, confessa a jovem de Paços de Ferreira.
O livro, publicado por uma editora brasileira, chama-se “My Dream – Um amor para toda a vida”. “Não é fácil lançar um livro em Portugal quando se é desconhecido e o Brasil tem um mercado maior e mais aberto às pessoas com deficiência”, refere Ana Luísa Sousa, que sempre teve presença na internet e tem um blogue onde divulga os seus pensamentos e poesia.
A história do seu primeiro livro é ficcionada. “A minha vida já tem episódios demasiado trágicos”, lamenta. Mas a personagem principal, Constança, tem traços seus. É uma menina que tem uma deficiência motora. “É um romance que conta a história de um casal, sendo que a personagem feminina também tem problemas, não tantos como eu, mas tem a minha personalidade. A história é uma volta ao mundo, sendo que o casal se reencontra e tenta superar a distância”, resume.
Para a jovem, este livro é mais um exemplo da sua capacidade de superação. Aos 18 anos teve o acompanhamento psicológico que devia ter tido mais cedo. “Isso permitiu-me ver a vida de outra forma. O meu problema já não é um bicho-de-sete-cabeças. Pode ser mais complicado e um caminho não tão fácil, mas no meu tempo também chego lá”, explica.
“Já passei por muita coisa na vida, mas nunca desisti de nada e a minha limitação nunca me impediu de fazer nada. Tento sempre dar a volta às situações e não vejo o meu problema como um empecilho. Acho que posso servir de exemplo a outros jovens”, assume.
Para o futuro continua a fazer planos. Ambiciosa ter uma carreira na escrita, quem sabe internacional, e já está a escrever um novo livro, agora de poesia. Quer um emprego ou frequentar a universidade e, depois de ter uma carreira estabilizada, o seu grande sonho é ser mãe. “Quero uma família e filhos”, garante.
Fonte: Verdadeiro Olhar por indicação de Livresco
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