domingo, 5 de janeiro de 2020

Quando as luzes nos cegam

Há quem diga que um Homem começa a ser gerado pelo menos um século antes de nascer, pelo que quem o quiser compreender deverá estudar a época dos seus avós. Ora, há um século atrás, vivia-se no Ocidente a euforia dos “Loucos anos 20”, também conhecidos como “Roaring Twenties”. O pós I Guerra Mundial, conflito no qual se inaugurou a indústria da morte, trouxe consigo um período marcado pela ânsia de recuperar o tempo perdido. A cultura de massas na qual hoje vivemos submersos nasceu nesse período, atravessado pelos incríveis desenvolvimentos técnicos do cinema, da rádio, da televisão, pelo incremento da arte, da música e do desporto, bem como por um conjunto de transformações sociais e políticas, entre as quais importa destacar os movimentos feministas e sufragistas. 

No dealbar da década de 20, quem imaginaria, porém, que o crash da Bolsa de Wall Street, em Nova Iorque (1929), mergulharia quase todo o mundo numa profunda crise? A “Longa Depressão”, como escreveu Eric Hobsbawm, é de resto fundamental para compreender a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha ― em Janeiro de 2020, relembre-se, completam-se 87 anos após a nomeação do fűhrer como chanceler. 

Apesar de a História não se repetir, é assustador constatar as dramáticas semelhanças do nosso tempo com as circunstâncias que existiam há 100 anos. Ontem como hoje, os extremismos proliferam a uma velocidade vertiginosa. Donald Trump, o “Brexit” e Jair Bolsonaro representam apenas alguns exemplos desta perigosa tendência moderna marcada pela vitória do espectáculo sobre o conteúdo, pelo triunfo da ignorância/loucura em detrimento do rigor, do trabalho sistemático e do conhecimento científico (sim, ao contrário do que as redes sociais parecem levar-nos a acreditar, os intelectuais fazem-nos muita falta). 

Mais do que identificar detalhadamente essas similitudes entre o passado e o presente, penso, porém, que é importante reconhecer que nós somos filhos dos “Loucos anos 20”. A cultura do espectáculo permanente na qual vivemos embrenhados nasceu provavelmente ali e, portanto, quem quiser compreender o mundo actual terá de regressar às três décadas iniciais do século passado. Às décadas, sublinhe-se, onde nasceu o Fascismo e o Nazismo, cujas origens e exponencial crescimento também radicam na já mencionada civilização do espectáculo. 

A atracção das massas pela evasão proporcionada pelos mass media, que despertou no mundo ocidental a partir dos anos 20, parece ter atingido na hodierna o seu clímax, com famílias inteiras viciadas nas redes sociais e os mais jovens, em especial, a mergulharem durante horas a fio em jogos virtuais, evidenciando depois uma terrível incapacidade para interagirem com os seus semelhantes. No meio disto tudo, a Inteligência Artificial desenvolve-se a um ritmo alucinante. O mundo transforma-se a uma velocidade tal que é impossível captar as suas complexas transformações e, tal como Yuval Noah Harari já teve oportunidade de concluir, o Homem começa a perder a ilusão da liberdade: “The sacred Word ‘freedom’ turns out to be, just like ‘soul’, a hollow term empty of any discernible meaning” (Homo Deus. A Brief History of Tomorrow, 2016, p. 329). 

Nós podemos, efectivamente, não saber como serão as profissões daqui a 15 ou 20 anos, mas é fundamental que nos interroguemos a respeito do mundo que pretendemos ter daqui a duas ou três décadas, pois só isso nos poderá ajudar a definir melhor os conteúdos que os nossos alunos deverão estudar nas escolas. Sem uma resposta concreta a esta pergunta o futuro poderá revelar-se dramaticamente perigoso. E os holocaustos poderão estar novamente ao virar da esquina. 

Na década de 1980, o historiador francês Marc Ferro deu à estampa a obra A manipulação da História no ensino e nos meios de comunicação, na qual, logo a abrir, declarou: “Não nos enganemos: a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mesmos, está associada à História que nos ensinaram quando éramos crianças” (1983, prefácio, p. 11). Há cerca de duas décadas que, enquanto professor de Educação Especial, tenho o privilégio de ir circulando por muitas salas de aula, nas mais diversas disciplinas. E quanto mais o tempo passa, mais reforço a convicção segundo a qual a História pode desempenhar um papel crucial no futuro que pretendemos edificar. O estudo do passado ajuda-nos a criar pontes, entre nós e os outros. Ajuda-nos a reconhecer o profundo elo que nos aproxima dos primeiros seres humanos, há cerca de 3 milhões de anos, mas também de todos os seres com os quais partilhamos este planeta. A humildade de aprender a duvidar (de tudo o que sabemos ou pensamos saber) para depois perseguir outros trilhos é, porventura, uma das mais eficazes vias para construir um mundo mais democrático e inclusivo, uma lição que, afinal, também a História nos pode ajudar a reforçar. Fora disto, todas as palavras se tornam infrutíferas. E este é um dos meus maiores receios: nós, que tanto invocamos a inclusão e a democracia, estamos, muito provavelmente, a construir um país, uma Europa e um mundo, afinal, cada vez mais totalitário e que exclui, de modo irreversível, os mal-afortunados do berço e da genética. 

Não é possível compreender o nosso tempo sem recuar aos “Loucos anos 20”: nós somos os filhos e os netos dessa era das massas. E, talvez como todos os descendentes, exponenciámos os defeitos e as virtudes desse passado. Resta-nos agora aprender a lidar de um modo mais equilibrado com esse património, numa era em que um novo e catastrófico conflito mundial parece iminente e as alterações climáticas se revelam cada vez mais mortíferas, como, de resto, os fogos infernais da Austrália têm vindo a demonstrar, nos últimos meses. 

Aprender a ignorar os ruídos, viver apenas com aquilo que necessitamos, nomeadamente do ponto de vista tecnológico, é talvez um dos mais prementes desafios que temos hoje entre mãos. Por isso é que, segundo penso, a História, a Literatura e a Filosofia poderiam revelar-se cruciais para definir qual é, afinal, o futuro que pretendemos deixar aos vindouros. Mas isso exigiria outro tipo de sabedoria e consciência ética por parte de quem governa e por parte de quem é governado. Algo que depende ― cada vez mais ― de cada um de nós e da nossa capacidade para aprender a ignorar os vendedores da “banha da cobra” que por aí proliferam, travestidos dos nomes e títulos mais flamejantes e inclusivos que possamos imaginar… 

Renato Nunes 

(renato80rd8918@gmail.com)

Recebido por correio eletrónico

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