segunda-feira, 24 de maio de 2010

"O meu filho é que me doía"

Atrasou-se. Atrasou-se muito. A culpa foi da doença que o apanhou e que o ia levando. A mãe mal saía de ao pé dele. O pai fotografava os amigos que ele ia fazendo na Unidade de Hematologia e Oncologia Pediátrica do Hospital de São João (Porto) e que iam morrendo - quase, quase todos. O regresso à vida dita normal nada teve de normal. O regresso à vida dita normal trouxe violência.
Tantas vezes, vindo das aulas, o rapaz entrou em casa a chorar. Um dia, os pais fartaram-se, accionaram o Programa Escola Segura. E os agentes apareceram, dentro das suas fardas, e ofereceram um raspanete a quem o agredia. Quando os agentes se enfiaram no carro-patrulha, a directora de turma ralhou: "Não era preciso chamar a polícia!"
A mãe indignou-se com aquela postura, que lhe parecia mais protectora de quem agredia do que de quem era agredido: "Cada vez que ele chegava a casa a chorar, chamava a Escola Segura. O meu filho é que me doía. O meu filho ainda hoje me dói. Ele tem 16 anos, mas não quero que lhe façam mal - nem quero que faça mal a ninguém.
"Tinha dez anos quando lhe diagnosticaram cancro. Fez quimioterapia - o cancro entrou em recessão. Sofreu uma recaída - tornou a fazer quimioterapia. Sujeitou-se a um transplante de medula óssea. Fez o 4.º ano de escolaridade em casa. Regressou à escola aos 13 anos.
A escola era outra: quem com ele partilhara sala ia lá à frente. E ele foi agredido por um matulão e encheu-se de medo. Pediu aos médicos que o deixassem ficar em casa. Ficou até ao fim do ano. Tornou a tentar a escola aos 14. Tornou a querer ficar: "Todos os dias, um miúdo metia-se comigo. Vinham mais. Davam-me pancada. Uma vez, trouxe um cadeado daqueles de pôr nas calças.
"É um rapaz de poucas falas e de poucos amigos. Talvez se tenha cansado de ver morrer. Por ele, estava sempre fechado em casa, sentado à frente do computador, a jogar ou a ouvir música. Habituou-se a ouvir a mãe falar nele - falar por ele. Habituou-se a ouvir o pai falar nele - falar por ele.
Sentado à mesa da sala e ouve o pai dizer: "Eram mais novos. Conheciam-se todos. Vieram todos da 4.ª classe. Juntavam-se três ou quatro e viravam-se para ele." E a mãe completar: "Lembro-me de o ver deitar sangue. Chegaram a vir atrás dele até casa. Ainda os ouvi dizer que a mãe dele era esta, era aquela, que o pai dele era este, era aquele; que se fosse à escola lhe iam cortar a coisa e que ia no INEM [Instituto Nacional de Emergência Médica]."
Os pais vão levá-lo, vão buscá-lo. Se pudessem, até cruzariam o portão da escola e iriam até à porta da sala. Certa ocasião, o pai enfureceu-se: "Vi um indivíduo dar-lhe um chapo e os seguranças não fizeram nada." Até queria saltar para cima de quem com o seu filho se metera.
Fintara a morte, mas parecia incapaz de lidar com a vida. Ficava os intervalos dentro da sala - como se estivesse de castigo. Pedia atestado ao médico. E a mãe, atrás dele, a fazer sinal: não.
Atendendo ao "clima" e às "dificuldades de integração" na turma, em Novembro de 2008 a psiquiatra pediu à escola que tomasse medidas. Como não notou melhorias alertou, já em 2009, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) do Porto Oriental: um doente oncológico, com um ligeiro défice cognitivo, estava a desenvolver sintomatologia ansiosa por ser vítima de bullying - abuso mental e físico, intencional, repetido.
A CPCJ aplicou uma medida de acompanhamento junto dos pais e envolveu a escola, que se comprometeu a vigiar e a integrar o rapaz. Houve alguma resistência. A escola argumentou que já o fazia com todos. E a CPCJ lembrou-lhe que aquele era um miúdo especial - sem estratégias de defesa, até pela superprotecção parental. E ouviu a escola advogar que o rapaz não era um anjo.
Não quis mudar de escola - não mudou. A CPCJ entendeu que forçá-lo a mudar de escola seria penalizá-lo - e impedi-lo de aprender a lidar com aquilo. Mudou de turma - e a turma foi sensibilizada para o sofrimento do rapaz; os pais não se cansam de elogiar a nova directora de turma.
Este ano, os pais não andaram a correr para a escola semana-sim-semana-sim por o filho ter caído nas mãos de um "valentão". Só esta semana houve sobressalto. Uma rapariga deu-lhe um estalo. Os óculos caíram - uma lente soltou-se. No dia seguinte, logo pela manhã, a directora de turma avisou a miúda: se fosse preciso pagar algo pelo arranjo, ela é que pagaria.
Os pais puseram-se logo em sentido, mas este episódio parece ser de natureza bem diferente. Alguém escreveu uma carta de amor a uma rapariga e assinou com o nome dele. Corado de vergonha, o rapaz negou a autoria do escrito, pedindo que reparassem não ser sua aquela letra. O debate aqueceu e uma amiga da destinatária da carta deu-lhe um estalo.
"O Conselho Executivo já disse que não pode ter um segurança em cima de cada aluno", reconhece a mãe. E o rapaz já não quer estar ali. O rapaz já nem quer frequentar o ensino regular. Já só quer fazer um curso de educação e formação de informática que lhe dê equivalência ao 9.º ano. E viver em paz.
Comentário:
Como já referi em outros textos sobre esta temática, infelizmente, os alunos com necessidades educativas especiais são vítimas preferenciais e continuadas deste tipo de situações. Compete a todos (escola, pais, restantes instituições, sociedade em geral) estar atentos e agir.

3 comentários:

Atena disse...

È o país que temos, alguma incompetencia e grande dose de negligencia para se fomentar que a vida em algumas escolas se assemelhe a uma autentica selva. Já faltou mais para se-lo na sua totalidade e os pais das vitimas que são sempre os mais fracos, terão também de pensar em agir como "animais"... Se as escolas não podem ter um segurança em cima de cada aluno que é vitima, provoca que sejam os pais desesperados a faze-lo. Não estou a ver outra solução para este problema real.

Cora disse...

Um dia não gostaria mais de ouvir estas histórias...sinto tanto que tenham passado por isso!
A lei não vale nada se dentro de casa, os pais incentivam, os filhos a baterem nos outros...é uma tristeza!
A educação começa dentro de casa, e se alicerça na escola, para formar pessoa de bem, com capacidades múltiplas...é isto que espera-se da escola!
Um forte abraço...excelente lição de vida!

Dulce Bregas disse...

Temo vir a passar por isto.
E nem sei o que farei,acho que sou bem capaz de agir irracionalmente,não sou perfeita...
Já a minha filha mais velha era espancada e mordida na pré-escola,fiz queixas educadamente,e o que ouvi foi que a menina que lhe batia,chegando a ter a minha filha no chão e pisar-lhe o pescoço...tinha tido leucemia,e não a queriam repreender.
Não tive opção,chamei a tal menina,na altura com 6 anos e disse-lhe que se não parasse de espancar a minha filha eu iria falar com os pais dela,isto com um dedo bem apontado no nariz da miúda.Nunca mais ela lhe tocou,se me sinto arrependida?Não...de todo,sou mãe,eduquei a minha filha para respeitar aquela menina que tinha pouco cabelo,porque fazia quimioterapia,e que não a magoasse nunca,que a deixasse passar nos baloiços,por isso tive que defender a minha filha que era somente calma demais.
Hoje sou mãe de uma criança com NEE,que farei?...Logo se verá.
Nem quero pensar.
Um abraço.