Os efeitos da pandemia começam a chegar aos consultórios. Em entrevista (...), a responsável pela secção de neurodesenvolvimento da SPP (Sociedade Portuguesa de Pediatria), Inês Nunes Vicente, admite que os pais têm pela frente um enorme desafio: promover o brincar livre e “sem regras”, para combater o rasto de isolamento social deixado pelo vírus.
Em que medida é que a pandemia e o confinamento resultaram em alterações para a saúde física e mental das crianças?
A pandemia e o confinamento conduziram necessariamente a um conjunto de alterações nas rotinas e experiências das crianças. Desde logo, impôs uma limitação significativa na socialização, ao limitar os convívios sociais banais, as reuniões/comemorações entre pares e familiares e ao alterar a própria dinâmica da escola, particularmente nos períodos de escola online. É neste contexto, de convívio social, que a criança tem acesso a um conjunto de experiências que são fundamentais na regulação do seu comportamento e temperamento.
Quer dizer que a escola online contribuiu para essas alterações?
No que respeita à escola online, importa destacar que este modelo constitui um desafio muito importante em termos de gestão da atenção da criança, da motivação e interesse desta pela aprendizagem e em termos de organização do estudo e tarefas. O acompanhamento dos alunos por parte dos professores também está prejudicado, agravando dificuldades de aprendizagem prévias, sentimentos de frustração e desinteresse pela escola. Neste âmbito, as crianças com necessidades educativas especiais são particularmente vulneráveis.
O excesso de exposição aos écrans é outro aspeto muito importante, tanto o tempo prolongado dedicado durante as aulas online, como o quase “inevitável” maior recurso a dispositivos eletrónicos (telemóvel, tablet, videojogos, etc.) para ocupar o tempo da criança confinada em casa. O écran não só impõe uma atividade passiva e pouco criativa, empobrecendo oportunidades de comunicação e socialização, como é utilizado muitas vezes como um escape perante dificuldades na gestão do comportamento da criança.
E tudo isso contribui para um desequilíbrio...
Esta carência de um convívio normal, físico e direto com os colegas, pares, professores e familiares, associado a dias mais monótonos, rotineiros e digitais, conduz inevitavelmente a agravamento dos problemas de comportamento (conflituosidade, oposição e desafio, ansiedade, preocupação excessiva com a higiene, vício do jogo).
Por outro lado, o confinamento e este modelo escolar em casa implicam uma atitude muito sedentária, limitam a prática de exercício físico, com agravamento de problemas como o excesso de peso/obesidade. A atividade física é fundamental também para a regulação emocional e do comportamento.
Por último, o impacto nos ritmos e qualidade do sono não deve ser esquecido, sendo que o sono tem uma função biológica de indiscutível valor concretamente no que respeita ao desenvolvimento psicomotor e aprendizagem.
Os pediatras notam alterações no comportamento dos mais novos desde há um ano?
Sim, em algumas áreas notam-se alterações, em parte condicionadas por experiências negativas pessoais/familiares ou pela existência de fatores de risco de cada agregado. Algumas famílias adotaram (ou tiveram de adotar) comportamentos de grande isolamento social e receio de contágio, limitando as experiências sociais das crianças, mesmo com familiares muito próximos, como os avós. Estes aspetos conduzem a sentimentos de medo, insegurança e fobia social.
O horizonte de incerteza relativo ao ansiado regresso da normalidade impõe necessariamente um sentimento de ansiedade e saturação nas crianças mais velhas, não só por voltar a uma escola “normal”, mas também por voltar à vida social “normal” (festas de aniversário e de finalistas, idas ao parque, cinema, teatro, etc.) sem limitações.
Por outro lado, como pediatra do neurodesenvolvimento, com o arrastar da pandemia e a repetição de períodos de confinamento, preocupa-me muito o agravamento clínico das crianças com perturbações do neurodesenvolvimento que já acompanhava.
Que grandes diferenças notam?
De uma forma geral, assistimos ao agravamento/estagnação dos atrasos de desenvolvimento psicomotor, dos problemas de linguagem, dificuldades de aprendizagem, problemas de comportamento e regulação parental e problemas de sono. Os apoios escolares ou terapias são muitas vezes insuficientes, protelados, realizados de forma indireta ou muito irregular. Importa destacar que o período pré-escolar constitui uma fase crucial para a estimulação das crianças, particularmente daquelas que tem fragilidades ou problemas no seu desenvolvimento psicomotor. Todas as idades são importantes, mas ressaltaria o impacto na preparação das crianças que vão ingressar no 1.º ano em setembro e que vivenciaram dois períodos de confinamento, e aqueles que estão a experienciar a aprendizagem da leitura e escrita em plena pandemia, com interrupções do ensino normal. Nas idades mais velhas/adolescência, preocupa-me muito a intensificação dos hábitos de jogo online, com carácter por vezes quase aditivo.
O que recomendam aos pais para que a pandemia (e os confinamentos) tenham o menor impacto possível no crescimento das crianças?
A pandemia constitui um importante desafio para os pais, não só pela gestão muitas vezes complicada do confinamento com escola em casa e teletrabalho concomitante, mas pela necessidade intrínseca que sentem em tentar colmatar as limitações impostas pela pandemia.
Em primeiro lugar, para que as crianças se sintam tranquilas, os pais devem transmitir sentimentos de tranquilidade, controlo, resiliência e otimismo face à pandemia/confinamento, atitudes que elas tentarão naturalmente imitar.
É fundamental manter um ambiente estruturado. Os pais devem procurar estabelecer rotinas e horários, definindo períodos de trabalho/estudo, de brincadeira, de participação nas atividades da casa, de atividade física e de sono e também de utilização saudável dos dispositivos eletrónicos.
E que conselhos deixa a SPP aos pais, no que respeita à gestão do tempo livre?
Quando acontece um confinamento, o tempo livre tem de ser vivido maioritariamente “dentro de casa”. Como pediatra, defendo muito o recurso aos jogos tradicionais (desde o velho “jogo da cadeira” para os mais pequenos aos jogos de tabuleiro para os mais velhos), os quais podem ser muito completos e na sua maioria não exigem grandes recursos. Estes jogos estimulam funções muito importantes como a atenção, a memória, a estratégia, a persistência na tarefa, a linguagem e, simultaneamente, a regulação emocional e a convivência social - aprender as regras do jogo, aprender a “saber perder”, esperar pela vez, respeitar os vencidos, etc.
Devem também, ser estimuladas atividades que obriguem a criança a mexer-se, a brincar com o corpo, a adquirir a noção de ritmo, de lateralidade e, desta forma, a estimular a coordenação motora e a atividade física. Sempre que possível, permitir o máximo de experiências ao ar livre. Ter também alguns cuidados alimentares, dado o menor gasto energético, e não permitir fácil acesso a snacks frequentes.
Por último, com ou sem pandemia, é muito importante promover um brincar “livre” ou “sem regras”, em casa ou no pátio, em que a própria criança cria a sua própria brincadeira, sem grandes recursos, procurando ser criativa, imaginativa, eficaz e resiliente na procura de soluções. A criança não tem de estar sempre ocupada ou de ter uma tarefa/jogo planeados. Tem de ter tempo para brincar e de descobrir/aprender a brincar.
Fonte: Educare
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