Acho curioso o altíssimo índice de casos de TDAH, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, nos Estados Unidos. Há tempos me pergunto se a cultura de um país pode influenciar o diagnóstico. Conversando com Stuart Kirk, autor do livro sobre a história do DSM — Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, manual das doenças mentais editado nos Estados Unidos –, ele me sugeriu procurar o professor Manuel Vallee, da Universidade de Berkeley, na Califórnia.
Manuel Vallee é formado em antropologia, com PhD em sociologia.
Ele se especializou em sociologia médica e está terminando de redigir a tese “Desconstruindo a Epidemia Americana de Ritalina: Contrastando o Uso da Ritalina EUA-França”. Ele decidiu comparar o olhar dos psiquiatras franceses com o dos americanos no que diz respeito ao TDAH.
Até os anos 70, a grande maioria dos psiquiatras americanos praticava a psicanálise e, por isso, olhava sintomas das doenças como sinais que deveriam ser compreendidos e estudados, não como problemas em si. O que antes servia de porta de entrada para conhecer o outro passou a ser o foco do tratamento.
Assim, a tendência dominante hoje, pelo menos aqui, é de tirar o indivíduo de seu contexto social e isolar os sintomas. É uma forma de enquadrar a psiquiatria nas fronteiras bem explícitas da medicina biológica, com doenças claramente reconhecíveis e tratáveis. Com isso, elimina-se a subjetividade, o impacto do meio social sobre o individuo. Daí, o recurso fácil às drogas.
Recentemente, o jornalista Jed Bickman publicou, no site Counterpunch, um artigo alertando que em breve poderemos ter repetido, com as drogas para esquizofrenia e os antipsicóticos, o fenômeno que aconteceu com a ritalina: receitas em número cada vez maior para jovens e crianças.
Mas, na entrevista com o dr. Manuel Vallee, tratamos apenas do transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, o TDAH.Manuel Vallee – Quando estava na universidade, fiz uma cadeira de antropologia médica e o meu professor, que era espanhol, me perguntou se eu estava trabalhando em algum lugar. Quando disse que estava trabalhando em um agência de publicidade, com a conta de uma empresa farmacêutica, ele ficou doido. Passou meia hora me falando o que eu podia fazer. Fiquei pensando no que fazer. Comecei a desenvolver uma atitude mais crítica em relação à indústria farmacêutica. Como estudante, fiz análise da CHADD (Children and Adults with ADHD, Organização Americana de Crianças e Adultos com TDAH). Descobri que eles estavam brigando para desregulamentar a venda de Ritalina. Alguns jornalistas descobriram, depois, que a organização tinha financiamento da indústria farmacêutica. Quando essa informação veio à tona, eles pararam de brigar pela liberação da Ritalina.
Quando estava estudando a CHADD, tive a oportunidade de fazer um projeto de pesquisa na França. Primeiro, queria estudar o uso de antidepressivos. Mas era igual nos dois países [Estados Unidos e França]. O meu orientador me disse: “O que você precisa é encontrar um país que seja muito semelhante, mas onde os resultados sejam completamente diferentes”. Comecei a olhar para outras drogas e percebi que com a Ritalina isso acontecia.
Os franceses adoram um remedinho. É um consumo altíssimo. Segundo a Organização Mundial de Saúde, os Estados Unidos são os líderes no consumo per capita de remédios. A França vem em terceiro lugar. Mas, na França, é mais difícil dar Ritalina às crianças. Na minha visão, isso tem relação direta com quem domina o campo da TDAH. Nos Estados Unidos, a psiquiatria biológica ganhou poder nos anos 80, depois da publicação do DSM III (o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, ou Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais). Mas, na Franca, a psiquiatria biológica não tem o mesmo poder. E os psiquiatras biológicos não são os que lidam com o problema do TDAH.
Na Franca, os psiquiatras são treinados na psicanálise e aqui, são treinados na psiquiatria biológica, o que provoca diferenças fundamentais no conceito da TDAH. Aqui, é uma doença biológica e na França é um distúrbio de efeito psicológico causado por algum trauma ou pelo ambiente social e o tratamento é terapia psicológica, aconselhamento familiar, terapia de grupo, terapia da fala… é um olhar mais holístico.
Viomundo – Antes de começar seu estudo, o senhor tinha alguma conexão pessoal ou acadêmica com a França?
Manuel Vallee – Sou franco-canadense, falo francês fluentemente. Isso ajudou muito no trabalho. Foi um dos motivos e tive oportunidade de levantar financiamento para a pesquisa lá. Fazia mais sentido do que ir para a Itália ou um país escandinavo.
Manuel Vallee – Países diferentes adotam estatísticas diferentes. Na França, eu consegui dados sobre o uso da Ritalina, mas não sobre os diagnósticos, por exemplo. Olhando os resultados aqui, eles também não são claros.
Por exemplo, dizem que as crianças têm um rendimento melhor com a Ritalina. Mas todo mundo tem. Ela foi usada, originalmente, para manter pilotos [da aviação] focados e acordados. Então, o que você quer dizer com resultados? Qual é o resultado em três meses? Bom, mas e depois? Não encontramos estudos de longo prazo. A indústria farmacêutica é que financia os estudos e não tem nenhum interesse em estudar isso. A não ser que seja obrigada.
Alguns estudos mostram que as drogas perdem a eficácia depois de seis meses. É preciso descobrir se ajudam as crianças mesmo. E depois de dois anos, dez anos? Existem resultados negativos para a saúde? Existem vários. O FDA (Food and Drug Administration, agência federal que regulamenta o consumo de remédios e alimentos nos EUA) teve que botar uma tarja preto na caixa do remédio. alertando que ele pode provocar alucinações, problemas cardíacos, derrame e até a morte. Para algumas crianças que têm disposição genética, a Ritalina foi apontada como causa de problemas cardiovasculares, houve casos de crianças que morreram.
Viomundo – Recentemente, foi divulgado um estudo dizendo que a Ritalina não provoca problemas cardiovasculares. Mas o pé da reportagem dizia que o estudo tinha sido financiado pela indústria farmacêutica.
Manuel Vallee – Sob o olhar crítico da Ciência, esses estudos não têm valor. Eu recomendo a você o livro do John Abramson, “Overdosed America: The Broken Promise of American Medicine”. Ele é da Universidade Harvard e foi treinado para analisar pesquisas. Ele encontrou vários problemas com os artigos publicados no Lancet, no Journal of the American Medical Association (JAMA), no New England Journal of Medicine. Deu-se conta de que as conclusões eram fraudulentas, afirmações feitas sem base. E acabou descobrindo a indústria farmacêutica por trás, financiando as pesquisas. Ele deixou claro que os estudos financiados pela indústria não são confiáveis.
O psiquiatra britânico David Healy também fez muita pesquisa sobre a indústria farmacêutica e foi consultor do grupo que processou os fabricantes do Prozac e de outros antidepressivos. Por isso, teve acesso a todos os dados e descobriu que o antidepressivo não tem nenhum benefício significativo, quantitativamente, quando usado para crianças. E, com adolescentes, na verdade aumenta o risco de suicídios. Ele descobriu que quando as indústrias mandam pesquisas à FDA pedindo a aprovação de remédios, elas escolhem apenas o que tem de positivo no resultado, para promover. Ele provocou um furor e muitos protestos na FDA.
Viomundo – Começando pelo diagnóstico do TDAH, ele difere muito nos Estados Unidos e na França?
Manuel Vallee – O DSM (nos Estados Unidos), o sistema da França e a classificação da Organização Mundial de Saúde deveriam ser bastante similares, mas existe uma grande diferença entre esses sistemas de classificação.
Manuel Vallee – Para a classificação do TDAH é bem mais abrangente que o sistema da Organização Mundial de Saúde. Os americanos dizem que o sistema da OMS tem muitos defeitos. Enquanto isso, os britânicos dizem que os americanos estão completamente loucos. Você conhece a Lynn Payer? Ela é jornalista americana da área médica e escreveu um livro chamado “Medicine and Culture”, onde mostra o preconceito etnocêntrico de cada país. Todos acham, sendo os fundadores da Medicina moderna, que têm o monopólio da maneira certa de fazer as coisas. O que eu achei interessante entre os americanos e os franceses é que o DSM-IV leva a um diagnóstico de TDAH em 5% das crianças do país, enquanto o método da França atinge 1%. Então, a versão americana leva a um volume de diagnósticos cinco vezes maior.
Manuel Vallee – Na França, eu ouvi repetidas vezes que o TDAH é uma das doenças mais difíceis de diagnosticar porque tem tantos aspectos diferentes. É muito importante ter um extensivo e rigoroso processo. Analisar todas as opções para ter certeza de que foram eliminadas todas as possíveis explicações alternativas. Você só pode chegar ao diagnóstico depois de eliminar toda e qualquer outra explicação. Os franceses dizem que esse processo, em geral, leva entre oito e 24 horas. E eles preferem dar de 8 a 24 horas de avaliação, com psicoterapeuta, assistente social e tudo mais. Mesmo os que defendem com força o uso da Ritalina nunca chegam ao diagnóstico com menos de 8 horas de avaliação.
Aqui nos Estados Unidos, o tempo gasto para se chegar a um diagnóstico de TDAH para criança é de 45 minutos. E a média é de 22 a 72 minutos. É claro que existem exceções…
Nos EUA, o campo do TDAH é dominado pelos pediatras. Eles lidam com a grande maioria dos casos. E prescrevem 70% dos remédios consumidos pelas crianças.Manuel Vallee – Não. E quando você começa a olhar para isso mais profundamente, fica complicado, porque existem muitos fatores contribuindo para o resultado final. Nos Estados Unidos, você pode encontrar médicos que gostariam de passar mais tempo com a criança. Mas eles são avisados pelo HMO [health maintenance organization, organização que sob a lei americana pode oferecer atendimento em certos hospitais e com certos médicos] ou pela empresa de seguro de saúde que serão reembolsados apenas por uma visita de 45 minutos. Qualquer tempo extra que eles investirem no caso vai ter que sair do bolso deles. Temos um sistema que conspira para essa abordagem completamente diferente de tratamento.
Viomundo – Que outras diferenças o senhor encontrou, nos dois países, com relação ao tratamento do TDAH?
Manuel Vallee – Além do tratamento mais holístico, que envolve a escola e a família, os franceses ensinam os pais a reconhecer melhor os pontos fracos e fortes dos filhos. Também levam a Ritalina em conta, mas apenas como último recurso. Nunca como tratamento único. Fiz questão de procurar os médicos que defendem o uso da Ritalina na França. E até mesmo eles disseram que jamais usam apenas o remédio. Enquanto isso, nos EUA, 70% das crianças diagnosticadas com TDAH tomam Ritalina, ou um outro estimulante. E em 50% dos casos, é tudo que recebem. Então, é um tratamento completamente diferente nos Estados Unidos e na França.
Agora, existem pais, nos Estados Unidos, que buscam um tratamento mais holístico. Terapia, aconselhamento, mas têm que montar o pacote sozinhos. E é mais caro. Um dos motivos pelos quais o sistema francês pode oferecer esse tratamento mais holístico é porque é pago pelo governo. 85% do custo são pagos pelo governo.
Manuel Vallee – Ou a falta de um sistema de saúde… Outra coisa que acontece nos Estados Unidos está ligada ao treinamento de professores. Quando a criança chega ao consultório do pediatra ou do psiquiatra, ele já tem todo um dossiê, informações sobre aquela criança, fornecidas pela escola. O sistema produz incentivo na direção de um diagnóstico. Eu sei que houve muita resistência quando a indústria farmacêutica tentou treinar os professores na França. O Ministro da Educação combateu veementemente dizendo que esse não é o papel dos professores. Eles têm que ensinar e não diagnosticar. Para isso existem os médicos.
Viomundo – O professor olha apenas para o comportamento da criança, mas não sabe qual é o contexto. E a impressão que eu tenho do sistema, aqui, é que na maior parte do tempo, todo mundo é retirado do seu próprio contexto e analisado com base apenas nos chamados sintomas, que podem ser apenas uma reação a isso ou aquilo. Por isso acho difícil entender um psiquiatra pegar um questionário sobre o comportamento da criança, preenchido pelo professor, outro dos pais, olhar a criança por 25 minutos e chegar a um diagnóstico sem saber de onde vem essa criança, qual é a história da vida dela.
Manuel Vallee – Exato. É a descontextualizarão do indivíduo.
Viomundo – Isso também leva os profissionais a se apoiarem mais em remédios?
MV – Com certeza! Mas não é apenas isso. Eu dou aula de sociologia médica e sempre peço aos meus alunos que olhem para a individualização das doenças. Não apenas psiquiátricas, mas todas elas. Quando a pessoa aparece no consultório por causa de asma ou diabetes, o que fazem é individualizar a doença. Encontrar algo errado com o comportamento do paciente. Ver se pode haver algo errado com os genes da pessoa. Mas ninguém fala do quadro geral.
Por que as crianças que vivem perto de um porto têm vinte vezes mais casos de asma do que as outras? Então, ninguém fala do contexto social, ninguém discute porque as pessoas que vivem nas áreas mais pobres de Richmond, com menos acesso a comida de qualidade, têm índices de câncer mais elevados. Para cada incidência de doença vamos encontrar que as classes mais baixas têm menos acesso a recursos e têm índices maiores de doenças. Esta tem sido a tendência nos Estados Unidos, nos últimos 50 anos. E desde a publicação do DSM-III a psiquiatria parece estar tentando seguir essa tendência de descontextualizar as doenças. Fomos relegados a esse tipo de solução, que tem como alvo o nível biológico das coisas. Ninguém olha para as causas sociais. E eu acho que a descontextualizarão das doenças é ainda mais importante para as doenças mentais, me parece.
Viomundo – No resumo do seu trabalho, que ainda vai ser publicado, o senhor diz que os países do Terceiro Mundo devem ficar alertas. Por quê? Em algumas escolas brasileiras já existem programas de cooperação com psiquiatras, para treinar professores no reconhecimento de crianças com TDAH na sala de aula…
Manuel Vallee – Isso também acontece aqui. Você conhece o Peter Breggin? Em um dos livros dele, ele fala dos seminários para professores que são organizados pela indústria farmacêutica. Não foquei nessa área. Ainda quero pesquisar o papel da escola na produção dessa epidemia. Não tive oportunidade ainda e decidi focar primeiro na comunidade médica, para ver quem lida com TDAH e qual é a predisposição deles para analisar isso. Quando terminar, vou olhar mais detalhadamente para o papel que a educação desempenha nessa história de medicalizar as crianças com Ritalina.
Heloisa Villela, de Washington
Heloisa Villela, de Washington
In: Planeta Osasco, via FloreSer
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