“Vamos fazer um jogo de palavras”, propõe Heliana Sá. À sua frente está B., de cinco anos, aluno do Jardim de Infância da Igreja, em Paços de Brandão. O rapaz tem um fato de treino vermelho e o cabelo desgrenhado. Debaixo da pequena mesa em que está sentado, não consegue ter as pernas paradas. “Quero que me digas os nomes todos os animais que conheces”, prossegue a psicóloga. A resposta da criança surge pronta: “Se for um dinossauro também conta?”.
Não conta. E B. começa a enumerar: “Cobra, leão, tigre”... “Elefante.”
“Dinossauro”, acaba por dizer.
Heliana Sá é uma de três pessoas que trabalham na coordenação do projecto “O crescente do ler”, lançado no ano lectivo passado pela Federação de Associações de Pais de Santa Maria da Feira (Fapfeira) para trabalhar a literacia emergente (ver caixa) das crianças do pré-escolar do concelho.
Enquanto B. desfia os nomes dos animais, a psicóloga tem um cronómetro à sua frente. Tenta perceber quantas palavras da mesma família a criança é capaz de dizer num minuto. O jogo serve para aquilatar a sua fluência verbal. É o sexto de oito exercícios que está a fazer com todas as crianças do pré-escolar do concelho de Santa Maria da Feira desde as primeiras semanas do ano lectivo, de modo a fazer uma caracterização do conjunto de crianças.
“Depois voltamos a repetir isto tudo em inícios de Maio, para apanhar o final do ano lectivo e percebermos a evolução”, explica Heliana Sá. “O crescente do ler” começou no ano lectivo passado e não tem ainda resultados finais para mostrar. Ao longo deste ano, os técnicos vão acompanhar um grupo de alunos do 1.º ano, que no ano passado estiveram envolvidos na iniciativa, para perceberem a sua evolução.
No entanto, a intenção é bem clara: identificar precocemente as dificuldades das crianças com a língua e dar-lhes uma resposta diferenciada. Mesmo sem números a que possa recorrer, a educadora no Jardim de Infância da Igreja, em Paços de Brandão Maria José Monteiro não tem dúvidas dos méritos do projecto. “No final do ano, nota-se bem a evolução”, diz. Sobretudo ao nível da rapidez de resposta e da fluidez da linguagem.
Antes de enumerar todos os nomes dos animais de que se lembrava, B. teve também que identificar a primeira sílaba de um conjunto de palavras ou repetir os nomes de cores ou objectos alinhados numa folha de papel. São todos exercícios destinados a caracterizar o se nível de conhecimento linguístico.
Tal como este despiste feito no início do ano lectivo pelos psicólogos da Fapfeira, o trabalho feito ao longo do ano nos jardins-de-infância também se baseia em jogos. “Usamos lenga-lengas, trava-línguas e canções”, conta Maria José Monteiro. As crianças aprendem sem disso se aperceberem.
Estas não são estratégias novas no ensino pré-escolar. A diferença trazida pelo “O crescente do ler” é que o acompanhamento feito ao longo do ano, pelos técnicos da Fapfeira e pelos Serviços de Psicologia e Orientação (SPO) dos agrupamentos de escolas, permite às educadoras saber em que áreas é preciso incidir mais com cada grupo.
O programa é acompanhado por Diana Alves, professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), que faz a formação dos psicólogos e educadores e também consultoria.
A base da intervenção é a metodologia Response to Intervention (RTI), um modelo multinível, que permite ir ajustando as respostas às dificuldades encontradas. A caracterização universal que Heliana Sá aplicou a B. no Jardim de Infância da Igreja foi repetida com as quase 900 crianças envolvidas na iniciativa em todo o concelho de Santa Maria da Feira. Esse trabalho serve para identificar o ponto de partida de cada um dos grupos de crianças, a partir do qual é definido um primeiro nível de intervenção para toda a turma. “Aquilo que nós sabemos é que o grupo não responde da mesma maneira a uma instrução que é igual para todos”, explica Diana Alves.
Por isso, alguns alunos “responderão de forma mais eficaz”, mas outros “necessitarão de mais alguma informação”. Daí que exista um segundo nível de resposta, que permitirá às educadoras trabalhar, com grupos mais pequenos de alunos, de forma mais repetida.
O modelo pressupõe ainda um terceiro nível destinado às crianças para as quais se sinta que, apesar do investimento feito no nível 2, não houve qualquer ganho. Para esses casos, pode ser solicitada a intervenção de um técnico do serviço de psicologia ou de equipas do ensino especial, por exemplo.
A Fapfeira já tinha tentado desenvolver um programa de caracterização dos alunos de cinco anos em 2015/16. Na altura, o trabalho era focado na fase final do ano, tentando ajudar as crianças na transição para o 1.º ciclo. A nova versão, iniciada com a entrada da FPCEUP em 2016/17, é “muito mais promotora e menos remediativa”, valoriza o presidente da federação de associações de pais, Luís Barbosa.
“O crescente do ler” está presente nos nove agrupamentos de escolas públicos do concelho, aos quais, este ano, se juntaram os jardins-de-infância de 11 IPSS. O interesse ultrapassou até as fronteiras do município e, neste momento, há escolas dos concelhos vizinhos Vila Nova de Gaia, Ovar e Espinho interessadas em juntar-se a ele.
É a autarquia que financia a contratação dos técnicos e os aspectos logísticos da iniciativa, “seduzida” pela possibilidade de serem abrangidos todos os jardins-de-infância de Santa Maria da Feira, explica a vereadora da Educação, Cristina Tenreiro.
O município tem características muito particulares. Dos seus 139 mil habitantes (dados do Censo de 2011), apenas 18 mil vivem na cidade que é sede de concelho. Os restantes vivem noutros pólos urbanos dispersos pelo território, onde se incluem outras duas cidades (Fiães e Lourosa) e cinco vilas — além de Paços de Brandão, também Santa Maria de Lamas, S. Paio de Oleiros, Arrifana e Argoncilhe têm esse estatuto.
Além disso, a iniciativa faz uma articulação com os agrupamentos, o que tem sido crucial para que, nas escolas, “não haja a sensação de que este é algo que vem de fora e é imposto” prossegue a responsável autárquica.
Essa “dimensão ecológica” é uma das “vantagens do modelo”, acredita Diana Alves. Os especialistas da FPCEUP e os técnicos da Fapfeira trabalham de perto com os educadores e psicólogos. Após a caracterização inicial, os resultados são passados aos SPO das escolas e são estes quem reúne com as educadoras. São também os psicólogos escolares quem faz o acompanhamento mais regular do trabalho nas salas dos jardins-de-infância, identificando as crianças que precisam de uma atenção particular.
Fonte: Público
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