domingo, 21 de outubro de 2012

Special Olympics. Em vez de metal, estas medalhas têm outro sabor

Ela nem sequer ia correr. Membro de pleno direito das equipas de basquetebol e futebol, foi apenas por acaso que Maria de Abreu resolveu entrar na prova dos 100 metros daqueles Jogos Mundiais de Atenas. Saiu de lá com uma medalha de prata, mas não quer repetir. “Ai, odeio correr! Se for num jogo de futebol ainda vá, agora correr a direito para o nada… Tudo menos isso!” Se isto fosse alta competição, quase podíamos apostar que a Maria iria continuar a correr, gostasse ou não. Mas isto são os Special Olympics – “a diferença é que aqui não participam só os melhores, participam todos, tenham jeito ou não”, explica a vice-presidente da organização em Portugal, Regina Mirandela da Costa.

Aqui estão 10 associações e cerca de 100 atletas. Há elementos de ambos os sexos, que jogam juntos, e as idades vão dos 20 aos 40. O que os liga é o facto de terem todos deficiência intelectual. Uns têm perturbações mentais, outros sociais, alguns com um grau maior, outros com menos. O torneio, organizado pela CERCICA (Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais), tem clubes de várias zonas do país, da Covilhã ao Montijo. As modalidades incluídas são a natação, a petanca (uma espécie de cruzamento entre o chinquilho e o bowling), o basquetebol e o futebol, de longe a mais popular entre os participantes.

“As raparigas também sabem jogar futebol!”, assegura Maria. Foi isso que a fez inscrever-se na equipa da CERCICA, para provar que também tinha jeito. Com 23 anos, era a única mulher no meio de tantos homens e ao fim de um ano já estava farta da situação. Daí que não descansou até trazer uma amiga da instituição para experimentar um treino. A amiga, também de nome Maria, gostou e acabou por ficar. “É uma chatice para nos distinguirem’”, conta-nos entre risos. Se para os dois Carlos da equipa já se arranjou a solução Carlão e Carlitos, para estas Marias-rapaz ainda não há alcunhas à vista. Exceto nas camisolas: uma tem lá escrito Maria de Abreu e a outra tem um original Di Maria.

Na equipa B da CERCICA está também João Guimarães. O colega da Maria tem a mesma idade dela e é igualmente falador. Tímidos ao início, depois de arrancar não param, embora raramente nos olhem nos olhos. Mas se Maria é mais sossegada, João não pára quieto e salta de um assunto para o outro. “Em casa tenho para aí umas cinco medalhas!”, avisa. “Olha-me estas caneleiras, são muita fixes, nunca me aleijo”, acrescenta, enquanto baixa uma meia para nos mostrar. “Sabes, eu hoje ‘tou um bocado elétrico, já estive a tomar o meu cafezinho da manhã.” O café do João é sagrado: todos os dias bebe um Nespresso em casa, ou toma um na rua. “O médico deixa, por isso é na boa.” Depois apanha o 413 no Largo de Manique e sai na última paragem, no Estoril. Vai para o Centro de Congressos, onde trabalha graças a uma parceria conseguida pela associação. João ajuda a montar palcos, a levar cadeiras, a deixar tudo pronto antes de cada sessão. “Até tenho uma farda! É assim creme e preta.” E o ambiente no trabalho não é nada mau. “Até já me deram uma alcunha, vê lá! Um é o Alentejano, porque é do Alentejo, outro é o Careca, porque não tem cabelo, e eu sou o Pinguim.” Porquê? “Não sei!”, confessa com ar de satisfação.

UMA QUESTÃO EMOCIONAL 
Antes da eventual profissão há o meio académico, um dos maiores obstáculos que enfrentam. “Estes são miúdos que geralmente nunca brilharam em nada na vida”, explica Ana Flores, responsável da CERCICA há 12 anos. “No desporto têm essa hipótese, por isso é natural que adorem isto e que alguns até sejam ligeiramente gabarolas.” Ninguém lhes leva a mal. Da mesa, alguém grita para as bancadas um “não chamas nomes aos atletas!” Os ânimos exaltam-se, como em qualquer prova desportiva, mas os técnicos tentam dosear a competitividade. No fundo, a importância de ganhar relaciona-se mais com uma questão de reconhecimento e auto-estima. Assim o prova a reacção da Maria quando recebeu a sua medalha. “Eu nunca vi uma miúda tão feliz”, assegura Regina. “Até quebrei o protocolo e deixei-a ligar ao pai a contar. Ela só repetia ‘Já tenho a minha medalha…’”

“Hoje, se os meus pais estivessem aqui faziam a festa toda”, diz ela. Como muitos outros, os pais da Maria não podem faltar ao trabalho, daí que o pavilhão dos Lombos, em Carcavelos, esteja a meio-gás. O mesmo se passa com os pais do João. “Eu logo quando chegar a casa vou estar sozinho, que a minha mãe ainda não chegou do trabalho. Entretenho-me a jogar PlayStation e vou ao Hotmail ver se alguém me mandou alguma coisa pela internet.” Mas a relação entre as famílias e as instituições é por vezes complicada. Há associados órfãos a viver nas residências, há outros com famílias ausentes e até alguns cujos pais têm pulseiras eletrónicas. No extremo oposto estão aqueles que dependem por completo dos progenitores que não conseguem cortar o cordão umbilical. “Por isso é ótimo quando os conseguimos levar para competições no estrangeiro”, explica Regina. “Eles cumprem os horários, vestem a roupa que mandamos, comem o que dizemos e fazem tudo isso sozinhos. Depois chegam mais autónomos e alguns pais não lidam bem com isso.”

A dependência entre pais e filhos assenta também nas óbvias questões de saúde, mas ali não são problema. Enquanto conversamos, um jogo de basquetebol tem de ser interrompido porque um dos atletas está a ter uma convulsão. Os bombeiros aproximam-se, os treinadores e árbitros ajudam – é uma situação quase banal e já todos sabem lidar com isso. Pouco tempo depois já está tudo bem e todos os olhos se voltam de novo para o campo. No basquetebol, a CERCICA domina. No futebol, o equilíbrio é mais precário. “A Maria resolve, que ela marca golos a sério!” A garantia é do João, colega de equipa dedicado. Meia hora depois, ali está a confirmação. Maria inaugura o marcador para a CERCICA e tem uma equipa inteira a festejar à volta dela. Bem melhor do que qualquer medalha, apostamos.
Por Cátia Bruno

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