sexta-feira, 1 de maio de 2020

À distância não há escola

Sob a condição do “confinamento”, o universo digital sofreu uma enorme expansão e até os mais relutantes e muitos dos excluídos do uso das novas tecnologias — geralmente, os mais velhos — fizeram a sua iniciação. A vida à distância forçou a integração no eco-sistema digital.

A experiência mais notável e importante, em curso, é o ensino à distância, que faz a escola sair do seu invólucro de protecção e entrar nas casas, na intimidade doméstica. O sistema, como já foi dito em jeito de aviso, implica um perigo a que hoje todos estamos expostos, quase sem resistência: uma ampliação significativa do panóptico digital (o que permite ver tudo e exercer a vigilância). Mas a questão fundamental nesta experiência é a de saber se ela é bem sucedida (ou melhor: qual o nível de sucesso atingido), no plano didáctico, quais são as suas potencialidades e que conclusões retirar. Há certamente resultados diferentes, à medida das inescapáveis diferenças entre as disciplinas, os professores e os alunos. Não irei falar dos constrangimentos e sucessos, a partir das experiências pessoais, mas reflectir um pouco sobre a situação em termos menos empíricos.

Começo pela questão da transparência: a escola esteve muito protegida enquanto beneficiou da condição hermética da sala de aula, quando se fechava a porta e se criava um espaço descontínuo e sem intromissões exteriores (às vezes utópico, às vezes de terror). Esse tempo chegou há muito tempo ao seu fim e a sala de aula, reflectindo a abertura da escola no seu todo, deixou de ser um espaço autárquico. A transparência, que já antes suscitava discussão sobre se devia ou não ser modalizada, conhece agora uma nova etapa: tornou-se total e absoluta. Em casa, todos podem assistir às “performances” dos professores, avaliar os seus processos e a sua videogenia. Um certo grau de tecnofobia ainda era tolerado na sala de aula; no ensino à distância, não é possível nem há argumentos que o legitimem.

Mas a questão mais importante que salta à vista na presente experiência excepcional (que talvez tenha o efeito de mostrar como a escola é uma instituição indispensável e capaz de alimentar a última utopia a que temos direito) é a da escola como lugar de construção do colectivo e a centralidade da aula como comunidade. O modelo da comunidade educativa tem um sentido político enorme.

Outro aspecto importante é o da atenção. Como sabemos, o desafio maior com que a escola se tem vindo a confrontar de maneira crescente é o da atenção: como conquistar e fixar a atenção dos alunos, esses “sujeitos digitais” que vivem sob o regime do fraccionamento da atenção? A grande luta da escola, nos últimos anos, tem consistido em dotar-se de rituais específicos que servem de dispositivos atencionais, de modo a recuperar aquilo a que se chama geralmente “atenção conjunta” (ou partilhada), uma modalidade que designa o facto de a atenção de alguém (na circunstância, de um aluno) ser atraída para o objecto que lhe é indicado pela pessoa (na circunstância, o professor) que exerce um papel tutelar. Ora, esta co-atenção é eminentemente presencial. Sabe-se hoje muito bem que as crianças e os adolescentes não falham na escola por esta lhes ensinar coisas difíceis de aprender, mas porque o que aprendem na escola não lhes interessa. Por isso é que as situações de ensino precisam de ser analisadas do ponto de vista de uma ecologia da atenção. A sala de aula deve ser concebida como como um eco-sistema da atenção. Será possível criar este eco-sistema no ensino à distância? No seu livro sobre a figura do pedagogo Joseph Jacotot, Le maître ignorant, o filósofo francês Jacques Rancière descreve e analisa uma acção pedagógica dirigida essencialmente para a “emancipação intelectual”. A função essencial do mestre (potencialmente ignorante) não é o de explicar conteúdos, mas exercer sobre os alunos a capacidade da atenção, seja por um comando imposto, seja estimulando o desejo deles. É para “um hábito e um prazer que se experimenta ao notar e fixar com atenção”, diz Rancière, que deve tender (atenção: ad-tendere, tender para) toda a experiência do ensino. Por isso é que a sala de aula é o lugar de uma experiência única, insubstituível, capaz, às vezes, de proporcionar uma experiência eufórica tanto ao “mestre” como aos alunos.

António Guerreiro

Fonte: Público

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