quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Para lá de um mundo surdo

“Eu sei falar!”, surpreendeu-se Rodrigo. Este menino, de 12 anos, é surdo e, ao contrário do que se possa pensar, usa a voz diariamente. “A história do surdo-mudo é um mito”, dizem terapeutas e professores. Na escola Quinta de Marrocos, em Benfica, tenta-se estimular a oralidade dos alunos e orientá-los para um futuro e uma sociedade que não está preparada para os receber. Tudo isto sem nunca deixar de lado a Língua Gestual Portuguesa.


Aos três anos ainda ninguém sabia o que Rodrigo tinha. A mãe, Isabel, estranhava que a criança nunca acordasse com o barulho do aspirador ou não reagisse ao som dos tachos. Começou a desconfiar que algo não estava bem. Os primeiros médicos garantiram que o menino tinha uma audição a 100% e os exames não deixavam margem para dúvida. A mãe continuava a não acreditar. Durante meses, insistiu e persistiu até que o diagnóstico que mais temia (e ao mesmo tempo mais esperava) chegou: o seu filho era surdo profundo de ambos os ouvidos.

O olhar vivo por trás dos óculos vermelhos, cor do “seu Benfica”, refletem a energia e alegria de Rodrigo Lamas, hoje com 12 anos. O menino é um dos 85 alunos não ouvintes a frequentar a Escola Básica Quinta de Marrocos, em Benfica, uma das instituições de referência para o ensino bilingue de crianças surdas. Está no 7º ano, adora as TIC (Tecnologias da Informação) e a Língua Portuguesa dá-lhe dores de cabeça, algo que é comum entre as crianças com problemas de audição. Com orgulho, diz a mãe: “Ele por acaso é muito inteligente, agora só tem quatros e cincos”.

Em Portugal existem 17 escolas referenciadas para este tipo de educação especial. “Distinguem-se por serem espaços de ensino bilingue, nos quais os alunos surdos têm aulas em Língua Gestual Portuguesa (LGP)”, diz ao Expresso o Ministério da Educação. Além dos alunos surdos estarem em contacto com a língua que lhes é natural, também as crianças ouvintes podem “beneficiar de aulas de LGP”.

No total, são 504 (389 em escolas de referência e 115 em unidades orgânicas) os alunos inseridos em escolas com educação bilingue, ou seja, com Língua Gestual Portuguesa como primeira língua.

No recreio, a campainha faz-se ouvir e a luz alaranjada acende e apaga. É sinal que está na hora de regressar aos livros. Na turma de Rodrigo são apenas seis alunos, todos eles surdos.

A aula de Físico-Química vai começar. Ao contrário do habitual, estas crianças pouco olham para a professora. O seu foco de atenção deve ser a intérprete de língua gestual, que acompanha a turma em todas as disciplinas. A professora fala a um ritmo ligeiramente mais lento que o normal, enquanto a tradutora transforma o som da voz em gestos.

A simplicidade de vocabulário e o recurso a imagens são essenciais para explicar a matéria a crianças surdas, pois muitas vezes não sabem associar a palavra ao objeto. Por exemplo, sabem o que é um arame, mas podem não saber que aquilo se designa como arame.

“Tentamos estar sempre viradas para os alunos. Perceber que quando estamos a mostrar uma imagem ou a explicar algo temos de dar tempo. As aulas e avaliações dos alunos surdos têm adequações. O programa é igual, o professor é que tem de arranjar estratégias para os alunos aprenderem da mesma forma que os outros meninos aprendem”, explica Andreia Graça, professora de matemática. “Na matemática, os exercícios que propomos são muito semelhantes aos dos alunos ouvintes, mas temos de simplificar sempre o português. E o mesmo acontece com os testes”, acrescenta.

Rodrigo é curioso. Faz perguntas e quer respostas. E surpreende quando abre a boca e fala (ainda que com alguma timidez quando há desconhecidos por perto).

“ELES NÃO SÃO MUDOS, TÊM VOZ”

Um surdo não tem de ser mudo. É um mito e o conceito surdo-mudo acabou por se generalizar. O surdo só não fala porque não ouve e, consequentemente, não reproduz as palavras.

“Eles não são mudos, têm voz. Muitos surdos falam e os que não falam é porque não querem ou porque têm dificuldade. Têm voz, gritam e as cordas vocais não têm qualquer problema”, conta Deolinda Grilo, intérprete de língua gestual. “Não falam porque não têm oralidade, porque não têm feedback auditivo. Há muito esse conceito do surdo-mudo mas esse está completamente ultrapassado”, acrescenta Marta Proença, terapeuta da fala.

Atualmente, existem no mercado soluções para minimizar as limitações da surdez e que facilitam o desenvolvimento da fala. Os aparelhos auditivos estão indicados sobretudo para pessoas com surdez ligeira, moderada e severas. Já o implante coclear é apropriado a casos diagnosticados como surdez sensorioneural severa ou profunda, “em que as crianças ou os adultos não têm bons ganhos apenas com próteses auditivas”, explica o otorrinolaringologista Herédio de Sousa.

Depois de um ano a usar aparelho, Rodrigo foi sujeito a uma cirurgia. A caminho dos cinco anos, uma idade já considera tardia para as intervenções, no hospital de Santa Maria, foi colocado um implante só no lado esquerdo. O dispositivo eletrónico, que substitui a função das células no ouvido interno, estimula o nervo auditivo e recria as sensações sonoras.

“Quando o implante coclear é colocado precocemente, até aos dois ou três anos, os resultados são bons. Por exemplo, se for implantado com um ano, quando chega aos seis, sabe falar e tem uma audição e uma convivência a nível social como se fosse uma criança não implantada”, explica o médico. “O implante é o melhor que temos para reabilitar uma criança com surdez profunda e habilitá-la a ter uma linguagem como os ouvintes”, acrescenta.

Isabel Lamas lamenta a espera no diagnóstico do filho e acredita que isso tenha limitado um pouco o desenvolvimento de Rodrigo. “Após o implante, ainda demorou alguns meses até dizer as primeiras palavras. Era igual a uma criança de dois anos que tentava começar a falar, mas já tinha quatro anos e meio”, recorda.

Ingressou logo no Centro de Educação e Desenvolvimento Jacob Rodrigues Pereira, da Casa Pia, onde começou a aprender LGP. Depois dos dois anos de pré-primária e o primeiro ano concluídos, Isabel achou que o melhor era transferir Rodrigo para a Quinta de Marrocos, mesmo que isso implique viagens diárias de 25 quilómetros (é a escola de referência mais próxima do local de residência da família, em Mem Martins).

Já se expressava pelos gestos. Estava na altura de começar a usar a voz corretamente.

“É um objetivo dar-lhes a oralidade possível. Vamos dar-lhes a comunicação que eles têm capacidade de ter. Uns são oralistas e conseguem compreender a oralidade, outros são gestualistas”, explica Marta Proença, terapeuta da fala na Quinta de Marrocos. “É importante serem inseridos na sociedade e queremos que ganhem autonomia e sejam ativos na vida fora da escola”.

Este é um processo que pode demorar, até porque há surdos que recusam oralizar. Ao começo, foi o que aconteceu com Rodrigo. A terapeuta lembra-se bem dos primeiros tempos difíceis. Certo dia, Rodrigo chegou ao gabinete de Marta. Vinha enervado e aborrecido. Falava, falava e falava.

“Estás a ver Rodrigo? Estás a conseguir transmitir tudo o queres sem usares os gestos! Estão tão nervoso que os gestos já não te chegam”, disse a terapeuta.
“Eu sei falar!”, surpreendeu-se Rodrigo.

Foi ali que o menino percebeu que era capaz e que não precisava de ter medo. “Parece que tudo se tornou diferente na cabeça dele, que se consciencializou de que conseguia falar e que era importante eu ter compreendido tudo o que ele queria transmitir. Para mim, isso foi tudo”, recorda Marta, que acompanha Rodrigo há quatro anos. É um caso excecional, normalmente no arranque do ano letivo é atribuído um novo terapeuta a cada aluno surdo.

Em casa e com a família, Rodrigo tem de falar. Insistem e evitam usar a LGP, para o obrigar a comunicar como comunicaria no exterior. A LGP é utilizada sobretudo entre os colegas de escola. “Apesar de quase todos saberem falar, preferem a língua gestual. Às vezes no computador por videochamada são cinco ou seis todos a falar ao mesmo tempo, mas não se ouve nada”, refere Isabel divertida.

Ainda hoje, apesar de falar com fluidez e de se explicar com relativa facilidade, o menino retrai-se e receia falhar. Nesses momentos, conta Marta, Rodrigo “lá vai para o seu mundo surdo” e defende-se gesticulado.

TURMAS SÓ COM ALUNOS SURDOS E OUTAS MISTAS

Carolina, 12 anos, e Raquel Estevam, 10 anos, são irmãs. Apenas 19 meses separam a data de nascimento das meninas. Filhas de pais ouvintes, ambas são surdas.

Ao contrário de Rodrigo, cuja origem da surdez é incerta mas se pensa que esteja relacionada com alguma infeção não detetada durante a gravidez, em Carolina e Raquel a resposta está na genética.

“Eu e o meu marido somos portadores a 50% do gene da surdez. Ou seja, até à sexta geração de ambas as famílias tinha de haver casos de surdez. No nosso caso, a criança nasce ouvindo, mas vai perdendo a audição gradualmente até aos 18 meses. E isso aconteceu com a Carolina”, justifica a mãe das meninas, Paula Estevam.

Se com Carolina, hoje com uma surdez profunda bilateral, os pais foram apanhados de surpresa, com Raquel isso já não aconteceu. Foi durante os exames à mais velha que nasceu a segunda filha e, devido aos antecedentes, a situação foi travada mais cedo. Logo aos nove meses começou a usar uma prótese.

Após centenas de consultas, exames e testes Carolina e Raquel receberam implantes cocleares. A mais nova usa ainda uma prótese, que lhe permite ter um nível de audição “como se fosse de uma menina ouvinte”.

Raquel fala e exprime-se sem dificuldade. Com Carolina é um pouco mais complicado. Apesar de ambas frequentarem a escola de referência em Benfica, foram encontradas soluções diferentes para cada uma: a mais velha está numa turma de surdos, a mais nova está integrada com ouvintes, sem ter uma intérprete na sala de aula.

A decisão relativa ao percurso escolar dos alunos surdos que chegam à Quinta de Marrocos passa por uma equipa multidisciplinar, que inclui professores do ensino especial, terapeutas, psicólogos, professores curriculares e interpretes. São pesados os prós e os contras de cada solução e tenta adequar-se cada menino à melhor solução.

Carolina está no 6º ano e Raquel no 5º. Apesar de não terem problemas com os colegas ouvintes, as dificuldades em comunicar ainda se fazem sentir. É normal no recreio os surdos conviverem com os surdos e ouvintes com os ouvintes.

“Enquanto pais, temos a perceção que elas não podem ser doutoras ao fim de seis ou sete anos. Talvez só o possam ser ao fim de dez ou 12. Mas chegam ao mesmo sítio que os outros, embora o ensino tenha que ser mais lento devido às capacidades”, refere Paula Estevam.

As capacidades intelectuais de um surdo são a mesma de uma pessoa ouvinte. A diferença está apenas em não conseguir ouvir. Até ao final do terceiro ciclo, existe as escolas de referência e os apoios. Ao chegarem ao secundário e à faculdade, deparam-se com a mesma realidade dos outros jovens.

“A única diferença é dificuldade na comunicação. Mas acho que essa parte já não tem só a ver com os surdos, porque eles fazem por conseguir ouvir alguma coisa e oralizar. Agora, falta da parte dos ouvintes saber comunicar com os surdos. A comunicação faz-se dos dois lados”, defende a intérprete Deolinda Grilo.

Há cada vez mais os surdos a seguir o ensino superior e a trabalharem nas suas áreas de estudo. Os pais das crianças surdas defendem a necessidade de melhorar os recursos na aérea da educação. Embora admitam que alguns avanços tenham sido feitos, continuam a ser “poucas as escolas” com intérpretes de língua gestual a tempo inteiro.

“As que existem são longe. Não consigo levar e ir buscar o Rodrigo à escola. Há meninos na Quinta de Marrocos que vêm todos os dias de Torres Vedras”, comenta Isabel Lamas. Até ao ano passado, uma carrinha fazia o transporte das crianças que moravam longe da escola. Este ano letivo, o serviço foi modificado e, além de ter demorado algum tempo a arrancar, foram definidos pontos de encontro para os alunos, uma espécie de paragens onde o autocarro faz a recolha das crianças.
Também os serviços públicos não estão totalmente adaptados. Há barreiras a derrubar e problemas que precisa de ser resolvidos.

Esta terça-feira, no dia em que se assinalou o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou a data para lançar uma nova funcionalidade na página da presidência. Embora não seja a necessidade que precisa de ser satisfeita com mais urgência, agora passam a estar disponíveis em língua gestual alguns dos mais importantes discursos presidenciais.

LÍNGUA OU LINGUAGEM?

Não se usa a designação ‘linguagem gestual’. A expressão correta é língua gestual, tal como se diz língua portuguesa - e nunca linguagem portuguesa. “As várias línguas gestuais do mundo inteiro possuem gramáticas complexas e expressões literárias diversas. Cada comunidade de surdos tem, portanto, a sua própria língua gestual, que surge no momento em que os surdos se juntam”, explica a Associação Portuguesa de Surdos na sua página.

TIPOS DE SURDEZ

- Surdez de transmissão/ condução: está relacionada com qualquer alteração na transmissão do som até ao órgão recetor, a cóclea. Diz respeito a problemas no ouvido externo ou no médio.
- Surdez sensorioneural: associada a um evento que acontece ao nível do órgão recetor, a cóclea, ou do nervo que transmite o som até ao tronco cerebral.
- Surdez mista: uma combinação dos dois tipos anteriores.

UMA ESCOLA COM 85 ALUNOS SURDOS

Na Escola básica Quinta de Marrocos existem duas tipologias de ensino para crianças surdas: em turmas exclusivas de alunos surdos (64 crianças) ou integrados em grupos de alunos ouvintes (21). Além das nove turmas (2 grupos de pré-escolar, 3 turmas de 1º ciclo e 5 grupos de 2º e 3º ciclo), há ainda um grupo de 12 bebés em intervenção precoce. Dos 85 alunos surdos, apenas três são filhos de pais não ouvintes.

Fonte: Expresso por indicação de Livresco

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