terça-feira, 27 de novembro de 2018

Turmas que juntam alunos de vários anos fintam queda da natalidade

De um lado da sala, as crianças praticam o T acabado de aprender, pouco depois de terem ficado a conhecer uns sinais matemáticos em forma de cruz e de travessão. As somas e subtrações virão apenas mais tarde. Do outro lado, os colegas tentam resolver uma já complexa conta de dividir escrita na ardósia. Pode parecer estranho, mas estamos a falar de alunos da mesma turma e nem sequer de uma escola do interior do país: estamos na Moita, a 40 quilómetros de Lisboa. As chamadas turmas mistas, que juntam alunos de vários anos na mesma sala, começaram por ser notícia por serem um fenómeno relativamente raro, mas hoje passaram a ser a norma em muitas escolas do 1.º ciclo para fintar a quebra da natalidade.

Todas as escolas do interior contactadas (...) reconhecem que têm de recorrer a esta solução, que também já é usada junto a grandes cidades e que o antigo presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) David Justino classificou de "chaga social" e um dos maiores problemas para o sucesso escolar. E mesmo as que ainda não têm turmas multinível sentem já os efeitos do inverno demográfico, em especial com a chegada neste ano das crianças nascidas em 2012, quando pela primeira vez, desde que há registos, o país desceu abaixo dos 90 mil nascimentos (89 841, uma queda abrupta de sete mil nascimentos em relação ao ano anterior, que marcou a chegada da troika).

"O fenómeno já era muito sentido no interior mas começa a ser sentido também no litoral. No meu caso, tinha sempre as salas completamente ocupadas e neste ano já tenho duas salas vazias na escola básica das Defesas, duas salas que no ano passado tinham alunos", conta Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas e diretor do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia. Ali ao lado, no Agrupamento de Escolas Manoel de Oliveira, no Porto, também há menos uma turma em relação ao ano passado. O relatório O Estado da Educação 2017, publicado esta semana pelo CNE, mostra que entre 2007-2008 e 2016-2017, o ensino básico perdeu 174 464 alunos (15,3%), dos quais 95 257 no 1.º ciclo (quebra de 19,2%), 39 060 no 2.º ciclo (menos 15,2%) e 40 147 no 3.º ciclo. Em 30 anos, mostram os dados da Pordata, o ensino básico (até ao 9.º ano) perdeu cerca de 600 mil alunos (ver infografia).

Mas o que começa agora a marcar algumas escolas do litoral - embora muitas digam ao (...) que mantêm o mesmo número de turmas do 1.º ciclo do ano passado - já se sente nas escolas do interior há muito. "Mas de facto batemos no fundo este ano", reconhece Manuel António Pereira, diretor do Agrupamento de Escolas de Cinfães e presidente da Associação Nacional de Diretores Escolares. "Todos os anos anteriores da última década perdemos alunos. Neste ano temos 81 alunos no 1.º ciclo, no ano passado eram 95, em 2015 eram 109. Isso nota-se também no número de turmas na escola dos 2.º e 3.º ciclos, que há pouco tempo eram 35 e agora são 27. Isto traz problemas na gestão do parque escolar e pode trazer também no número de professores necessários". Não havendo alunos, formam-se turmas mistas. "É a solução possível, caso contrário teríamos turmas com menos de dez alunos."

Uma "solução possível" que começa a cobrir boa parte do país, de norte a sul, segundo dados fornecidos (...) por Filinto Lima. Começando no Algarve, onde por exemplo o Agrupamento de Escolas de Lagoa tem apenas uma turma em cada uma das suas escolas do 1.º ciclo, subindo para o Alentejo, onde no Agrupamento de Elvas, em cinco turmas, quatro são mistas, passando para o centro e norte, onde o modelo se generalizou. "Temos duas escolas do 1.º ciclo e nas duas temos turmas mistas. Numa delas, no ano passado tínhamos apenas uma mista e duas turmas normais, mas neste ano já temos duas mistas." José Rocha Martins, o diretor do Agrupamento de Escolas de Lamego, até admite que esta não é a solução ideal, "o mais favorável seria ter alunos de um único ano por sala", mas o despovoamento dos últimos anos e as regras do Ministério da Educação a isso obrigaram.

Em Vila Nova de Foz Coa, as turmas mistas não são exclusivo do 1.º ciclo e houve anos em que o número de alunos já obrigou a utilizar o modelo no secundário. Ao todo, o agrupamento, que vai do pré-escolar ao 12.º ano, tem hoje 700 alunos, "menos do que os que tínhamos nos anos 90 apenas no secundário", conta um membro da direção. "Isso obriga a recorrer mais a turmas mistas, até no secundário, como já aconteceu noutros anos."

"Somos uma família"

"As pessoas têm tendência a concentrarem-se junto dos sítios onde estão os serviços e os locais que não os têm ficam cada vez mais desertos." Este poderia ser o discurso que um qualquer autarca do interior, mas neste caso é do diretor de um agrupamento de escola às portas de Lisboa, o da Moita, onde as três escolas básicas têm cerca de 30 alunos cada, todos em turmas mistas. Uma delas, a do Penteado, uma pequena aldeia do concelho, esteve mesmo para fechar há dois anos. "Salvou-se mesmo à justa", conta Leonor Ventura, professora na escola há mais de uma década e que este ano ficou com os 2.º e 3.º anos. "Só continuou aberta porque houve muita procura numa outra escola básica da vila, a Moita n.º 2, onde os novos alunos só teriam o turno da tarde. Os pais pediram então para que as crianças viessem para aqui e dizem-nos que estão muito contentes. Somos uma família, aqui têm um acompanhamento personalizado e são felizes", emociona-se.

E do que gostam mais as crianças? "Do recreio!", gritam, em uníssono e espontâneos, os alunos. Só depois lá vem um tímido "e estudar...". Quando perguntamos ao professor dos 1.º e 4.º anos se os pais não estranham que se juntem crianças de níveis completamente diferentes, Ricardo Conduto responde expedito com uma estatística: "Nos últimos anos não tínhamos sequer cinco alunos no 1.º ano, este ano inscreveram-se nove. No ano passado, ao todo, tinha oito alunos, este ano tenho 18. Acho que é a maior prova de que os pais estão satisfeitos." O método de trabalho é simples e serve de introdução a este texto. Enquanto os alunos do 4.º ano trabalham e resolvem exercícios - "já têm maior autonomia", explica o professor -, é dedicado mais tempo aos alunos do 1.º ano.

Apesar de Manuel Borges, o diretor do Agrupamento de Escolas da Moita, também garantir que os alunos não saem prejudicados - "tivemos três reprovações há três anos no 4.º ano, mas todas a pedido dos encarregados de educação", sublinha -, os especialistas mostram muitas dúvidas em relação a este modelo. Maria João Valente Rosa, diretora da Pordata, alerta que as escolas têm de criar projetos pedagógicos para assegurar que as turmas multinível não geram desigualdades. "E uma coisa é certa, nestes projetos as crianças não podem ser cobaias e tem de ser sempre benéfico para elas. E as soluções de escolas a todo o custo não interessam, tem de se pensar nos alunos e dar-lhes oportunidades iguais."

Paulo Machado, especialista em demografia e coordenador de uma investigação sobre o que as autarquias têm vindo a fazer para combater as perdas populacionais, vai mais longe e considera que o recurso a turmas mistas tem "impactos menos positivos, ou mesmo negativos". "Importa realçar que à heterogeneidade esperada e normal de um grupo de trabalho de um mesmo ano de escolaridade juntar-se-á, na solução das turmas mistas, uma outra heterogeneidade decorrente da coexistência de anos de escolaridade distintos dentro de uma mesma sala de aula (objetivos programáticos diferentes, idades diferentes)." Segundo David Justino, no início de 2017 existiam 226 turmas mistas frequentadas por cerca de três mil alunos. Número para os quais o Estado da Educação também aponta.

Os dois especialistas falam da vantagem de um outro modelo, já usado em muitas cidades, principalmente do interior. "A criação dos centros escolares, de modo a criar massa crítica por ano de escolaridade, e com possibilidade de acesso a recursos (biblioteca, ginásio, outros) que de outro modo não existiriam em escolas com menos alunos, parece ser uma alternativa mais competente", defende Paulo Machado,

A esperança nos imigrantes

Os relatos são pouco animadores e o horizonte não parece muito mais soalheiro. Pelo menos para as escolas - Filinto Lima fala mesmo de "um tsunami" demográfico que pode ter reflexos nos próximos anos -, porque o Ministério da Educação desdramatiza e aponta a imigração como um dos fatores que pode ajudar a equilibrar o sistema de ensino. Em respostas enviadas (...), o gabinete de Tiago Brandão Rodrigues garante que o número total de turmas se mantém em linha com anos anteriores, muito à conta da redução do número de alunos por turma e do saldo migratório positivo, como mostram as estatísticas demográficas publicadas ainda este mês.

O governo recorda que as projeções demográficas e de impacto nas escolas têm por tendências demográficas e escolares os anos anteriores. "Assim sendo, tem de facto em conta a quebra demográfica muito significativa que ocorreu no período da austeridade e cujos efeitos serão sentidos, ao longo desta década, sucessivamente nos vários ciclos. Pelo mesmo motivo, não têm em conta que, com a retoma económica e as crises noutras zonas do mundo, o saldo migratório já se inverteu e estamos atualmente a receber muitos novos alunos, de várias partes do mundo e, em maior proporção, do Brasil e da Venezuela, além de famílias portuguesas que retornam. Efetivamente, esta migração também tende a concentrar-se em certos territórios e não noutros, o que faz que a redução visível em certas regiões seja compensada por acréscimos noutros territórios." Procura de imigrantes sentida, por exemplo, por Manuel Borges no agrupamento da Moita.

Mas, também aqui, Paulo Machado deixa um alerta: "É insensato pensar-se que os movimentos imigratórios poderão compensar a perda demográfica observada." Já Maria João Valente Rosa lembra que a relação direta da demografia com o número de alunos só é válida com taxas de escolarização de 100%, o que apenas acontece no primeiro ciclo. Quando chegamos a níveis mais avançados, como o secundário, isso já não é assim. "Há realidades diferentes no país, há zonas onde muitas escolas do 1.º ciclo já fecharam, e há outras, em especial em zonas urbanas, onde a procura é muito superior à oferta, onde há muitas crianças à procura de lugar nas escolas." Argumentos de Maria João Valente Rosa, que entende que este pode ser o momento para se pensar numa "reafetação de meios no território".

Fonte: DN por indicação de Livresco

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