sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

"Imagine um almoço de família onde não há lugar para o nosso filho à mesa"

Francisco era um bebé lindo, louro e de olhos azuis. Aos três meses foi-lhe diagnosticada uma doença congénita - traqueomalácia - que lhe provocava dificuldade em respirar, tinha de dormir sentado e exigia tratamentos diários severos.


Joana era enfermeira e começou a perceber que havia um atraso no desenvolvimento global do filho, já tinha dois outros filhos e sabia como era. Aos quatro, cinco e seis meses não fazia coisas que um bebé deveria fazer.

No início pensou que isso poderia estar relacionado com a doença, mas aos dez meses, quando o filho ainda não se sentava, ela já tinha recorrido a vários médicos para lhe confirmarem aquilo de que suspeitava, que o Francisco era um bebé diferente.

E o diagnóstico chegou. Francisco tinha nascido com uma multideficiência que se traduzia num atraso no desenvolvimento global. Não se sabia porquê. "Foram feitos todos os testes genéticos e de hereditariedade à procura de uma identificação, mas nunca se conseguiu. O diagnóstico acaba por ser inconclusivo. Mas descobrimos que não é caso único, há muitos assim", explica.


"Foi um processo duro"

Chorou muito. Sentiu imensa tristeza, revolta nunca. "Ainda hoje choro, porque às vezes é desesperante estar sempre a lutar para mostrar à sociedade que são pessoas com direitos e deveres", diz. Na altura "foi um choque, apesar de estar à espera, não estava confirmado e havia uma esperança". Mas depois do choque inicial a aceitação foi imediata. "É evidente que com uma tristeza enorme, embora fosse enfermeira, não tinha noção do que era este mundo da deficiência, e é um mundo novo, uma experiência nova nas nossas vidas."

Francisco nasceu de termo e de cesariana, a multideficiência não era visível nem possível de ser percebida à nascença. Joana Santiago Pinto e o marido, Luís, tinham outros dois filhos, Jaime e Luís, um com mais seis anos e o outro com mais cinco do que Francisco. "O processo foi duro e difícil, mas sempre com espírito muito positivo. Eu e o meu marido pensámos logo da mesma maneira: vamos para a frente. É o caminho", conta, com a energia e a a garra que a caracterizam.

Já lá vão 20 anos. Francisco continua a ser "um menino lindo", diz embevecida, "não conheço ninguém mais feliz do que ele. É bem-disposto, tem um sentido de humor incrível, porque pensa e raciocina, é inteligente, mas há ali qualquer coisa naquele cérebro que não o deixa mostrar essa faceta. É um miúdo cheio de ternura, bondade..." As palavras vão-lhe escapando à medida que conta passo a passo o caminho que já percorreram até aqui.

O primeiro foi voltar aos médicos, a mais exames, à fase em que era preciso agir rapidamente para "responder às suas necessidades enquanto bebé para o desenvolver. Começou logo a fazer estimulação e terapias. Tudo foi acontecendo de forma muito positiva, mas com momentos de grande dificuldade", relembra. Joana e o marido foram a França consultar outros médicos, fazer testes genéticos e de hereditariedade, "mas nada apontou nesse sentido. Preocupava-me em saber se haveria alguma a que os meus outros filhos tivessem de estar atentos quando quisessem construir as suas famílias."

O resto não importava. Saber ao certo qual era a doença ou a síndrome "deixou de me interessar. Era preciso concentrar-me nele e nas suas necessidades", argumenta.

"Os irmãos eram pequenos e também precisavam muito da nossa ajuda, mas foram espetaculares e nunca fizeram perguntas, aceitaram o irmão, nunca o rejeitaram nem o esconderam. Levavam-no para todo o lado, os amigos iam lá a casa e nunca deixaram que a deficiência se interpusesse entre eles."

Esse foi o exemplo que Joana e o marido procuraram dar. "Ter um filho assim nunca nos inibiu de fazer o que quer que fosse", afirma. "Se era preciso irmos à rua, ele também ia. Fazia tudo connosco e foi essa a aprendizagem que os meus outros filhos tiveram."Um caminho nem sempre compreendido ou aceite por outros, até pela própria família ou pelos amigos. Joana conta, sem mágoa, que viveu muitas situações, que "doeram tanto". Mas diz que isso só aconteceu por "pura ignorância, não acredito que tivesse sido por maldade, eram família e sei que hoje adoram o meu filho e têm um carinho enorme por ele, mas na altura houve quem se tivesse afastado, penso que terá sido por não saber lidar com a situação. Outros nem se metiam, nunca perguntaram se precisávamos de ajuda. No início chocava-me imenso. Deixava-me triste. Hoje compreendo."

"A desmistificação da deficiência parte de nós, de quem está envolvido. Se a naturalidade partir de nós, as outras pessoas também serão mais naturais", diz Joana, que aconselha a quem está perante uma situação destas que "pergunte o que quiser. As pessoas têm o direito de perguntar e os pais o dever de responder. As pessoas têm de se sentir livres para questionar e perceber as situações, confrontar as mães, os pais, sobre o que o filho tem. Não é fingir que não se vê, que não se percebe que se consegue ajudar ou mudar alguma coisa no mundo da deficiência".

Classes sociais mais altas vivem de estereótipos, ter na família deficiência não fica bem

Joana, que deixou a profissão de enfermagem há três anos para se dedicar a tempo inteiro à associação e academia que criou para ajudar pais e jovens com deficiência, aprendeu com a vida que, "quanto mais informação as pessoas têm e mais inclusivas deveriam ser, menos o são também."

"Quanto mais alta é a classe social, pior. Foi uma coisa que aprendi. As classes sociais mais modestas são muito mais acolhedoras, muito mais família. As mais altas vivem de estereótipos, de fachada e de padrões. E ter um padrão de deficiência na família não calha nada bem. Não é bonito, não é convencional."

Porquê? A resposta surge disparada: "A deficiência não faz parte da sociedade, há muitos estereótipos do que é normal, saudável, perfeito. Tudo o que se consegue em relação a direitos tem sido tudo imposto, por exemplo as quotas de trabalho e a educação inclusiva nas escolas."

Joana fala da luta que travou ao longo dos anos para que Francisco frequentasse uma escola regular e pudesse interagir com todas as crianças e jovens, com ou sem deficiência. A ponto de, "quando ele tinha 2 anos andava no colégio dos irmãos, uma das professoras me dizer: no próximo ano serei diretora, pense no que vai fazer com ele porque aqui não pode continuar. Arranjei outra, vinha todos os dias do Estoril para Lisboa, mas com aquela professora ele também não ficava".

Mas este caminho de dificuldades, como lhe chama, não acabou com a chegada à primária. "Em reuniões de pais tive de ouvir que o meu filho não era bem-vindo naquela turma, com outros pais a dizerem-me que os filhos poderiam ser prejudicados porque o Francisco precisava de muita atenção."

Ouviu e aprendeu a lidar com estas situações. Ela e o marido sempre deram o exemplo aos outros filhos de que o irmão, apesar de diferente, era igual. Tinha direitos mas também deveres e obrigações. "O Francisco tem uma diferença, mas teve a mesma educação do que os meus outros filhos. É uma criança educada." Portanto, decidiu também que o caminho a seguir era o de explicar aos outros pais como poderia ser bom para os filhos brincarem com uma criança como ele. "As pessoas com deficiência intelectual são genuínas, fantásticas, não aprendem maldades ou a mentira. São puras, integralmente boas, não conhecem o mal. E isso é viver num mundo espetacular e giro de conhecer."

Mas dentro de portas e na própria família viveu e sentiu o que não queria, atos e gestos pequenos que se tornavam "mágoas tão grandes". "Imagine uma tarde de convívio com amigos em que às tantas percebe que o seu filho anda a ser chutado de um lado para o outro porque não têm paciência para ele. Ou num almoço de família não haver lugar para ele à mesa, ou no Natal receber um presente aberto e já sem pilhas, por acharem que ele nem ia reparar. Foram coisas que doeram tanto..." Hoje, reforça, "percebo que uma pessoa não faz isto por mal, faz por não ter noção do que é viver uma situação destas".

A barreira deixava de ser a deficiência para ser a própria sociedade, com os estereótipos de perfeição ou do que é normal. "Quanto maiores forem as barreiras a este nível, maior é a incapacidade e a dificuldade de a pessoa se integrar. Se começarmos por abolir estas barreiras, mais fácil será a inclusão e as oportunidades que poderemos dar a estas pessoas", defende.

Lê mal, mas vai ao YouTube e consegue tudo sobre música clássica e fado

Hoje com 20 anos e depois de tanta luta pela integração de Francisco, Joana sabe que não pode ter a certeza de que ele um dia terá um lugar no mercado de trabalho, que poderá desenvolver uma função, ou ter a certeza do que lhe vai acontecer no futuro quando ela e o pai um dia faltarem. Sabe que tem mais dois filhos, um com 27 anos e outro com 26, há dois anos o meu mais velho disse-lhe: "Mãe, não se preocupe, eu sei que tenho um irmão que vai precisar muito do meu apoio e estou cá para isso, não o vou abandonar."

Sabe que "vem de dentro. Só aos 13 anos, quando o mais velho deu um testemunho para um livro sobre o irmão, é que fiquei a saber o que ele pensava, quando vi chorei, ele dizia coisas que nunca nos tinha dito a nós. É extraordinário crescerem com esta realidade e terem aceitado com muita naturalidade, muito amor e carinho a situação do irmão".

Apesar de todas as terapias, "algumas fantásticas, não tenho dúvidas", Francisco mantém dificuldades motoras, as suas competências de autonomia são poucas. "Tem pouca motricidade fina, não consegue cortar um bife ou comer sozinho, temos de lhe preparar a refeição. Não toma banho sozinho, é descoordenado e não é capaz de o fazer, mas já se vai vestindo com ajuda. Isto quer dizer que no caso dele o processo motor tem sido muito mais lento do que o intelectual."

Mas Francisco vai surpreendendo, "ele acaba por revelar às vezes mais competências do que aquelas que acho que tem". Algumas desenvolve motivado pelos seus interesses. "Lê muito mal, mas chega ao computador, vai ao YouTube e na hora consegue tudo o que quer investigar sobre música clássica e fado, duas coisas que adora."

Andou sempre na escola regular, embora nunca tenha feito escolaridade, fez sempre o que eram os currículos específicos individuais (CEI). Teve algumas retenções. Neste momento está a fazer o percurso equiparado ao 11.º ano, "numa escola extraordinária, nunca vi nada assim, um exemplo de inclusão".A escola que é exclusiva na inclusividade

Francisco vem todos os dias do Estoril para Lisboa logo de manhã. Anda na Escola de Artes António Arroio, "não é que ele gostasse muito de artes, mas eu sabia da política de inclusão da escola e decidi inscrevê-lo".

Está ali há dois anos e "nota-se uma diferença imensa nele. O estar num meio social normal tem sido fundamental. Fechar estes jovens em centros onde só existem pessoas com deficiência não é a solução, não os desenvolve e pode fazê-los regredir", defende.

Na escola, Francisco não é autónomo, está na turma e tem sempre alguém a acompanhá-lo. O apoio dos outros é grande. A escola incute esse espírito nos alunos, há sempre alguns que são responsáveis por ele. Têm de o orientar, ajudá-lo a chegar às salas, a almoçar, etc.

É na sala de aula de olaria que o encontramos. De volta de uma peça feita por ele. Assim que nos vê acompanhados pela mãe, ri-se. Quer deixar logo o que tem em mãos, à frente na bancada tem um colega, e apresenta-o: "É o Xavier", sempre a rir, foca-se na máquina fotográfica." Onde é que compro uma máquina fotográfica?"A professora Mariana diz que a sua chegada à escola foi um exercício para todos, para ele e para os professores. Tiveram de o conhecer, houve muitas coisas que se foram experimentando. Tiveram inclusive de "cronometrar o tempo de concentração" para o integrar melhor nas tarefas. Na aula de cerâmica, uma das preferidas, tem o apoio-base de três professores. No ano passado, de mês e meio em mês e meio mudavam e "foi muito interessante porque cada um tinha uma abordagem diferente e ele ia respondendo", conta Mariana.

Para esta professora, não é só importante o que ele já é capaz de fazer, é importante a maturidade que tem vindo a atingir. "Não é só a tarefa, mas o perceber que o trabalho é seu, sentir-se feliz e orgulhoso e é isso que nós queremos com todos os alunos. Não é só ensinar, é o fazer e perceber que eu fiz isto, e está muito bonito, ou falhei, o que também é importante."

No meio de bancadas e armários com potes de engobe, tintas e barro, a turma vai desenvolvendo o trabalho que estava a fazer. Em ruído, música clássica, Francisco adora, mas não é por causa dele, "é habitual". Francisco passa para a sala seguinte, para a roda de olaria, onde trabalha o barro. O objetivo é fazer peças que depois tem de levar ao forno, pintar, etc. É esse processo que ele já aprendeu. "Há poucos dias fez umas peças e eu perguntei-lhe se eram taças para chá, ele disse que sim. E eu questionei-o de novo: não achas que são grandes? Ao que ele me respondeu: não, eu decidi que são taças de chá. E esta atitude já é muito importante", conta a professora Mariana.

É a atitude dele em relação ao seu trabalho. "Eu gosto da Mariana", diz Francisco a rir. O professor Fernando vai-lhe dizendo: "Olha para a tua peça, agora tens de fazer aquela parte do fundo, tens de colocar na vertical, lembras-te?" E Francisco faz, apesar de mudar constantemente de assunto. "Já está bom, estou farto", responde ao professor. "Não, mais um bocadinho de força. Queres fazer aquela textura que fizeste há bocado na outra peça? Lembras-te? Pega com força no garfo e começa a enrolar..." A peça rola na roda da olaria. E já está. Depois dali, vai a secar ao forno e é pintada.

Ele consegue cativar-nos, aprendemos imenso

A professora Elsa aparece na sala e confirma que a roda foi uma ótima aposta, que agora tem de treinar mais, em casa ou numa oficina.

Neste ano já tem o nome numa série de peças, recentemente teve de apresentar o projeto das taças de chá ao diretor do Museu de Cerâmica. "Com ajuda, mas tem de o fazer como os outros", explica a professora Inês, de educação especial.

Na sala de aula, apresenta as colegas, Joana, Sara, Carolina, Sofia e Violeta. Joana chama-lhe a atenção. "Temos de fazer que trabalhe connosco. Temos de interagir, mas ele consegue cativar-nos, aprendemos imenso com ele", conta Joana.

Muitas vezes é ele que lhes traz as notícias do dia. "Então, quando há greves, sobretudo de transportes, ele sabe sempre tudo", confirma a colega, de 18 anos, que o conhece há dois. Por isso, diz, "ele acaba por ser muito autónomo também, quando quer estar sozinho está sozinho".

A professora Elsa informa que ele vai fazer neste ano formação em contexto de trabalho (FCT) e que terá uma prova de aptidão no final. A prova talvez fique para o próximo ano, "a não ser que ele ainda nos surpreenda mais neste ano", diz.Não há toques, à hora certa os alunos saem das aulas para o intervalo. Os professores também, no corredor o diretor da escola, professor Rui Madeira, não tem dúvidas de que "é uma escola exclusiva na inclusividade. Temos uma tradição grande no trabalho com realidades diversas, por exemplo no ensino de alunos surdos".

Quando a escolaridade passou do 9.º para o 12.º ano, a escola percebeu que teria uma palavra a dizer na integração de alunos que estavam a sair das escolas de referência e que não tinham para onde ir. Hoje, dos 1270 alunos, 166 estão referenciados, a maioria com síndrome de Asperger, autismo, alguns com dislexia e três com dificuldades motoras, em cadeira de rodas.

Os currículos de cada um são adaptados às disciplinas e às suas necessidades, o ano curricular é dividido, para não haver sobrecarga nem peso para os alunos, o que poderia ser contraproducente. No final, a escola dá dupla certificação, secundário ou na área profissional.

Mas, afinal, o sucesso da inclusão nesta escola parece não ter segredo. Basta trabalhar em equipa, professores, alunos, assistentes operacionais, etc. Talvez a sensibilidade das artes como linguagem universal ajude na comunicação.

Fonte: DN

Sem comentários: