sexta-feira, 16 de junho de 2023

Rankings, meritocracia e qualidade da educação

As sociedades parecem lidar bem com os rankings porque, em geral, são simples e proporcionam informação que, supostamente, é objetiva e útil. No entanto, têm sido considerados uma emanação da meritocracia, conceito proposto em 1958 por Michael Young no premonitório livro The Rise of the Meritocracy (1870-2033), uma sátira distópica a propósito de uma sociedade dominada pela ideia do mérito que acaba por se tornar insuportavelmente desigual. A seleção de pessoas baseada no mérito (aptidões naturais+esforço) foi utilizada na China há mais de 2000 anos por razões plausíveis. Através de exames e/ou provas, evitava-se que o recrutamento de funcionários públicos e de oficiais do Exército se fizesse com base nos apelidos (https://www.publico.pt/2019/07/23/sociedade/opiniao/meritos-demeritos-meritocracia-razoes-discriminacao-positiva-1880886) das famílias poderosas e/ou do estatuto económico e social dos candidatos. Na Revolução Francesa também se ergueu a bandeira do mérito como forma de recrutar os melhores para os cargos públicos.

Porém, a investigação tem mostrado que as políticas meritocráticas (https://www.publico.pt/2021/11/18/impar/entrevista/daniel-markovits-meritocracia-bloqueia-igualdade-1985068), que predominam nas sociedades, têm contribuído para pôr em causa princípios e valores fundamentais das democracias tais como a justiça, o direito à educação, a solidariedade, o humanismo e a igualdade. A meritocracia (https://www.publico.pt/2022/05/15/mundo/entrevista/michael-j-sandel-precisamos-populismo-democratico-2005552) é, assim, um obstáculo e não um caminho para a equidade e o seu discurso legitima as desigualdades, considerando-as uma consequência normal das falhas individuais. A responsabilidade pelo insucesso é individual e não social.

Os rankings (https://www.publico.pt/ranking-escolas-2020/20-anos-rankings) são um meio algo perverso de legitimar as desigualdades, levando as pessoas a pensar que elas são naturais e que só acontecem porque uns têm aptidões e capacidades naturais e esforçam-se muito e outros não. É o triunfo da meritocracia, culpando as vítimas, que assim considera que as desigualdades existentes à partida entre as pessoas e as instituições são moralmente legitimadas.

O reconhecimento do sucesso implica necessariamente o reconhecimento do fracasso. Os apologistas dos rankings e da meritocracia parecem ignorar que há uma miríade de fatores sociais, económicos e culturais (/2052332) das famílias que estão fortemente relacionados com as formas como os alunos se relacionam com a escola e as aprendizagens e com formas como gerem a sua vida académica. Além disso, os métodos de ensino e de avaliação, o contexto da escola, os colegas e as tarefas a realizar também estão relacionados com o que os alunos aprendem e são capazes de fazer. Consequentemente, uma medida unidimensional obtida de uma questionável agregação de classificações num número de disciplinas e a partir da qual se hierarquizam as escolas numa tabela (https://www.publico.pt/2018/02/03/sociedade/noticia/as-escolas-sao-todas-muito-diferentes-os-exames-sao-iguais-para-todas-1801360) não pode traduzir a complexidade dos processos educativos nem a forma como as realidades socioeconómicas e culturais se relacionam com os resultados obtidos pelos alunos.

O nível socioeconómico e cultural das famílias (https://www.publico.pt/2015/12/12/sociedade/analise/contexto-e-valor-esperado-do-contexto-1716851) tem efeitos muito significativos nos percursos escolares dos alunos, presumivelmente através do desenvolvimento de relações complexas entre fatores genéticos e fatores socioculturais. As famílias das classes média e média-alta desenvolvem uma diversidade de estratégias para que os seus filhos possam obter bons resultados escolares. Pensemos, por exemplo, no recurso às explicações, na seleção de certas escolas (públicas ou privadas) e até de certas turmas. E pensemos também nas classificações internas atribuídas por um número de escolas públicas e privadas. São situações que, em alguns casos, podem ser consideradas eticamente inaceitáveis (https://www.publico.pt/2023/05/05/sociedade/noticia/colegios-rejeitam-necessidade-rever-sancoes-inflacao-notas-2048597) e que não podem deixar de ser relacionadas com o acesso ao ensino superior e com o clima de mercado e de competição induzido pela ideia meritocrática da hierarquização dos resultados das escolas através de uma medida.

Os rankings parecem ter vindo para ficar porque se considera que eles produzem leituras credíveis das realidades das escolas, nomeadamente no que se refere à qualidade do ensino que proporcionam. Mas, em bom rigor, ninguém nos pode elucidar acerca dos seus putativos benefícios para a educação do nosso país. De facto, pouco ou nada nos dizem acerca dos processos de ensino, de avaliação e de aprendizagem e das dinâmicas sociais que estão no cerne da qualidade da educação. Na verdade, eles ocultam o lado mais humano das conquistas (/2052791) e sucessos das escolas e das respetivas comunidades. Temos de ser capazes de utilizar melhor as informações que se podem obter junto das escolas. É um imperativo ético da maior relevância. Os rankings fazem parte de uma forma de estar e de viver neste mundo que, como vimos constatando, é absolutamente insustentável.

Domingos Fernandes

Fonte: Público

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