quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Canários na mina: suicídio de pessoas autistas

Setembro é o mês da prevenção do suicídio e a campanha nacional está a terminar sem uma palavra sobre as pessoas autistas. Não se pode dizer que estejam ausentes da estratégia nacional para a prevenção do suicídio, pois esta não existe ainda. Mas estão ausentes dos recursos disponíveis para a comunidade, para jornalistas e para profissionais de saúde disponibilizados pelo SNS. Esta situação tem de mudar, e o risco mais elevado de suicídio nas pessoas autistas deve ser reconhecido, tal como é nas pessoas LGBTQIA+.

Estudos recentes revelam que o suicídio é a principal causa de morte prematura em autistas sem deficiência intelectual, apresentando um risco até sete vezes maior quando comparado com a população em geral. Estas informações encontram-se na página da Associação Voz do Autista (APVA), num dos escassos materiais traduzidos para português sobre bem-estar e prevenção de suicídio no autismo, elaborado pela Sociedade para a Investigação em Autismo da Australásia em conjunto com pessoas autistas e tendo em conta a sua experiência vivida. Cerca de metade das pessoas autistas farão pelo menos uma tentativa de suicídio durante a sua vida, e não são atualmente reconhecidas como um grupo prioritário para atividades e financiamento da prevenção de suicídio.

O espetro do autismo foi redefinido ao longo do tempo para incluir pessoas cujas deficiências são invisíveis. Cada vez mais pessoas autistas são diagnosticadas em adultas, frequentemente no decorrer da procura de apoio mental para lidarem com manifestações de sofrimento, como ansiedade, depressão ou pânico. A razão subjacente é que as pessoas autistas têm um sistema nervoso central atípico que pode aprisioná-las facilmente em reações de luta, fuga, congelamento ou submissão, não conseguindo relaxar. Além disso, o ambiente social para as pessoas autistas é mais perigoso, e sabe-se que estão expostas desproporcionalmente a violência como o bullying e outros abusos, em virtude de serem percebidas como diferentes.

Por esta razão, as pessoas autistas são o canário da mina: sofrem mais com a pressão que recai sobre todos nós, têm menos fatores protetores e estão mais expostas a agressões quotidianas.

É sabido que só é possível viver na sociedade atual escondendo constantemente os nossos medos e necessidades para criar uma projeção de sucesso e bem-estar que frequentemente não corresponde a como nos sentimos. Para as pessoas autistas, o mascaramento provoca danos graves na saúde mental, levando à exaustão e ao burnout autista, que é um fator de risco para o suicídio. Estes danos podem acontecer sob a máscara do “alto funcionamento”, em que as pessoas continuam a trabalhar desempenhando um papel até não poderem mais.

É o caso de muitos médicos autistas, cuja realidade é bem diferente da personagem de Good Doctor. Os médicos autistas podem ter capacidades excepcionais e grande empatia, mas ficam exaustos com a burocracia da cultura médica, as hierarquias rígidas e as dinâmicas sociais complexas, ao ponto de um em cada quatro terem tentado suicídio em algum momento das suas vidas, como revelado por um estudo publicado a 18 de julho de 2023 na Frontiers of Psychiatry. Outro estudo no mesmo ano revelou que os estagiários de medicina autistas lutam contra o bullying, isolamento, ansiedade e sentem-se vitimizados por um sistema de formação médica que alimenta a cultura tóxica de que se devem habituar a maus tratos.

A prevenção de suicídio das pessoas autistas passa por permitir o desmascaramento (https://www.publico.pt/2021/04/02/p3/noticia/ha-dificuldade-falar-autismo-continua[1]preferivel-escondelo-desconforto-compreender-1956903) e por criar espaços seguros de interação onde haja maior ressonância entre as pessoas e autenticidade nos relacionamentos. Nas palavras de Lisa Morgan, especialista na prevenção do suicídio: “Compreender o autismo e a cultura das pessoas autistas, para que as pessoas autistas não precisem mascarar ou camuflar o seu autismo, é a prevenção do suicídio”.

A resposta deve ser social e comunitária: as pessoas autistas devem ser identificadas nas políticas nacionais de suicídio como uma população de risco; os profissionais da linha de frente devem atualizar-se e ter um conhecimento sólido sobre os entendimentos mais recentes de autismo e da sobreposição de autismo e doença mental; é fundamental que as pessoas autistas sejam envolvidas na conceção e implementação de estratégias de saúde mental e prevenção do suicídio, pois as experiências autistas de saúde mental e suicídio, stress e crise são diferentes e precisam de abordagens diferenciadas para que os meios disponíveis possam ser mais eficazes.

Por exemplo, tentativas de suicídio podem ocorrer em crianças autistas muito novas, e recomenda-se que os esforços de consciencialização e prevenção comecem durante os anos escolares; muitas pessoas autistas têm dificuldades em falar e ligar para linhas de apoio, mas conseguem usar chats e meios de comunicação escritos; algumas pessoas têm formas de pensamento literais que importa ter em conta para encontrar as palavras que podem fazer a diferença. Mudar a comunicação sobre suicídio é necessário e a diferenciação da prevenção do suicídio para pessoas autistas pode salvar vidas.

A criação de espaços seguros para pessoas autistas tem sido uma das prioridades da APVA. A associação tem em funcionamento grupos de apoio e um programa piloto de mentoria de pares designado “Sou autista, e agora?”. O programa está a ser desenvolvido no âmbito do projeto AUTICORPOS 2.0 – melhorar a saúde mental e bem-estar das pessoas autistas, co-financiado pelo INR, I.P., que contempla a tradução de recursos sobre a resposta ao suicídio elaborados com a participação de pessoas autistas.

Na comunidade autista, lembramos todas as pessoas que perdemos por suicídio (https://www.publico.pt/2020/10/10/p3/noticia/jovens-falaram-tanto-saude-mental[1]suicidio-problema-nao-falar-saber-fala-1934640) e as pessoas que ficaram. Reconhecemos o sofrimento duradouro do suicídio e as experiências complexas de todas as pessoas que contemplaram o suicídio em algum momento das suas vidas. Sabemos que as pessoas com experiência vivida podem proporcionar esperança, resiliência e apoio às pessoas em risco.

O risco de suicídio pode ser reduzido com fatores protetores, como o apoio de pessoas significativas, mas é preciso saber como ajudar. A resposta comunitária é vital e pequenos atos genuínos de bem-querer podem fazer uma grande diferença.

Se o ambiente ficar melhor para os canários, melhora para toda a gente na mina.

Rita Serra

Investigadora do Centro de Estudos Sociais, membro da Associação Voz do Autista (APVA), autista e mãe, com uma família neurodivergente

Fonte: Público de acesso livre

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