domingo, 2 de outubro de 2016

Será este o melhor programa parental do mundo?

A constante falta de tempo era a culpada. Como uma intrusa que impedia respostas claras e soluções práticas. Os pais faziam questão de perguntar frequentemente como tinha corrido o dia ou como estavam as coisas na escola. Mas os filhos, ambos adolescentes, continuavam com problemas: ele chegou a casa no final do primeiro período com sete negativas, ela passava cada vez mais tempo fechada no quarto.

Joaquim Rodrigues*, de 46 anos, encontrou a resposta numa expressão inglesa, de nome Triple P, através do consultório Family Building e este é o seu testemunho: “Sabia que uma boa comunicação e a relação entre pais e filhos é fundamental, mas com o Triplo P aprendi formas de promover isso mais eficazmente, com resultados mais duradouros. A comunicação positiva, os elogios, as regras, as consequências e o tempo de qualidade em família passaram a fazer parte da nossa vida e têm contribuído bastante para melhorar as nossas dinâmicas.”

O que é o Triplo P?

A sigla remete para Positive Parenting Program (Programa de Parentalidade Positiva) e dá nome a um dos programas com mais suporte científico no mundo: ao todo contam-se 235 investigaçõesque corroboram os seus resultados. Quem o garante é o criador do Triplo P, o australiano Matthew Sanders, psicólogo clínico e docente na Universidade de Queensland. Ao Observador conta, via e-mail, que tudo começou em 1978, quando estava a tirar o doutoramento: “A maior parte dos pais não sabia como lidar com o comportamento dos filhos. E eu queria desenvolver uma ferramenta que funcionasse.” A ideia era, em última análise, prevenir agressões e maus-tratos infantis.

Voltemos às centenas de estudos. Sanders argumenta que a grande maioria destes revela efeitos positivos no comportamento das crianças depois de aplicado o Triplo P, além de resultar em menos stress e conflitos na dinâmica familiar. Atualmente, o programa que é originalmente dirigido a pais está presente em 26 países — incluindo Austrália, Nova Zelândia, EUA, Canadá, Reino Unido, Holanda, Bélgica ou Suíça –, e há novos centros a abrir de mês a mês. Prova disso é a notícia publicada no final de julho deste ano onde se pode ler que o México é um dos países mais recentes a introduzir o sistema.

O programa já foi testado em milhares de famílias no mundo inteiro e a sua eficácia foi comprovada não só em diferentes culturas, como em diferentes situações e populações (clínicas e não clínicas; isto é, tanto em crianças com dificuldades cognitivas, como aquelas que não apresentavam qualquer problema aparente).

Ok, estou curioso/a. Como funciona e quais os benefícios?

O programa que já leva mais de 30 anos de fama é dirigido aos pais e pretende torná-los mais confiantes e autossuficientes na forma como lidam com os filhos, explica a psicóloga clínica Diana Moreno, uma das seis portuguesas a ser formada em Triplo P (sim, existem apenas seis pessoas certificadas em todo o território nacional, sendo que para isso contam os gastos associados ao curso, bem como a sua exclusividade). O objetivo não passa, então, por “ensinar” os pais a serem pais, antes potenciar as suas capacidades para que criem “crianças e jovens mais confiantes e saudáveis”. A ideia não é tirar o protagonismo a quem educa os mais novos, nem passar qualquer atestado de incompetência. Ainda assim, o programa olha para a parentalidade como algo que não é adquirido nem tampouco inato.“Nenhum de nós nasce com um manual para sermos pais”, defende Moreno. “O programa apoia os pais não só a prevenir, mas também a gerir o comportamento desajustado dos seus filhos.”

O Triplo P é composto por cinco níveis de intervenção, sendo que os dois primeiros são mais preventivos (a informação é divulgada através de revistas, seminários ou workshops, por exemplo). Já os restantes são mais intensivos e incluem sessões com pais (individuais ou em grupo), com o quinto nível a estar relacionado com questões como depressões clínicas ou conflitos parentais (até 14 sessões). “Todas as estratégias a partir do nível 3 são observadas, adaptadas e treinadas em conjunto com o especialista que dá feedback ativo, ao longo e entre sessões”, explica Diana Moreno.

Moreno, para quem este é “o melhor programa do mundo”, é fundadora do Family Building (em conjunto com Inês Andrade Fraga) — cujo embaixador é o muito conhecido pediatra Mário Cordeiro –, um consultório no centro de Lisboa com pouco mais de um ano que visa apoiar os pais através de programas como o Triplo P. Apesar de este ser originalmente aplicado a pais, Diana adaptou-o de modo a servir as famílias, para que pais e filhos tenham a oportunidade de treinar determinadas competências ao vivo e em conjunto, num cenário em que todos têm voz ativa.


É também Diana Moreno quem sintetiza os resultados associados às mais de três décadas de existência do Triplo P:
  • “crianças mais cooperantes em casa e na escola;
  • crianças mais empáticas e compreensivas;
  • melhor controlo da impulsividade e da agressividade por parte das crianças;
  • maior aceitação de regras e limites;
  • crianças mais autónomas e responsáveis pelos seus atos;
  • crianças mais curiosas;
  • maior capacidade de negociação e de tomada de decisão;
  • aumento do sentimento de competência parental;
  • redução dos conflitos conjugais;
  • redução dos conflitos parentais;
  • redução da ansiedade, stress e sintomas depressivos por parte dos pais;
  • maior produtividade no trabalho.”
Estando associado à parentalidade positiva, o Triplo P vira as costas ao castigo, considerado uma forma de punição, e opta pela consequência. Mas para pôr a consequência em prática é preciso definir um conjunto de regras — poucas mas realistas. Para melhor o explicar, Diana Moreno dá o exemplo de um caso prático:

Tive uns pais cuja grande dificuldade era ter a casa arrumada. Os pais pediam aos filhos para arrumar a casa mas eles não o faziam e isso gerava conflitos entre eles. [No decorrer do programa] os pais estabeleceram a regra de que os quartos deveriam ser arrumados todos os dias e que havia folga ao fim de semana. Todos os dias iam ver se o quarto estava arrumado e, caso não estivesse, davam uma oportunidade aos filhos lembrando-lhes do que tinha de ser feito. Se o quarto estivesse arrumado eles ganhavam uma mesada ao final do mês (1€ por dia), se não estivesse não ganhavam pelo dia em falta.

A diferença aqui, destaca Moreno, é que não há punição e sim uma escolha: acumular ou perder dinheiro. A consequência é, assim, encarada como uma forma de responsabilizar os mais novos ao invés de os punir, o que pode trazer sentimentos negativos como a humilhação. Esta abordagem — chamemos-lhe assim — representa uma forma mais democrática de fazer as coisas: “Tudo é acordado com eles [filhos] e discutido em família. Há negociação e os filhos acabam por perceber o que é justo e são validados enquanto pessoas. Não é por serem crianças que não são parte da família”, atira Diana Moreno.

Mas há mais características que valem a pena salientar. Em 2013, um dos blogues associados ao jornal norte-americano The New York Timesdedicava-se por inteiro aos benefícios da parentalidade positiva e o seu autor argumentava a seguinte ideia: “O principal erro que os pais cometem é esquecerem-se do quão importante é apanharem os filhos a fazer as coisas certas.” A ideia está diretamente relacionada com a importância do elogio ou, se quisermos, da valorização.

“Em vez de nos focarmos no mau comportamento em si, no que se pode melhorar, focamo-nos no que já existe de bom. É o reconhecer, o valorizar, o elogiar e o ter tempo de qualidade com os filhos. Mais do que punir comportamentos e entrar em conflito, o importante é um pai enaltecer o bom comportamento do filho e as suas qualidades de forma genuína”, desabafa Moreno.

Acrescente-se outro artigo, agora da publicação The Atlantic, que dá conta que o Triplo P tem efeitos não só nos mais novos e respetivas dinâmicas familiares, mas também no bem-estar dos adultos: “Os pais ficam menos stressados, menos zangados, menos deprimidos e têm menos conflitos com os seus parceiros.”

Porque só agora se fala nele em Portugal?

Qualquer programa de intervenção (por mais sucesso que tenha) tem de ser validado no contexto em que é aplicado. Em Portugal, porém, isso ainda está por fazer e é nesse sentido que Orlanda Cruz e Isabel-Abreu Lima, ambas docentes na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) estão a trabalhar. “Estamos a desenvolver uma investigação com o objetivo de validar o Triplo P com uma população de pais em desvantagem socioeconómica”, explica Orlanda Cruz ao Observador (da investigação fazem ainda parte Sandra Nogueira e Cátia Sucena).

Cruz refere-se ao projeto sobre parentalidade positiva apostado em promover o bem-estar infantil e prevenir situações de maus-tratos que foi divulgado na comunicação social em meados deste ano. Na altura, as investigadoras analisaram um primeiro grupo de intervenção de 10 mães apoiadas pela Santa Casa da Misericórdia de Penafiel, sinalizado entre abril e junho. O programa demorou cerca de dois a três meses a ser implementado, e as mães foram acompanhadas durante 10 sessões semanais — a docente explica que, apesar de tanto ela como a colega Isabel Abreu-Lima serem formadas há vários anos em Triplo P, só agora conseguiram investimento para prosseguir com a investigação.

Este foi o primeiro grupo de intervenção a ser analisado e num espaço de sensivelmente dois anos outros cinco ou seis se seguirão. Ainda é cedo para apresentar conclusões gerais, mas os dados relativos a esta primeira etapa — que faz parte de uma investigação maior e cujos resultados foram apresentados na passada sexta-feira, dia 30 de setembro, no Congresso da Ordem dos Psicólogos, no Porto — são promissores. “O que podemos afirmar de uma forma genérica é que há alterações na maneira como os pais se comportam e na maneira como percebem o comportamento dos filhos, que é menos problemático. E eles próprios [os filhos] apresentaram comportamentos educativos mais adequados no final do programa”, diz Orlanda Cruz.

A docente deixa claro que, apesar de estar a trabalhar com mães desfavorecidas, o programa tem um caráter preventivo bastante forte, e faz a seguinte ressalva: “Estas não são mães que tenham défice de competências parentais, são antes mães com literacia mais baixa do que a média portuguesa”, o que sugere que o programa seja mais difícil de implementar nestas circunstâncias. De referir que todos os grupos de intervenção são acompanhados por grupos de controle, sobre os quais não é feita qualquer intervenção — a ideia é comparar resultados, sendo que a metodologia é semelhante à de ensaios clínicos.

Com o trabalho longe de ficar concluído, as investigadoras querem mostrar que o programa funciona e que, assim sendo, vale a pena divulgá-lo. “Este programa pode ser implementado em diferentes contextos, incluindo ao nível dos cuidados primários. Gostaríamos de avançar numa lógica de prevenção para evitar situações graves”, explica Orlanda Cruz, falando na eventualidade de aplicar o programa ao nível comunitário, como, por exemplo, em escolas.

Mas porque é que este programa pode a vir a ser importante? Sobre isso, Orlanda Cruz refere que existe um conjunto de teorias da psicologia do desenvolvimento e da educação que revelam como os pais são fundamentais. Sim, os traços de personalidade das crianças são importantes. Sim, o ambiente que rodeia a família também. E sim, os pais também podem ser determinantes.

“A parentalidade está relacionada com problemas muito diferentes, desde problemas sociais e de comportamento, ao crime e uso de substâncias, passando também por problemas mentais ou insucesso escolar. Investir na parentalidade é uma via para melhorar o bem-estar e o curso de vida das crianças”, conclui Matthew Sanders.

Por enquanto, o programa Triplo P é uma realidade escassa em Portugal, com o consultório Family Building e a investigação a cargo da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação a serem alguns dos poucos exemplos.

*Nome fictício. Esta pessoa não quis ser identificada.

Fonte: Obervador

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