segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Para a reconfiguração dos exames e do sistema de acesso ao ensino superior

Os exames, para muitas pessoas, podem ser uma boa estratégia para melhorar a qualidade da educação porque permitem verificar se determinados conteúdos previstos no currículo são ensinados e aprendidos pelos alunos; “pedir contas” aos professores e às escolas acerca dos resultados obtidos; certificar as aprendizagens e competências evidenciadas; e selecionar os alunos para determinados fins. Nesta perspetiva, os exames influenciam e determinam o que se ensina e como se ensina e o que se aprende e como se aprende.

Para muitos autores, os exames possuem vantagens tais como moderar as avaliações internas; induzir práticas inovadoras de ensino e de avaliação; dar a conhecer aos professores, aos alunos e às famílias o que é importante ensinar e aprender; e motivar os professores para a eventual necessidade de reverem os seus processos de trabalho.

Dir-se-ia que os exames podem ser utilizados com intenções e propósitos louváveis. Porém, os seus efeitos nefastos e indesejáveis estão largamente comprovados. O principal é o chamado “empobrecimento” do currículo, decorrente do facto de o ensino se concentrar no que “sai nos exames” ignorando tudo o mais (e.g., competências relacionadas com conteúdos específicos, aprendizagens de natureza social e emocional). Todas as disciplinas que não são objeto de exame perdem a sua relevância na formação dos alunos.

Por outro lado, os exames induzem práticas tais como: apostar mais nos alunos que se pensa poderem ter melhores resultados do que naqueles que, supostamente, não terão essa possibilidade; treinar respostas para certas questões; ensinar técnicas para rejeitar certas opções nas perguntas de escolha múltipla; e pressionar os alunos com mais dificuldades para desistirem. Temos assim um conjunto de efeitos indesejáveis que questionam frontalmente a natureza e a profundidade das aprendizagens assim supostamente desenvolvidas. A investigação tem evidenciado que os exames, por natureza, não contribuem para aprender melhor, com mais profundidade e compreensão. As avaliações internas, da responsabilidade dos professores, são as que podem melhorar substancialmente as aprendizagens de todos os alunos. Nestas condições, surgem desafios relativamente à forma, conteúdos e propósitos dos exames e também às suas relações com as avaliações internas, porque os seus efeitos nefastos superam, comprovadamente, os seus efeitos positivos.

Questiono-me se a atual configuração dos exames em Portugal, que está em vigor há cerca de 24 anos, ainda fará real sentido. Basta pensarmos nas profundas transformações que se verificaram no ensino secundário (e.g., alargamento da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano e perfil do aluno que a completa, expansão do ensino profissional, autonomia e flexibilidade curricular). Por outro lado, as instituições do ensino superior têm vivido desafios sem precedentes de natureza pedagógica decorrentes do processo de Bolonha. As preocupações com o ensino, a avaliação e as aprendizagens e com a qualidade da formação nada têm a ver com as que se preconizavam há 24 anos atrás.

Há algo que me parece evidente: os exames, nesta configuração, não avaliam o que são as competências consideradas mais relevantes e mais valorizadas para frequentar um curso superior. O atual sistema de acesso ao ensino superior é mau para o ensino secundário, impedindo-o de assumir plenamente a sua identidade, a sua natureza e os seus propósitos educativos e formativos. Mas também é mau para o ensino superior porque, para além de se desconhecer a validade preditiva dos exames, que muitos consideram baixa, a sua validade de conteúdo para os fins em vista é, presentemente, mais do que questionável. Além do mais, não tem em conta a imperiosa necessidade do ensino superior se abrir a novos públicos.

Julgo que chegou o tempo para pensar e criar um sistema de acesso ao ensino superior que permita melhorar substancialmente como se aprende e o que se aprende no sistema educativo português.

Domingos Fernandes

Professor Catedrático da Universidade de Lisboa; ex-secretário de Estado da Administração Educativa no XIV Governo Constitucional

Fonte: Público

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