sábado, 8 de dezembro de 2018

Resistir em tempo de terror

Stanley Kubrick produziu e dirigiu, em 1980, um perturbador filme de terror intitulado The Shining, no qual Jack Nicholson desempenhou, de um modo magistral, o papel de Jack Torrance, um escritor, com problemas alcoólicos. 

Ao arranjar trabalho num misterioso hotel que, no auge do Inverno, permanecia isolado, Jack parecia ter encontrado também o tempo livre e a solidão que o ajudariam a escrever um livro. Porém, começou a ter visões e, aparentemente influenciado por uma presença sobrenatural, enlouqueceu, chegando mesmo a tentar assassinar a mulher e o filho. 

Ora, segundo creio, este filme de terror parece traduzir o que se passa actualmente em Portugal, no âmbito de vários ministérios, com particular destaque para a Educação e a Saúde. Para compreender os motivos que nos conduziram a este ponto é fundamental ter em consideração vários aspectos. 

I – a corte de Luís XIV. 

Os ministérios políticos que por aí proliferam transformaram-se num mundo obscuro, onde vão subsistindo milhares de funcionários politicamente arregimentados na situação. Ávidos de mostrar serviço e receosos de regressar à profissão de origem, procuram criar documentos e mais documentos, como se o mundo dependesse deles para continuar a sobreviver. Por isso, vociferam, “é bom que as leis durem pouco tempo e sejam substituídas por outras que já estão na forja”. 

Esta massa de burocratas foi, progressivamente, deixando de funcionar como um todo e hoje representa apenas um conjunto de partes divididas em gabinetes distintos, que em situações muito excepcionais lá são mobilizadas para a cerimónia do beija-
-mão. Enfim, eis a corte de Luís XIV, com as suas características intrigas palacianas e redes tentaculares, adaptada à actualidade nacional. 

II – a síndrome do gabinete. 

Isolados, estes funcionários públicos, que actuam como inspectores morais da Nação, perderam completamente a noção da realidade. Com a caneta, uma folha e meia dúzia de teorias estapafúrdias colhidas nas esotéricas escolas das ciências da educação que para aí proliferam as ideias brotam-lhes como cogumelos venenosos. “Iluminados” (Shining), começam a ouvir vozes: (“Olhai todos: este é o caminho do futuro”). Empreendedores, não têm dúvidas ou hesitações. Claro está, quem, ingenuamente, cai no erro de contraditá-los é visto como um incompetente, que cometeu o pecado mortal de não ter assimilado as admiráveis oportunidades da ambígua legislação, esse vasto mundo de indefinições onde pode caber tudo e precisamente o seu contrário, ou seja, nada... 

III – acelerar o futuro. 

“O futuro das competências está ao virar da esquina”, proclamam os teóricos da “nova educação”, como os gurus da auto-ajuda, os vendedores de banha da cobra, os videntes ou os cartomantes. Esse futuro será tão diferente do mundo que conhecemos que os saberes tradicionais de pouco ou nada nos valerão, afinal as profissões mudarão por completo. De que adianta memorizar datas, conhecer a tabuada de trás para a frente ou estimular a memória? A inteligência artificial obriga-nos a percorrer um admirável caminho novo. Não vale a pena dizer que esses trilhos conduzem à profunda ignorância, pois Eles jamais nos irão ouvir. Eles são como deuses e os deuses não se desmentem ou contrariam. Veneram-se, com as costas curvadas e os olhos postos no chão. 

Na verdade, ontem, como hoje, ninguém sabe como será o futuro. E ainda bem que assim é. No entanto, a sistemática desvalorização do conhecimento substantivo, da exigência, do trabalho e do estudo, em detrimento de um facilitismo reinante que permitirá a todos – sem excepção – concluir o 12.º ano (sem a mácula das dispendiosas retenções), implicará, numa perspectiva de médio e longo prazo, consequências catastróficas: agravamento dos desequilíbrios sociais e criação de uma sociedade constituída por indivíduos egoístas e incapazes, mas convictos de que são infalíveis e inquestionáveis e, por isso, mal preparados para lidar com a frustração e o insucesso próprios da vida. Cada vez mais, o berço determinará a posição social que se ocupa na pirâmide, por muito que as mais recentes leis (ditas) “inclusivas” sustentem o contrário e pretendam, utopicamente, acabar com todas as categorizações. Estes são, sem margem para dúvida, tempos de profundas exclusões. 

Por outro lado, os profissionais que perseguem a excelência, nos mais variados sectores do Estado, aqueles que de facto vivem com maior angústia toda esta trapalhada legislativa, sentem-se cada vez mais sufocados, desgastados e desmotivados, ao ponto de mal dormirem ou entrarem em processo de falência mental (burnout). 

É bom recordar que assassinar alguém não implica apenas sacar do revólver ou dissolver veneno na comida. Em Portugal, a excelência é cada vez mais destruída, privilegiando-se os arrivistas, capazes de lamber as botas a todos os focos do poder. Eles representam a face visível de um sistema podre, que esconde os doentes nas macas arrumadas a um canto do corredor e, entre outros exemplos, insiste em considerar as touradas como produtos culturais que importa financiar. 

III – o Leopardo. 

Giuseppe Tomasi di Lampedusa deixou-nos um dos romances mais notáveis que tive oportunidade de ler. O Leopardo, inicialmente recusado por várias editoras, desenrola-se na segunda metade do século XIX, na época da luta pela unificação de Itália. Em 1963, foi minuciosamente adaptado ao cinema por Luchino Visconti e ainda hoje tem uma “actualité brûlante”. 

A personagem central, D. Fabrizio, príncipe de Salina, um aristocrata italiano, consegue revelar a inteligência e a intuição suficientes – mas raras – para interpretar os sinais do seu tempo e perspectivar a agonia de uma civilização (que ele, enquanto nobre, representava), em detrimento da emergente, pautada pela afirmação da burguesia. 

Para além da solidez psicológica, D. Fabrizio toca-me profundamente, em especial pela sua capacidade de análise, isto apesar de estar dentro dos próprios acontecimentos, que, como quase sempre sucede, evoluem de um modo surpreendentemente vertiginoso e incontrolável. A consagrada máxima, inicialmente proferida por Tancredi (sobrinho e protegido de Fabrizio, futuro deputado a quem, reflicta-se, será prometida uma legação em Lisboa), tornar-se-á um dos lemas do príncipe de Salina, até aos últimos dias da sua vida: “É preciso que tudo mude, se quisermos que tudo fique como está”. E é isso que ele procurará fazer: garantir que, no novo mundo, o seu sobrinho (a quem ele ama como um filho) perpetue, embora de um modo renovado, o poder e o prestígio da família. 

Talvez esta lição de um homem, que sente a vida a esvair-se-lhe irremediavelmente das veias, possa ainda hoje servir-nos, de algum modo, nestes tempos em que assistimos ao inevitável estertor de uma civilização e ao nascimento de outra, que não augura nada de bom (“depois do Leopardo virão os chacais”). Neste momento, talvez a maior resistência que possamos oferecer aos comportamentos psicóticos daqueles que nos governam (não, já não é apenas uma questão de ignorância) deva passar pelo bom senso de, enquanto classes profissionais, recordar diariamente que aderir não significa participar... 

Num dos seus mais recentes livros (Homo Deus. História Breve do Amanhã), o historiador Yuval Noah Harari diz-nos que inteligência e consciência não são sinónimos. Talvez a segunda, individual, nos possa ainda salvar da falta de inteligência e dos comportamentos psicóticos daqueles que nos governam. Ainda iremos a tempo? 


Renato Nunes 
(renato80rd8918@gmail.com)

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