"Atenção, está muito rápido!”. Na sala Miguel Torga, uma turma do 5.º ano tem aulas de educação musical. Estão na Escola Básica da Trafaria, que tem alunos do segundo e terceiro ciclos e que faz parte do Agrupamento de Escolas da Trafaria onde, desde o ano lectivo de 2019/2020, o calendário escolar se organiza por semestres em vez de períodos. “A aprendizagem ganha com esta oferta semestral, não encontro uma desvantagem”, diz o director Sandro Batista Gonçalves.
Não é a única escola que prefere organizar o ano lectivo assim. Num universo de mais de 800 agrupamentos de escolas, há, segundo dados do Ministério da Educação, 95 organizados desta forma – mais 10 neste ano lectivo do que no anterior. Deste total, e no âmbito de planos de inovação apresentados, 55 fizeram-no ao abrigo de uma portaria publicada em Junho de 2019; os restantes 40 fizeram-no “no âmbito de contratualização com os municípios”, algo que é “formalizado em conjunto com os municípios junto do secretário de Estado adjunto e da Educação”. São quatro os concelhos que se organizam com calendário semestral: Almada, Amadora, São João da Madeira e Odivelas.
Recentemente, quando apresentou o plano de recuperação das aprendizagens prejudicadas pela pandemia, cuja versão final ainda será publicada, o ministro da Educação notou que o despacho do calendário escolar incluirá a possibilidade de organização semestral, dentro do mesmo município. Fê-lo na cerimónia que decorreu precisamente no Agrupamento de Escolas Dr. Azevedo Neves, na Amadora. À semelhança de Almada, também neste caso foi uma proposta concelhia, ou seja, os diferentes agrupamentos juntaram-se e, em conjunto com a autarquia, apresentaram projectos que incluíam o calendário semestral. A partir do momento em que o despacho incluir esta possibilidade, os agrupamentos, desde que aderindo todos os do município, podem pedir o calendário por semestres e no âmbito do plano de recuperação, que tem uma vigência de dois anos. A medida permitirá avançar para um modelo que, pelo menos a nível concelhio, ainda era residual.
A adesão de todas as escolas de um mesmo concelho é vista como positiva por alguns directores e autarcas: acautela que não haja, por exemplo, constrangimentos na transferência de alunos de uma escola para outra, causados por diferenças nos momentos de avaliação. Mas não só: a opção em bloco também pode ajudar na organização de questões relacionadas com transportes ou refeições. Carla Tavares, presidente da autarquia da Amadora, onde os 12 agrupamentos estão abrangidos, acrescenta, por exemplo, que não fazia sentido, mesmo para as famílias, ter um filho numa escola organizada por períodos e outro numa por semestres.
Não tem dúvidas das vantagens: “Este processo permite uma acção mais focada no aluno. Dividir o ano lectivo em dois momentos mais alargados permite centrar mais as avaliações nas aprendizagens, não só nos testes. Sou mãe de um aluno que também está no 8.º ano e notei diferença, fazem mais trabalhos, mais projectos, não estão apenas focados naquela avaliação sumativa. Dá-lhes mais responsabilidade e ferramentas para gerir esses projectos, por exemplo”, diz. Acrescenta que os três períodos “não são tão equilibrados em termos de tempo”, sendo “mais difícil ter uma avaliação formativa centrada nas aprendizagens”. Carla Tavares considera que o modelo “é mais positivo para a formação dos alunos”, que “reduz a pressão em relação às classificações”, permitindo que “essas classificações tenham mais conhecimento sobre o aluno”.
Estas são também as vantagens elencadas por alguns directores, professores e alunos: argumentam que os três períodos não estavam distribuídos pelo ano escolar de forma equilibrada, que os dois primeiros eram maiores e o terceiro normalmente muito curto; que com a organização semestral há mais tempo não só para trabalhar com os alunos, através de projectos, como também para recuperar de dificuldades.
Sandro Batista Gonçalves nota que, no caso de Almada, o projecto foi construído para três anos (já foi posto em prática no ano lectivo de 2019/2020 e no de 2020/2021) e que, para já, o balanço é positivo. Para este director, o calendário por períodos assentava em três momentos em que se sucediam avaliações, “umas atrás das outras”, o que também aumentava o stress. “Tínhamos aí semanas em que os miúdos tinham de fazer não sei quantos testes”, diz Sandro Batista Gonçalves. Também o director do agrupamento Dr. Azevedo Neves, na Amadora, se refere ao terceiro período como um “sprint”.
Projecto em torno das pandemias
De uma forma geral, nestes dois exemplos de Almada e da Amadora, em vez de três momentos de avaliação final quantitativa, passou a haver dois momentos, em paralelo com dois momentos de avaliação intercalar e qualitativa, e privilegiando-se a avaliação contínua. Além disso, deixou de haver coincidência entre momentos importantes de avaliação e períodos festivos como o Natal e a Páscoa. Aposta-se também mais em trabalhos de projecto, de grupo, em mais carga experimental em disciplinas como Física e Química ou Ciências. Há mais tempo para isso. “E os alunos têm também mais tempo para receber feedback e recuperar, não desmotivam tanto”, diz a professora de Matemática do 3.º ciclo, da Escola Básica da Trafaria, Benvinda Carvalho. Também Edna Guerreiro, professora de Inglês do 3.º ciclo neste estabelecimento, nota que mesmo os professores têm mais tempo para a recolha de elementos para a avaliação e para conhecer os alunos.
No caso da Trafaria, por exemplo – que é um Território Educativo de Intervenção Prioritária, à semelhança da Dr. Azevedo Neves –, este ano os alunos têm em mãos um projecto em torno das pandemias. Mariana Martins, Natalia Ivan e Tomás Martins, que estão entre o 5.º e o 9.º ano, contam que estão a trabalhar o tema em diferentes disciplinas. Fazem pesquisas relacionadas com História, Ciências, até Matemática: investigam sobre a gripe espanhola, sobre pessoas que a viveram, sobre a época, procuram informações sobre medicamentos, dados e números sobre o assunto. Também preferem o calendário semestral, sentem que andam menos cansados e mais motivados, entendem que, se algo correr mal, têm mais tempo para reagir.
Ainda assim, e apesar do optimismo que estes directores e professores mostram em relação ao modelo, considerando que promove o sucesso e que o balanço até agora é positivo, é preciso cautela na análise, porque, em ambos os agrupamentos, os anos que em que o projecto correu foram afectados pela pandemia, pelos confinamentos e pelas dificuldades do ensino à distância. O presidente do Conselho de Escolas, José Eduardo Lemos, tem, aliás, dúvidas de que seja uma medida eficaz para recuperar as aprendizagens prejudicadas. Por escrito (...), começa por ressalvar que “a eficácia de qualquer medida que as escolas venham a tomar dependerá do objectivo que pretendem atingir e da forma como a implementam”: “Pode haver directores que entendam, e eu respeito, que a organização do ano lectivo em semestres pode ajudar a recuperar aprendizagens, todavia eu não partilho desse entendimento. Não me parece uma medida útil para recuperar aprendizagens, desde logo, porque também houve aprendizagens perdidas nas escolas que já funcionavam em semestres. Portanto, se a semestralidade não foi capaz de impedir que a pandemia causasse estragos nas aprendizagens, também não creio que seja solução para as recuperar.”
Já para o director Bruno Santos, do Agrupamento de Escolas Dr. Azevedo Neves, na Amadora, que tem alunos até ao secundário, o modelo permite não só “períodos de trabalho relativamente equitativos”, mas também um “período de avaliação de diagnóstico mais alargado”, bem como mais tempo para “conhecer os alunos”. E também este director entende que possibilita apostar mais na avaliação contínua e na metodologia de trabalho por projecto: “Para desenvolvermos o projecto, temos de ter tempo.” Apesar de considerar que todos os ciclos beneficiam do calendário, Bruno Santos admite que aqueles em que se nota um maior impacto sejam o 3.º ciclo e o secundário, uma vez que os alunos têm mais autonomia para se envolverem em projectos e trabalho de investigação.
Mas o modelo também ajuda mais os alunos que enfrentem dificuldades ao longo do ano, diz, argumentando que o terceiro período acabava por ser apenas “uma recta final” que não ajudava à “promoção do sucesso”. Porquê? Porque os alunos ficam desmotivados: “Diziam ‘o terceiro é tão pequeno, já venho com negativas do segundo período, por que razão vou estar aqui a fazer um sprint no terceiro período se isto não me vai valer de nada?”. No modelo semestral, “a lógica passou a ser mais alargada, os alunos passaram a ter uma opção de um percurso de recuperação maior, há mais tempo, há mais trabalhos em que são accionados”, nota. Não nega que foi preciso vencer algumas resistências, mas que, à medida que o tempo passou, os professores passaram a abraçar cada vez mais ferramentas de ensino e instrumentos de avaliação que não exclusivamente os testes.
Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, lembra que esta associação sempre se bateu pela possibilidade de as escolas se poderem organizar desta forma, de maneira a combater um “calendário bipolar”, com um “mini terceiro período”. Ressalvando que não se trata de afirmar que “os semestres vão salvar a pátria”, admite que um calendário mais equilibrado na divisão do tempo é mais propício “ao sucesso escolar”.
Fonte: Público
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