segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Reinvente-se a escola

Foram, recentemente, publicados os resultados a um inquérito da Universidade Católica, coordenado pelo Prof. Joaquim Azevedo, a quase 3000 professores de 130 escolas portugueses, em que um terço afirma querer deixar de dar aulas num futuro próximo, dois terços acham que a educação piorou nos últimos anos, 35% dizem-se exaustos, desiludidos e desesperados e 80% consideram que a sociedade não os valoriza. Por mais que quase 70% se "sinta motivado para ensinar". 

É claro que números como estes nos assustam. Sobretudo quando, outros números acerca dos professores nos aumentam o contraditório que se exige quando se trata de os pensar. Por exemplo, será opinião da OCDE e do FMI que haverá professores a mais no sistema educativo. O que, aliás, parece ser secundado quando outros números acentuam que haverá um professor a tempo inteiro para cada 10 alunos portugueses, sendo esse valor superior à média dos países da OCDE. E que os salários dos professores portugueses sejam dos mais altos da Europa, quando comparados com o produto interno bruto português. Por mais que haja 50 mil professores em situação precária. 

Tomemos, unicamente, em consideração os resultados deste inquérito. E tomemo-los como sérios e inequívocos. Não resulta daqui uma primeira questão, mais ou menos incontornável: como pode uma grande "empresa" como um Ministério da Educação funcionar quando o corpo docente está exausto e desvinculado de qualquer paixão que possa ter acerca da educação e parece não existir uma política que os enquadre e premeie de forma justa e equilibrada? Como pode uma reforma, qualquer que ela seja (considerando novos conteúdos e novos programas, novos manuais, novas formas de gerir a educação ou novos desafios avaliativos, por exemplo) ter o retorno que se espera quando, quem lhes dá forma, consistência e movimento estará, por exaustão, divorciado do sistema em que essas mudanças se dão? Como se pode fazer da educação uma paixão no meio do mais generalizado dos divórcios? E, depois, há quem cria as regras. 

Tomemos em consideração a discussão acerca dos exames. Que sentido tem fazer-se deles "a questão" quando – já para não se falar das 14 alterações que se terão dado no subsistema de avaliação do ensino básico, desde 2000 – quem define regras e mudanças o faz ao abrigo duma deriva inquietante, e quem são os verdadeiros agentes da mudança estão esgotados e rendidos a uma engrenagem que os consome, todos os dias? Que grande empresa sobrevive lançando reformas todos os anos, muitas delas sem critério, quando quem as "vende" não só não as recomenda, não as entende, não as subscreve como, sobretudo, nunca as "compraria"? Mais: que grande empresa sobrevive, se atualiza e se reforma, se torna mais viva e mais saudável quando os seus principais agentes, depois de uma formação universitária onde, na maioria das vezes, os seus recursos para serem professores lhes são dados por quem desconhece e pouco convive com o sistema educativo? E que projeto empresarial se torna viável ou gerível quando a formação de quem devia transformar reformas em oportunidades de crescimento e de sucesso só tem acesso a formações que, muitas vezes, são raras e descontextualizadas daquilo que serão as suas carências, que são pagas pelos próprios e, de preferência, que se dão aos sábados (porque, há vários ministérios a esta parte, se convencionou que professores que pagam para melhorar a sua formação, durante os dias da semana, e a colocam, gratuitamente, ao serviço do sistema educativo para o qual trabalham, são considerados ora absentistas ora amigos da "galderice"? E que grande empresa sobrevive, se diferencia e se reinventa quando a retaguarda de quem é o seu rosto acaba por ser quase nenhuma (e onde, desde os serviços de psicologia a funcionários de apoio, quem define a mudança não cumpre com as mais indispensáveis regras de bom senso para que ela se torne possível)? E poderia uma grande empresa - com quase 100 000 colaboradores (como, agora, se diz) - manter uma qualidade irrepreensível dos seus serviços quando, de acordo com uma contabilidade recente do Tribunal de Contas, o sistema perdeu mais de 25 mil docentes, entre 2010/11 e 2014/15 (correspondendo a uma quebra que excedeu os 20%) quando, no mesmo período, o número de alunos baixou apenas 8% para cerca de 1,2 milhões? E, por fim, poderia uma grande empresa tornar-se singular e inimitável – juntando sabedoria e inovação, sensatez e irreverência, arrojo e elegância – quando só tem 451 professores com menos de 30 anos a trabalhar em escolas do Estado, o que equivale a 1,4% do total daqueles que ensinam nas escolas públicas, e quase 40% dos seus agentes de mudança tem mais de 50 anos? Pode uma empresa ser grande crescendo assim ou, pelo contrário, qualquer transformação que não considere que um professor é a mais preciosa matéria-prima de qualquer mudança não acaba por ser de ilusionismo insuportável, que só se entende se quem a promove for ou desonesto ou assustadoramente ignorante?

Chegados aqui haverá quem diga, certamente: mas será possível mudar a educação? Assim?... É claro que não! Porque a coerência das regras educativas, o equilíbrio entre responsabilidades e direitos, a distribuição do trabalho, a relação entre ensino e formação e entre problemas pedagógicos e as soluções inovadoras que os solucionam, e a justeza das retribuições parecem "peças" quase todas fora do lugar. E não será possível mudá-la - parece-me da sensatez mais elementar – se quem pensa e quem gere a educação não começar por perceber que qualquer mudança séria não só nunca se faz sem os professores (e, já agora, não se faz contra eles), como qualquer vislumbre de mudança, num impasse destes, agrava mais e mais a exaustão do próprio sistema. Ou seja: se, por vezes, na escola, todos os alunos que não contribuem para dourar os rankings parecem repartir-se entre os distraídos, os insolentes e os empatas, não estaremos - perigosamente! - a chegar a um patamar (exceções feitas a alguns responsáveis ministeriais e a muitos técnicos) onde o modelo de educação de há 100 anos precisa, urgentemente, de ser reinventado? E não será que quem pensa a educação, desconsiderando quem lhe dá vida, não estará, de forma escorregadia, a ser distraído, insolente e empata? Tenho medo que sim!

Eduardo Sá

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