segunda-feira, 24 de outubro de 2016

"A maior barreira é a aceitação de que os filhos têm um problema"

Camila, Guilherme, Miguel: crianças diagnosticadas com dislexia, ansiedade, défice de atenção e autismo, cuja evolução foi um sucesso. À custa de trabalho e esperança.

"Mãe, aquele menino na escola é igual a mim?" A pergunta é de Camila, agora com sete anos, quando começou a perceber que era diferente. "Ela achava que era deficiente e os meninos que ela referia eram autistas ou com trissomia", conta Maria da Conceição Ventura, 37 anos, professora, mãe de Camila. "Agora ela lida com isto perfeitamente. Sabe que tem um problema e está a aprender a percebê-lo."

Camila tem dislexia. O diagnóstico ainda não está confirmado oficialmente, mas os pais já aceitaram a ideia, mesmo se Conceição confessa que quando lhe perguntaram se podia dar uma entrevista por causa da afeção da filha sentiu "um balde de água fria": "Ainda tinha esperança de que a avaliação fosse negativa." Suspira. "A maior barreira nisto é a aceitação por parte dos pais de que os filhos têm um problema. Passei por isso com o meu marido, foi uma grande luta conseguir que ele admitisse que a Camila tinha qualquer coisa e que tínhamos de pedir ajuda. Ele disse-me que lhe custou muito a aceitar porque era a menina dele. E aquilo com que, como professora, me deparo nas escolas é os pais terem diagnósticos e comprovativos de dislexia e outras afeções e dizerem que não querem o filho no ensino especial. Não querem o estigma e acreditam que os filhos são os melhores do mundo. Nós também passámos por isso: como professores - o meu marido também leciona - vimos tudo, como pais estamos cegos."

Aliás, há algo que esta professora de Borba quer dizer aos pais com filhos que apresentam dificuldades a falar, a ler, a aprender: "Não fiquem sentados à espera de que os filhos deem o salto - quanto mais cedo for feito o diagnóstico melhor." E a mãe de Camila bem gostaria de ter tido essa possibilidade mais cedo. "Fui professora dela no jardim de infância e percebi desde o início, a partir dos três anos, que tinha dificuldade em memorizar rimas, lengalengas, canções, e em expressar-se oralmente." Pediu o apoio da equipa de intervenção precoce, uma equipa técnica do ministério da Educação, mas disseram-lhe que a filha estava dentro dos parâmetros normais. No ano passado, quando entrou para o primeiro ano, as coisas pareciam estar a correr bem, mas "ao introduzirem as consoantes começou a descambar: havia dias em que lia e escrevia normalmente como uma aluna do primeiro ano, e noutros não conseguia. Tinha pavor de fazer ditados, chorava, chorava."

Aflita, Conceição foi ao médico. "Fui ao Doutor Lobo Antunes, que lhe diagnosticou perturbação de ansiedade e défice de atenção, mas disse que a dislexia só pode ser diagnosticada a partir do meio do segundo ano de escolaridade." Inconformados, os pais procuraram a psicóloga Paula Teles, ela própria disléxica, e que considera o diagnóstico e trabalho precoces fundamentais. Uma opção dispendiosa - cada sessão custa 60 euros - e que implica que os pais trabalhem diariamente com os filhos, mas que Conceição considera um sucesso: "Quando chega a casa da escola (pública) fazemos os trabalhos de dislexia, depois o trabalho de casa e depois preparamos o dia seguinte. E os resultados são excelentes. Vejo-a a superar as dificuldades, está mais autónoma. Não conseguia dizer os dias da semana e meses do ano, nem quando fazia anos, e a lateralidade, saber qual era a direita e esquerda, era para esquecer. Isso mudou." Com um sorriso na voz, conta que Camila lhe perguntou: "Mas isto é um segredo, mãe? E quem sabe?" Não é segredo, respondeu Conceição, mas não é preciso dizer a toda a gente. "Aí ela perguntou se podia dizer à melhor amiga - e disse. É muito bem aceite pelas outras crianças."

Maria João Silva, 48 anos, também ela professora, habitante de Oeiras, não tem dúvidas de que "a primeira pessoa a saber que é diferente é a criança." O filho, Miguel, agora com 10 anos, foi diagnosticado com autismo aos três. "Tudo o que implicasse socialização ele punha-se à parte. Isto com os pares, porque com adultos dá-se melhor." No outro dia, conta, estava na fila do supermercado para comprar fiambre e ele fugiu da confusão para o pé dos livros, "que é onde se sente bem. Tem de perceber que as coisas não são uma ameaça. O que se passa é que é hipersensível: ao som, ao toque, às texturas. Tivemos de o ensinar a lidar com a espuma do sabão, por exemplo. Temos de ser o mais assertivos possível no diálogo com ele." Como foi aprender a lidar com isso? Faz uma pausa, a pausa de alguém que se habituou a segurar a emoção. "Filho é filho - ninguém nasce ensinado para ser pai de seja qual criança for. Nesta situação, os pais têm de fazer o luto. E nunca desistir, nunca. Das crianças nunca se desiste, nem de nós próprios. Tudo o que lhe pudermos proporcionar, de acordo com a gestão económica possível, proporcionamos. A pediatra disse que se ele vivesse no campo seria criança reservada - a sociedade hoje é exigente a nível social - o social é muito ruído." Assim, prossegue, "pode ter um desenvolvimento de acordo com o que ele é. E neste momento é uma criança feliz, na escola dizem que é um amor, tem um grupo de amigos na sala. Está no 5º ano, dizem que canta bem, das disciplinas académicas de que gosta ainda estamos tentar perceber. Mas come, dorme, toma banho e veste-se sozinho. E quando não percebe alguma coisa diz "com licença" ou "não percebo". Acho isso muito bom."

Para chegar aqui, Miguel tem três a quatro sessões de terapia por semana, "divididas entre terapeuta de educação social, terapeuta da fala e psicóloga", para além de tudo o resto: "Escola, surf, badmington, equitação, natação." É um menino ocupado, conclui a mãe. "O meu filho é um caso de sucesso total em todos os aspetos. Nada garante, claro, que de hoje para amanhã não haja um isolamento. Mas agora é uma criança feliz e a família é moderadamente feliz."

É até possível um aluno diagnosticado com "dislexia grave e défice de atenção" ser do quadro de honra. Como José Guilherme, 13 anos, filho de Suzete Vaz, 42 anos, enfermeira de Vila Real. Diagnosticado aos seis/sete anos e seguido pela psicóloga Paula Teles desde os sete, começou por ter sessões de terapia em Lisboa de 15 em 15 dias. "Era muito caro, cheguei a pensar mudar de cidade por causa disso. Depois passou para de mês a mês e de três meses em três meses. E até há um ano ainda fazia terapia da fala. No primeiro ano fazia cinco horas por semana." O diagnóstico formal de dislexia não só permite um acompanhamento especial - na escola pública, porém; na escola onde José Guilherme andava, privada, esse acompanhamento não existia - como confere mais tempo para fazer os testes. "É ele mesmo que avisa o professor de que tem mais meia hora. Diz sempre que tem dislexia e sabe explicar, para os outros miúdos não se sentirem discriminados, por verem que ele tem regalias que eles não têm." As notas são tão boas, comenta a mãe, que no colégio ficam admirados. "Pensar que ele no início não queria ir à escola porque não conseguia acompanhar."

"Levava todos os dias reguadas por ser distraída"

Missão Paula Teles, psicóloga, 72 anos, descobriu já adulta que as dificuldades que sentira toda a vida, e que lhe valeram muita reguada na escola por a professora a achar "distraída", se deviam a uma dislexia nunca diagnosticada. Apesar de dar erros a escrever, conseguiu tirar o curso de professora do Magistério Primário, e sempre se interessou por trabalhar com crianças como ela fora, com dificuldades de aprendizagem: "Não sabia o que era aquilo, mas queria saber como acontecia". Fez por esse motivo um curso de educação pela arte, findo o qual decidiu estudar psicologia educacional. Foi nessa altura que descobriu a dislexia e começou a trabalhar em terapias adequadas. "Criei uma cantilena para cada letra do abecedário e comecei a fazer materiais - livros com letras em relevo para passar o dedo por cima, para aprender a desenhá-las." Outro método são as leituras repetidas, "quer de sílabas, quer de palavras, quer de textos." Fundou uma Clínica com o seu nome e publica sobre o seu trabalho. "Dá-me muita satisfação chegar a esta idade a fazer isto, e acho muito importante que se perceba que quanto mais cedo for feito o diagnóstico melhor. O sucesso depende da severidade da afeção, mas tem de haver muito trabalho."

Fonte: DN

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