domingo, 12 de julho de 2020

Educação em emergência pandémica: é possível não deixar nenhum aluno para trás?

Mais de metade dos professores inquiridos numa auscultação recente não conseguiu contactar uma parte indeterminada de crianças e jovens seus alunos, pelo menos durante as primeiras semanas de educação de emergência, à distância. Podemos, com certa segurança, assumir que, naquela fração de estudantes, se contam cerca de 50.000 que não disporiam de ligação à Internet, bem como aqueles que, mercê de múltiplas barreiras, têm uma mais frágil participação na aprendizagem e na escola.

Podemos ainda admitir que boa parte desses alunos incontactáveis, há 10 ou 15 anos, viriam a integrar as estatísticas do abandono escolar precoce; se em fevereiro tal não aconteceria é porque foram sendo (re)mobilizados para a aprendizagem e para a escola pela ação coletiva organizada de professores e outros técnicos, em coligação com famílias e demais intervenientes na escola e na comunidade. As bases desta ação com jovens, famílias e comunidades estão hoje fragilizadas e reduzidas as possibilidades que iam permitindo mitigar barreiras à participação na aprendizagem enfrentadas por esses alunos.

Estudos recentes exploratórios e provisórios [1] sugerem que a aprendizagem, nesta educação remota de emergência em casa, aparenta depender dos meios de acesso à interação pedagógica, da capacidade de estudar autonomamente e do apoio doméstico com que o estudante pode contar; igualmente sabemos há décadas que quanto mais a aprendizagem dos alunos depender dos recursos e apoio familiares, mais se ampliam as desigualdades educativas. Assim, é expectável que a educação de emergência à distância, acentuando a influência do contexto familiar e reduzindo o leque e a efetividade de oportunidades institucionais para aprender, aprofunde desproporcionadamente o fosso da progressão nas aprendizagens.

Neste momento de preparação do próximo ano letivo, as crianças e os jovens incontactáveis e as barreiras que nessa condição os colocaram, bem como as pronunciadas desigualdades nas aprendizagens resultantes, terão de estar necessariamente no topo das prioridades que definem opções, meios e recursos para organizar o serviço da educação pública de emergência que não deixe nenhum aluno para trás. Como em muitas outras situações, serão a política e a pedagogia a alicerçar os contextos de interação em que a aprendizagem e a educação de emergência vão ser materializadas.

Porque os reportórios de ação pedagógica dos professores podem ser alargados e a ação organizada da escola para superar velhas e novas barreiras à participação de crianças e jovens na aprendizagem depende de condições e opções políticas que lhe sejam favoráveis. E, neste sentido, as políticas económicas e orçamentais para a educação são tão decisivas quanto outras opções nessa matéria: os custos sociais tendem a elevar-se desmesuradamente, sobretudo para os mais frágeis, quando a escolha fica determinada pela política educativa mais barata.

Hoje, parece indispensável um forte investimento nas condições humanas e materiais de acesso à participação na aprendizagem, garantindo que nenhum estudante é excluído; na constituição de turmas promotoras de condições e oportunidades acrescidas de aprendizagem junto de alunos que enfrentam severas barreiras a essa participação; na organização da escola para criar modalidades de apoio adicional, individual e em pequenos grupos, a crianças e jovens academicamente mais frágeis; no reforço da formação para ampliar o reportório de ação pedagógica dos professores em situação de educação de emergência.

Por aqui passará a contenção do sofrimento e de outros custos individuais, coletivos e sociais da pandemia. Porque cada um daqueles alunos incontactáveis que não regresse à escola significa regredir quase todo o caminho que desde há 15 ou 20 anos, coletivamente, a sociedade portuguesa avançou para que em educação cada vez menos pessoas fiquem para trás.

Fátima Antunes

Centro de Investigação em Educação/CIEd Universidade do Minho


Fonte: Público

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