O horário de pequeno-almoço dos hóspedes já terminou e Daniel sai da cozinha para fazer mais algumas das tarefas que lhe estão atribuídas: levanta toalhas das mesas, limpa o balcão esvaziado das iguarias matinais, prepara tudo para que logo à noite a sala de refeições do hotel esteja pronta para o jantar. Dois pisos acima, Noemi anda atarefada com as colegas na limpeza dos quartos. E no bar onde acaba de entrar ao serviço, Carlos trata dos copos, vai atendendo aos pedidos que lhe chegam. Os dois primeiros estão ao serviço no Hotel Axis Porto (que só por acaso fica em Matosinhos), o terceiro dá apoio no bar do The Independente Hostel & Suites, em Lisboa. Em comum têm uma deficiência intelectual e serem três casos de sucesso que os responsáveis pelo projecto internacional ValueAble querem ver replicados. Haja mais hotéis e restaurantes disponíveis para integrar a rede que será apresentada nesta quarta-feira na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, para assinalar o Dia Mundial da Síndrome de Down.
Recentemente trocaram o horário de Carlos Alves e passaram-no para a noite. O que quer dizer que o homem de 28 anos entra às 17h e sai pela 1h30. A essa hora, com o metro já parado, a alternativa para regressar a casa, na Avenida Almirante Reis, é, quase sempre a mesma: “Vou a pé”. São mais de 35 minutos de caminho, madrugada fora, mas Carlos, que tem uma deficiência intelectual que resulta numa incapacidade de mais de 60%, não se queixa. Diz que o percurso se faz bem e o horário nocturno traz vantagens recompensadoras: “Tem muito mais gorjetas do que durante o dia, não há comparação”, diz, com o sorriso aberto que parece nunca o largar.
Essa boa disposição, a motivação para o trabalho e a responsabilidade foram algumas das razões para que os proprietários do The Independente quisessem que Carlos continuasse a trabalhar no bar do hostel depois de terminado o estágio. Ele – tal como Daniel e Noemi, no Porto – chegou à unidade hoteleira através do projecto On My Own… At Work, que foi uma espécie de predecessor do ValueAble, e que tal como este foi financiado pela Comissão Europeia. O “OMO”, como é designado por quem esteve ligado ao projecto desenvolvido em Portugal, Espanha e Itália, criou estágios em contexto de trabalho para pessoas com síndrome de Down ou deficiência intelectual e desenvolveu uma aplicação com um conjunto de vídeos que ajudam o estagiário e quem o recebe a lidar com um trabalhador diferente.
Os vídeos curtos pretendem ser um instrumento que permita ultrapassar algumas dificuldades que surjam – há um em que o estagiário chega atrasado e a pessoa responsável por lhe atribuir tarefas lhe explica que tal não pode voltar a acontecer; outro em que se vê uma funcionária a corrigir a ordem dos talheres que um estagiário com síndrome de Down deixara trocados, depois de ele sair. Não pode ser, explica-se no vídeo, é obrigatório corrigir o que é mal feito para que ele aprenda como se faz.
No fundo, o que poderia ser dito e explicado a qualquer estagiário, mas que no caso dos participantes no OMO se torna ainda mais necessário, explica Alexandra Lobato, da Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21 (APPT21), e que coordena o projecto ValueAble a nível nacional. Tanto o OMO como o ValueAble são exclusivamente voltados para a hotelaria e a restauração, e há uma razão para isso. “Além de ser uma área que está a crescer muito, permite tarefas repetitivas e variadas. A actividade profissional deve ser rotineira, fácil de planear e de organizar, porque os nossos estagiários têm alguma dificuldade de adaptação a situações novas”, diz.
Por isso, quem quiser aderir ao projecto – e a APPT21 espera que surjam muitos parceiros, em todo o país – pode estar seguro de que não vai ver-se a braços, sozinho, com um trabalhador diferente. O ValueAble, tal como o OMO, prevê que os estágios sejam acompanhados por um tutor e Manuel Francisco de Miguel, administrador do grupo Axis, que desde 2001 colabora com a APPT21, diz que não podia ser de outra forma. “Quando vem um estagiário com trissomia 21, não se pode largá-lo à porta. Tem que haver uma simbiose entre a associação e o hotel. Alguém que nos ensine a lidar com eles. É imprescindível”, diz.
“Gosto muito de trabalhar no hotel"
Foi assim com Daniel. Fez o estágio através do OMO e agora está a fazer um estágio profissional através do Instituto do Emprego e Formação Profissional. Quando ele terminar, terá um contrato de trabalho, garante Manuel Francisco de Miguel. Carlos segue o mesmo percurso. Noemi tem uma história um pouco diferente. O serviço de limpeza do Hotel Axis Porto é feito com recurso a uma empresa externa e é através dela que Noemi permanece no hotel. Neste momento a sua actividade é financiada por uma bolsa da SIC Esperança. Quando esta terminar, já na próxima semana, deverá continuar em regime de voluntariado. Não é a solução ideal, reconhecem o Axis e a APPT21, mas, neste momento, é a garantia de que a mulher de 25 anos poderá continuar ali. “Gosto muito de trabalhar no hotel e vou lutar até ao fim para ficar. Não desisto”, diz Noemi, a quem todos tratam por Mimi.
Noemi é, como muitas jovens mulheres da sua idade, vaidosa. Quando percebe que a vão fotografar, tira o aro que segura o cabelo, penteia-se com os dedos e volta a colocá-lo na cabeça. Sara Oliveira, psicóloga da APPT21 explica que ela passou por outra experiência de trabalho, num infantário, de que não gostou. Depois esteve algum tempo em casa, antes de regressar ao hotel. “Em casa, ela ficou deprimida. A mãe ficou admirada, disse que nem sabia que isso era possível, mas ela estava mesmo deprimida”, conta Sara. “Desde que esteja aqui a trabalhar, não há menina!”, contrapõe Arménia Neves, subgovernanta do Axis, que faz a integração no housekeeping – designação do serviço de limpeza que Mimi faz.
Arménia não mente. Diz que, no início, ficou “apavorada” quando soube que ia receber estagiários com trissomia 21. “Foi assustador, mas foi só nos primeiros dias. Rapidamente percebemos que eles são super-responsáveis. Nota-se que estão com todo o empenho a trabalhar”. Com Mimi não foi diferente. “Eu digo-lhe: preciso da tua ajuda e conto com ela. As quatro horas que vem são uma mais-valia. Ela trabalha a meu par; o que ela faz, eu não preciso de fazer. Sei que ela consegue tratar sozinha de um quarto do princípio ao fim, dentro do tempo dela”, explica.
Simão Sá, diretor do Axis Porto, diz que não foi favor nenhum ficar com Daniel e manter Mimi ligada ao hotel, apesar dos receios iniciais. “É claro que nos perguntamos ‘será que vai correr bem, que a equipa se vai habituar?’ Mas no final [do OMO] achámos que eram uma mais-valia. Criou-se um espírito de equipa muito grande. No dia-a-dia tentamos que a equipa funcione como uma família e eles vieram trazer uma dinâmica nova. Todos tentaram ajudar. E eles revelam um grande entusiasmo pelo trabalho”, diz.
No The Independente ninguém do hostel quis prestar declarações – “querem que o foco seja no Carlos, não no hostel”, explicam-nos –, mas Alexandra revela a avaliação do estágio do jovem funcionário. “O que nos disseram foi que ficavam com ele porque ele merecia e era uma mais-valia. Levou espírito de equipa e motivação para o trabalho, era o elo de ligação entre os colegas. E que, se dependesse deles, ficariam com o Carlos até à idade da reforma”, diz, antes de lançar um “ainda não tinhas ouvido isto, pois não, Carlos?” ao homem sorridente sentado ali ao pé.
Portugal ainda está pouco receptivo
O drama de tudo isto, diz Alexandra, é que Portugal ainda está pouco receptivo a integrar no mundo do trabalho estes funcionários diferentes. Patrícia Marques, da APPT21, diz que, quando procuravam encontrar parceiros para o OMO, passaram uma semana e meia a enviar emails para diferentes unidades hoteleiras e restaurantes. “Dos cem emails que enviámos a única resposta que recebemos, de alguém que não tinha qualquer relação connosco, foi do The Independente Hostels & Suites, e logo para receber quatro estágios”, diz. Carlos, Noemi e Daniel são, por enquanto, os casos de sucesso deste trabalho de anos. Muito pouco, admite Alexandra. “Tivemos 28 estágios, e só três colocações. Para nós, excelente seria termos uma taxa de colocação na ordem dos 50%, mas neste momento não ultrapassa os 10%”, diz Alexandra. “Mas nós acreditamos mesmo nisto”, diz.
E olha lá para fora. Em Espanha há mais de 30 parceiros do ValueAble, entre hotéis e restaurantes. Em Itália, a participação chega aos 17. A Alemanha, a Turquia e a Hungria juntaram-se também ao projecto e o objectivo – o único objectivo do ValueAble – é criar uma rede de hotéis e restaurantes que aceitem receber estágios de pessoas com trissomia 21 ou deficiência intelectual, podendo, idealmente, integrar alguns no mercado de trabalho. “Actualmente, as preocupações de integração estão muito voltadas para a educação – o que é bom –, mas esquecemo-nos que dois terços da nossa vida é feita a trabalhar. O que acontece a estas pessoas depois dos 18 anos? Há muitas fechadas em casa ou instituições que poderiam estar a trabalhar”, diz Alexandra Lobato.
Por cá, há agora estágios em vias de arranque em novas unidades hoteleiras e as responsáveis da APPT21 esperam que a divulgação do projecto contribua para chamar mais parceiros. Mais hotéis e restaurantes, em todo o país, que abram as suas portas a estes estagiários. Mais famílias, sobretudo fora de Lisboa e do Porto, que percebam que os seus filhos podem ter uma vida realmente independente, a trabalhar. Mais associações e instituições que contactem a APPT21 (valueable@appt21.org.pt) para descobrir como podem conseguir um estágio para aquele utente, que apesar de ter capacidade para trabalhar, está sem fazer nada. “As pessoas têm muita tendência para tratar estes jovens adultos, sobretudo os que têm trissomia 21, como ‘meninos’, de dizer ‘são tão queridos, tão fofinhos’. É preciso mudar mentalidades, perceber que aquele jovem não é só querido e fofinho, é um trabalhador”, diz Alexandra.
Ter mais consciência da nossa responsabilidade social, defende, e, se isso não for suficiente, ostentar algum orgulho pelo selo que distingue os parceiros do ValueAble. Os hóspedes reparam e mostram-se agradados quando descobrem o que significa, diz Arménia, antes de lançar um olhar sorridente a Mimi. “Olha que preciso mesmo de ti aqui na segunda-feira.”
Fonte: Público
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