segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

“Usar o termo sobredotação é mau marketing”

Já observou uma criança de oito meses a proferir frases completas. O fenómeno atesta o extremo a que pode chegar a inteligência humana. Françoys Gagné, investigador na área da dotação e talento, veio a Portugal desvendar alguns mitos da sobredotação.
“Há muitas maneiras de se ser dotado, para além do intelectualmente brilhante.” Investigador na área da dotação e do talento, Françoys Gagné lembra o que a sociedade muitas vezes esquece. “Provavelmente um atleta muito bom em algum desporto é fisicamente dotado.” Mas isto não significa que qualquer pessoa possa atingir esse patamar. Os estudos apontam para uns modestos 10%. Professor honorário de Psicologia na Universidade do Quebeque, Canadá, Gagné passou por Lisboa para participar no Seminário Internacional Sobredotação: Mitos e Rumos. Em entrevista ao EDUCARE.PT deixou algumas considerações sobre o que é a sobredotação, ou antes, a dotação, como Gagné prefere designar. 

EDUCARE.PT (E): Prefere usar o termo dotado em vez de sobredotado, pode clarificar esta posição?
Françoys Gagné (FG): Não sei como surgiu o uso da palavra sobredotado. Os portugueses, os espanhóis e os franceses usam-na. E décadas de utilização tornam difícil apagar o termo. Mas eu prefiro falar em dotação. Quando usamos o termo sobredotado estamos a criar uma imagem para aqueles que não o são. E isso é determinante para a sua autoestima. Por isso, acredito que usar o termo sobredotação é mau marketing. 

E: Diz que uma pessoa dotada pode não ser criativa, mas muitos académicos insistem na associação entre dotação e criatividade?
FG: Insistem, mas eu discordo. Há muita pesquisa a explicar que dotação e criatividade surgem apenas em níveis de inteligência muito elevados. Alguma pesquisa mostra que pessoas muito proficientes, por exemplo, músicos muito talentosos, geralmente são intelectualmente dotados, mas estes serão perto 10%. Do mesmo modo, há estudos que mostram que alguns atletas de alto nível, que praticam desportos que requerem muita estratégia, planeamento e organização, são intelectualmente dotados e a sua elevada inteligência ajuda-os a compreender todos os tipos de acontecimentos no campo. 

E: Talento e dotação são coisas bem diferentes, pode explicar?
FG: A dotação tem a ver com potencial, com atitude. O talento tem a ver com realização. O potencial é algo que não é fácil medir de forma precisa. Por exemplo, na inteligência temos os testes de QI – que na minha perspetiva são a melhor forma de medir as habilidades intelectuais e, a um nível mais elevado, a dotação intelectual. Também existem testes para medir a criatividade, mas não são tão bons. 

E: Um indivíduo pode ser dotado mas não alcançar o talento?
FG: Sim, com certeza. 

E: Ouvi-o dizer que é melhor ser talentoso do que dotado...
FG: Se alguém é talentoso é porque demonstrou que pode alcançar sucesso. Está entre os 10% melhores da sua faixa etária. Se é identificado como dotado ainda não provou nada. Só sabemos que tem potencial mas ainda é preciso provar que o sabe usar efetivamente para alcançar alguma coisa. 

E: A sua pesquisa coloca a tónica nos fatores ambientais como a chave para ajudar uma pessoa dotada a tornar-se talentosa.
FG: Um indivíduo pode ser intelectualmente dotado, mas ter sérios problemas de personalidade, como ansiedade, bipolaridade ou tendência para a agressividade com os outros. Estas características da personalidade podem tornar difícil a adaptação do indivíduo dotado ao ambiente social e impedi-lo de alcançar o sucesso. 
Há uma sociedade internacional chamada Mensa que reúne pessoas intelectualmente muito dotadas, que se estimam rondarem os 2%, ou seja, não inclui os considerados intelectualmente dotados, os tais 10% de que falava... Através de um teste estas pessoas têm de mostrar possuir um QI no mínimo de 125, só depois se tornam membros. Mas muito deles são pessoas que nunca se tornaram talentosas. Estão apenas a fazer o seu trabalho na sua vida. Muitos até têm dificuldade em manter um emprego porque não são socialmente muito adaptados. Outros são capazes de olhar de alto a baixo as pessoas mais medianas e dizer que não são suficientemente inteligentes. E, claro, recebem reações negativas. 

E: O inverso também é possível? Quando uma criança sobredotada é vista pelos pares como o 'espertinho' da sala de aula, isso pode torná-la antissocial?
FG: A maioria das crianças dotadas não é antissocial. Adapta-se bem. São bons alunos na escola e, se tiverem boas maneiras sociais, terão bons amigos. Podem não falar muito sobre o seu talento, porque não vão querer ser demasiado notados, nem que os seus amigos reajam negativamente a isso. Mas a investigação confirma que, basicamente, os alunos talentosos são bem aceites pela maioria dos seus pares e têm uma boa vida social. 

E: Sugere o agrupamento dos alunos dotados por nível de capacidade, como forma de desenvolver o seu talento académico. Isso poderia ser feito numa escola que recebe qualquer tipo de alunos?
FG: Há muitas maneiras de fazer esse agrupamento. Através de escolas especiais para alunos talentosos, o que representa o exponente máximo do agrupamento. E da constituição de turmas especiais para alunos talentosos, em escolas gerais. 

E: Houve uma ideia do atual Ministério da Educação de constituir turmas de excelência que não foi bem aceite, porque foi considerada uma medida, a ser concretizada, elitista...
FG: É elitista, mas de uma maneira tão positiva como quando falamos de desporto de elite ou de um artista de elite. Porque é que aceitamos tão bem estes dois exemplos de elite e não o de turmas de elite? Se olharmos para a definição de elite, são um conjunto de pessoas especialistas num campo. 
O problema é o adjetivo elitista ser, geralmente, entendido de forma negativa. Como dar privilégios especiais a algumas pessoas que são identificadas com estatutos socioeconómicos elevados. Pessoas com pontos de vista mais socialistas ou comunistas olham para essa interpretação e preocupam-se que aqueles que têm o poder económico e político possam criar situações que favoreçam as suas crianças, para que estas possam ter um tipo de estatuto. Temem que as crianças dos ricos e poderosos sejam mais privilegiadas e que as provenientes de ambientes mais pobres sejam negligenciadas. 

E: Trata-se de um problema ideológico. Como se resolve? 
FG: É difícil. Quase todos os países andam a tentar resolver essa questão. Na Austrália, perto de Sidney, no estado de New South Wales, aceitaram o facto de que se tente ajudar os alunos mais brilhantes através da criação de uma rede de cerca de 40 escolas secundárias seletivas onde é preciso passar um exame com uma nota elevada para se ser aceite. 
Mas, sublinhe-se, existem 40 escolas com pelo menos mil alunos cada. Temos cerca de 40 mil alunos com um currículo enriquecido. Mesmo assim, ainda há quem diga que estas escolas são elitistas! Mas a maioria das pessoas que está na educação e no Ministério da Educação de South Wales aceitou a ideia e estas escolas existem há 20 anos. Portanto, o problema é como arranjar maneira de abrir a primeira? 

E: São escolas públicas ou privadas?
FG: Públicas e completamente gratuitas. 

E: Existem escolas seletivas no Quebeque?
FG: A experiência é ligeiramente diferente, mas penso que mais similar à vossa. Em Viseu passei em frente a uma escola secundária que me disseram ser de elite. Todos os alunos a queriam frequentar, porque era a mais prestigiada. E, provavelmente, construiu esse prestígio ao longo de muitos anos, porque quem me acompanhava tinha lá andado em jovem e dizia que já nesse tempo a escola era conceituada. 

E: Diz que para um aluno dotado estar numa sala de aula é como estar preso numa fila de trânsito em hora de ponta…
FG: Quando dizemos preso em hora de ponta, significa que estamos numa autoestrada e há tantos carros que se demora 40 minutos a avançar 100 metros. Ninguém quer estar preso no trânsito, é muito frustrante, mesmo que possamos estar a ouvir rádio ou a olhar para o telemóvel, mas é muito tempo perdido para nada. Este é o mesmo sentimento que muitos alunos têm na sala de aula. Olham para a lição e ouvem o professor falar de algo que eles perceberam semanas atrás. 
É óbvio que eles não querem ouvir a mesma coisa por dez vezes. Fecham a mente e começam a sonhar ou a pensar em outras coisas e às vezes podem gerar distúrbios. A maioria não causa. Mas fico muito surpreendido por tantos alunos permanecerem vagamente atentos durante a aula, ou a fazer de conta que estão atentos e apenas ouçam ou pensem em coisas diferentes. Talvez leiam um livro às escondidas por debaixo da mesa. Mas não estão a aprender. É uma perda do tempo deles e devia ser mais produtivo. 

E: Que conselhos dá aos professores para lidar com um aluno destes?
FG: Devem começar a acreditar nas diferenças individuais e a aceitar que alguns alunos aprendem muito mais rapidamente que outros. Podem até saber coisas em algumas disciplinas, melhor que eles próprios. Depois, tentar dar a esses alunos flexibilidade relativamente ao que está a fazer na sua sala de aula. Se o aluno percebeu o que está a ser dado, o professor deve deixá-lo aproveitar o tempo para ler um livro ou trabalhar em algum projeto. Nunca forçá-lo a ouvir. 
Em algumas escolas, os professores permitem aos alunos ir até à biblioteca e ler lá. Esta e as outras atividades não constituem propriamente um enriquecimento, mas ao menos permitem ao aluno fazer alguma coisa que pode contribuir para o seu desenvolvimento pessoal. Tudo o mais, além disso, é pedir muito aos professores neste momento. 

E: Os professores ficam aterrorizados, mas os pais adoram saber que um filho é sobredotado.
FG: Não é bem assim. Há pais que ficam muito preocupados. Ontem, quando dei o seminário sobre dotação, um casal, cuja filha de 2 anos é dotada, veio falar comigo e deram-me exemplos de algumas situações vividas com a criança. Ela fala perfeitamente, com frases completas. Isto não é típico de uma criança desta idade. Conta os números até 20 e começa a ver as palavras e a perceber o que significam. Ora isto seria de esperar de uma criança com 4 anos de idade. E os pais, como só têm esta filha, não tinham base de comparação. 
Numa creche, um educador tem várias crianças de diferentes idades e pode ver as diferenças de desenvolvimento, mas aqueles pais não. Por isso, estes pais tiveram de ir à procura de saber qual o típico comportamento de outras crianças para perceber as diferenças da sua filha. Tive outra pessoa que veio ter comigo dizer-me que tinha a certeza que o filho dos vizinhos era dotado, mas que os pais ainda não tinham percebido. 

E: Educadores e professores estão numa posição privilegiada para despistar estes casos?
FG: Tanto uns como outros precisam de saber identificar a dotação mesmo antes da escolaridade, durante a permanência na creche. No Quebeque temos um bom sistema de creches - Centre de Petits Enfants - que abrange crianças a partir dos seis meses aos 5 anos. Cerca de 700 mil meninos e meninas com educadores todo o dia a tomarem conta deles. Se algum for precoce eles têm obrigação de notar. A precocidade deteta-se precocemente.
In: Educare por indicação de Livresco

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