quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Educação inclusiva: das políticas às práticas

Se há áreas que estão na ordem do dia nestes tempos de crise e de prosas bárbaras, parafraseando o título de um livro de Eça de Queirós, a da educação inclusiva é uma delas.
E está na ordem do dia nem sempre pelas melhores razões, mas quase sempre pelas piores, pela ausência ou redução de respostas para os cidadãos com deficiência.
Com efeito, as áreas da educação especial e da inclusão, que deveriam ser bastiões de uma escola promotora da igualdade de oportunidades e deveriam merecer toda a atenção por parte dos poderes instituídos, nomeadamente por parte do ministério da educação e ciência e do da solidariedade, emprego e segurança social, começam a soçobrar de uma forma inadmissível, muitas vezes com a transigência de muitos agentes institucionais, mesmo sabendo-se dos vínculos internacionais que Portugal assumiu, assinando convenções sobre estas matérias.
Todos conhecemos a convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, a declaração de Salamanca ou a carta europeia dos direitos do homem e, afinal, a própria constituição da república portuguesa, a nossa constituição. Nenhuma delas engana, não enganam, e apontam o caminho aos decisores. Estes, os decisores, não o esqueçamos, que são sempre circunstanciais e que seria bom que o interiorizassem, têm feito tantas vezes tábua rasa dos princípios e dos valores aí ínsitos, valores esses que têm que ser o lastro da educação especial e da escola inclusiva.
É que todos os cidadãos portugueses o são, e só são, se de pleno direito. Todos são precisos. Todos fazem parte. Todos têm que encontrar respostas nas instituições do seu país que é o nosso país. Temos que lutar pela igualdade de oportunidades para todos e a diferença não é, nunca foi, uma fraqueza, é e será sempre uma sinergia, uma mais-valia competitiva de qualquer país, de qualquer território. A diferença acrescenta e não diminui.
Bem o sabemos, mas temos que o afirmar constantemente, com força, que dentro de cada pessoa com deficiência mora um cidadão, mora uma expectativa, mora um amanhã, mora um futuro. Não temos o direito de obstruir essa personalidade, fazer precludir esse magma que tal qual todos os demais se quer cumprir na sociedade que é a sua sociedade nesta nação de que faz parte, que integra.
Deixemo-nos, portanto, de hipocrisias. Todos. E o todos é desde logo cada um. Estejamos onde estivermos.
Entendamo-nos.
A educação especial tem como grande princípio orientador a inclusão educativa e social das crianças e jovens com deficiência numa escola que integre todos os alunos. Uma escola que seja capaz de responder e respeitar diferenciadamente as suas necessidades educativas.
E se assim é só se pode exigir ao estado através do governo que cumpra aquilo que lhe compete. Que as práticas sejam consonantes com os normativos e com toda a subjacência que os informa e está a montante. Que os discursos não sejam manuais de retórica oca e de cínica hipocrisia.
Algumas perguntas exemplificativas.
Será que podemos aceitar que volvidos três meses após o início do ano letivo ainda tenhamos crianças, com rosto, o seu rosto, sem professores e técnicos especializados? Crianças a quem esteja a ser vedado o acesso a uma escola, a uma turma?
Será que podemos concordar que, para o mesmo número de alunos, o serviço público de educação, a escola pública, esteja este ano letivo a afetar metade, ou menos de metade, dos recursos humanos do ano letivo anterior conforme se pode documentar em sites de instituições e em exposições e comunicados provindos de agrupamentos de escolas e de associações de pais?
Será que podemos compactuar com um corte de 14 milhões de euros para a educação especial no orçamento de estado para 2014, quando, a título de mero exemplo, o orçamento dos gabinetes dos membros do governo do ministério da educação (ministro e secretários de estado) cresce globalmente 1,6%?
Será que podemos permitir que as pessoas com deficiência sejam cidadãos invisíveis, institucionalizando-os ou escondendo-os ao dificultar-lhes as acessibilidades cívicas nas nossas polis, pese embora todas as diretivas, leis de bases ou decretos-leis?
Será que nos podemos bastar com a existência de normativos, de princípios, de valores, de investigações científicas que depois não traduzimos em práticas, sequer mínimas, no que a esta problemática diz respeito? (...)
Bem sabemos que as interrogações que acabei de formular poderão ser conjunturais. Mas não serão elas o resultado de práticas que acontecem por aí, hoje e agora?
E se acontecem o pior que poderíamos fazer, que poderemos fazer, é fechar os olhos, é escamoteá-las.
Não o podemos fazer, não o devemos fazer.
Porém, não posso, também, por rigor de análise, deixar, igualmente, de vos dizer que percorremos um longo caminho de que nos temos que orgulhar.
Com efeito, construímos um corpo legislativo e um corpo técnico que acompanha aquelas que são as principais linhas defendidas pelos organismos internacionais.
Temos instituições, públicas e privadas, de referência que nos merecem todo o respeito e que devemos acarinhar pelas respostas de grande qualidade que dão no dia-a-dia a milhares de cidadãos nas mais diversas vertentes da deficiência.
Temos parcerias entre o estado e associações, que funcionam, e que só importa aprofundar e melhorar.
Temos na academia, na investigação e na ciência um vasto conjunto de professores e de investigadores que se dedicam de uma forma absoluta a estas questões, com resultados reconhecidos nacional e internacionalmente.
Temos nas escolas e agrupamentos de todo o país e nos centros de recursos para a inclusão, os CRIS, professores especialistas, técnicos de diversas áreas e colaboradores que permitem que todos os dias aconteça escola inclusiva, aconteça inclusão. Só não nos podemos esquecer, como está a acontecer, de os olhar como respostas qualificadas, cujas vagas, ainda neste momento, temos que preencher.
Temos pais e encarregados de educação que fazem uma entrega superior ao movimento associativo por forma a construírem plataformas de respostas qualificadas para os cidadãos com deficiência.
E se temos tudo isto, deve-se com certeza à nossa sociedade como um todo organizado e como um todo atento e sensível às questões que aqui nos juntam.
E este é um caminho que vem de longe. Não de tão longe quanto gostaríamos, mas que já tem pelo menos duas décadas.
Ele radica nas normas sobre igualdade de oportunidades para as pessoas com deficiência. Assenta nas resoluções das Nações Unidas dos princípios dos anos 90 do século XX que afirmavam não só a igualdade de direito à educação para todos os cidadãos com deficiência, mas que esse acesso à educação acontecesse nas escolas integrantes dos sistemas educativos, designadas escolas regulares.
E estes documentos das Nações Unidas e declarações posteriores, como a de Salamanca, já atrás referida, reiteravam, reiteram, que as escolas devem acolher todas as crianças independentemente das suas condições seguindo os princípios da inclusão e de uma escola para todos, isto é, escolas que aceitem as diferenças e que respondam às necessidades educativas especiais de cada indivíduo.
E, portanto, a reformulação profunda que aconteceu, também em Portugal, nas últimas décadas, na sequência de toda a investigação internacional e de todas as resoluções de organismos internacionais, foi nesse sentido e, pesem embora, os problemas graves, conjunturais, com que nos defrontamos, há um espaço consolidado que não terá recuo face à absorção individual dessa matriz inclusiva, por cada um de nós enquanto cidadãos e por cada uma das nossos instituições e plataformas de intervenção cívica.
Temos, portanto, que continuar esse, este, trabalho para podermos, a montante, continuar a melhorar o edifício teórico e legislativo e a jusante podermos encontrar as melhores respostas e os melhores recursos para estas necessidades, para termos, de facto, uma escola pública e um serviço público de educação que efetivamente incluam.
Nunca deixemos, pois, de nos interrogar, de interrogar a sociedade, de nos indignar quando estiverem em causa, como acho sinceramente que têm estado últimos tempos, as respostas dos poderes instituídos à escola inclusiva e desta aos nossos concidadãos.
Não permitamos nunca que isso aconteça, com o nosso silêncio.
Não há sociedades perfeitas, com certeza que não, mas há sociedades que podem e devem ser exigentes e rigorosas consigo próprias.
É esse o nosso desafio: sermos exigentes e rigorosos com a certeza de que a diferença não diminui, a diferença acrescenta.

Acácio Pinto
Professor e deputado à Assembleia da República

Este texto corresponde à quase totalidade da intervenção do deputado Acácio Pinto no "congresso nacional de apresentação do projeto 'Surdocegueira': um modelo de intervenção" que decorreu nos dia 3 e 4 de dezembro no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Recebido por correio eletrónico mas disponível no seu blog "Letras e Conteúdos".

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