quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Eles não vêem. Mas fotografaram

Marta quer que se saiba que os cegos também dormem de olhos fechados. Graciete que é possível não ver e ser uma mestre na cozinha. José queria fotografar a vida e o pós-vida. Que imagem de si próprio e do mundo tem quem não vê? Hoje é Dia Mundial da Visão.

Quando lhe perguntaram o que queria fotografar, José Sobreira não pensava noutra coisa senão numa imagem que falasse dos filhos. Perdeu-os para o cancro, o rapaz aos 34 anos, a rapariga aos 28. José ficou cego três meses depois. Foi o trauma, disseram os médicos. José Sobreira é um dos participantes do projecto Imagine Conceptuale do Movimento de Expressão Fotográfica (MEF), que nos últimos três anos trabalhou com 63 pessoas com deficiência visual, entre cegueira congénita, adquirida ou baixa visão. “A ideia era levar a produção artística, o contacto com a arte e a aprendizagem sobre alguns movimentos estéticos relevantes a um grupo de pessoas com maior dificuldade no acesso às imagens”, explica Luís Rocha, um dos fundadores do MEF. Nem todos os participantes traduziram nas suas imagens as influências dos movimentos artísticos a que foram expostos, sobretudo os mais velhos. Mas no horizonte esteve sempre algo que faz já parte da identidade do MEF: “Facilitar o acesso destas pessoas às artes visuais e fomentar as suas formas de expressão pessoal e artística, em particular por meio da fotografia. O objetivo maior era a inclusão.”

Após as sessões sobre história de arte, os participantes discutiram em conjunto o que gostariam de representar em fotografia. Quereriam falar de si, dos outros? Fixar um autorretrato, ilustrar o mundo? “Tentámos que o tema não fosse só a cegueira, mas a também a liberdade, a amizade ou os sonhos”, explica Luís Rocha. José Sobreira, 62 anos, estava determinado a fotografar “a vida e o pós vida”. E por isso ao lado da reprodução fotográfica de fotografias do rosto de cada um dos filhos está um objeto que ficou desse depois: a cadeira de rodas do filho, a trança de cabelo da filha.

Todas as fotografias do projeto estão agora reunidas na exposição Ver com Outros Olhos, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A acompanhar cada fotografia está um pequeno texto, escrito na primeira pessoa pelos participantes-fotógrafos. Coube-lhes a eles fotografar, na maioria das vezes recorrendo a um comando remoto, que escondiam na mão. A câmara estava à sua frente, num tripé. Recebiam indicações de posição em relação à luz, por exemplo, mas o processo queria-se o mais autónomo possível. Alberto Biom, guineense, queria fotografar a casa com que sempre sonhou na Guiné, uma viagem que não foi possível fazer. Acabou por construir uma estrutura de uma casa em madeira. E disparou. "Eu pensava que não conseguia tirar uma fotografia eu mesmo (sic). Saiu muito bem, não foi?" 

É no documentário que encerra a exposição, da autoria de Luís Rocha e Tânia Araújo (fundadores do MEF e coordenadores do projecto) que temos acesso ao processo de realização das fotografias. É assim que ouvimos e vemos Alberto Biom, surpreendido com as suas competências de fotógrafo. Ou que vemos a jovem Marta Jordão a alinhar com precisão fardos de palha que construíram uma cama onde se deitou a dormir: de olhos fechados. Ou que vemos Nuno Silveira a colocar metade de uma abóbora pintada de azul na cabeça. E ouvimo-lo: “Tinha medo de ir à casa de banho porque aparecia uma abóbora a tentar entrar pela janela”. Foi isso que quis representar. No caminho, descobriu que um cego também pode criar imagens: “Toda a gente tem uma visão. E as pessoas com deficiência visual não são excepção. Também têm uma visão do mundo”, explica no documentário.

“Eles não disparam ao acaso”, assegura-nos Luís Rocha. “A imagem pode não ser visível mas é construída, com memórias, sensações, impressões”, diz. José Soudo, fotógrafo e professor de História da Fotografia, explica no documentário um pouco mais: “Há um sentir que é mais que o visual. Nós vemos e depois interpretamos. Eles interpretam para depois sentirem. Sentirem, verem.” Cada fotografia da exposição é ainda acompanhada de uma imagem táctil, em alto-relevo: uma tradução da fotografia original para poder ser vista por deficientes visuais. Para que o invisível se torne visível. As duas versões vão ser publicadas em livro no final de Outubro.

O Movimento de Expressão Fotográfica (MEF) trabalha há quase 15 anos com a comunidade cega ou com baixa visão. No passado optaram por criar exposições de fotografia recriando um ambiente de escuridão, para que os normovisuais se sentissem na pele de quem não vê. “Esta é a primeira exposição com sensores tácteis nas fotografias”, explica Luís Rocha. “Pensámos o resultado final que incluísse ambos, cegos e normovisuais, porque os cegos não vivem num mundo de cegos, vivem num mundo normovisual.” Tânia Araújo explica que é também o projecto mais completo que realizaram até hoje, decorrente do financiamento e acompanhamento que tiveram do programa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social, da Fundação Calouste Gulbenkian. “Foi fundamental pela estrutura de aprendizagem, funcionou quase como um laboratório”, explica. E ajudou, afirma, a que a experiência fosse valorizada por quem participa. “Expor na Gulbenkian é a confirmação de valor para pessoas para quem a sociedade foi muitas vezes injusta”.

“As portas estão fechadas, mas eu entro”

Quando o professor Fernando Matos viu o anúncio da exposição Ver com Outros Olhos nas redes sociais pensou: “ Bingo, não podia ter vindo em melhor altura”. A turma de 10º ano do curso de fotografia da Escola Profissional Magestil, em Lisboa, tinha acabado de receber Mariana Neto, uma aluna amblíope. Por enquanto, Mariana, 16 anos, fotografa com o telemóvel, mas a escola está a tentar adaptar uma máquina fotográfica profissional para que inclua um monitor que permita a Mariana ampliar as imagens. Na exposição, Mariana descobriu outros fotógrafos como ela. Durante a visita, alguns colegas explicaram-lhe detalhes das imagens e fotografaram as zonas mais escuras para que Mariana pudesse ver mais de perto.

Os médicos não conseguem determinar ao certo o quanto a Mariana consegue ou não ver. Um quisto no cerebelo (detetado na reta final da gravidez) afeta-lhe a visão e a motricidade. “Felizmente a zona cognitiva nobre do cérebro está preservada”, explica (...) a mãe, Sofia Neto. “Ela tem fibras ópticas mortas. Todo o processo visual se faz de uma forma muito lenta, a partir do momento em que ela vê até o cérebro processar a informação. Em determinados ângulos não vê e não tem visão periférica de todo. Mas também não vê apenas formas e contornos, vê objectos, define-os e consegue identificá-los”, esclarece Sofia Neto.

Para a mãe, designer gráfica, ex-docente e artista plástica, o que Mariana não vê pode até ser uma vantagem: “A baixa visão da Mariana pode potenciar outras capacidades. Acho que a sensibilidade particular dela pode estar expressa na fotografia”, diz. Mariana gosta sobretudo de fotografar candeeiros e sombras. “No outro dia fui ao Jardim do Campo Grande e fui eu que vi a minha sombra no chão, e quis fotografar”, conta (...). O telemóvel já estava na mão, pronto para nos mostrar a sua conta de Instagram, que abriu há um ano. “Esta é uma selfie com o meu pai. Fomos ao jogo do Benfica e eu quis tirar uma foto ao estádio”, diz-nos.

O pai ofereceu-se para tirar a fotografia. “Eu disse: ‘sou eu que estou a tirar o curso de fotografia, se quiseres podes ajudar!’” Concluída a formação em fotografia, diz, vai fazer um curso de DJ. “A Mariana surpreende sempre”, diz (...) Carla Fragata, coordenadora do curso de fotografia. E recorda o que a aluna lhe disse logo na segunda aula, quando perguntou aos alunos se tinham um lema de vida. “As portas estão fechadas, mas eu entro”, respondeu Mariana.

Fonte: Público

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