Introdução
Investigadores como Kim e colaboradores (2024) têm sublinhado a importância de incluir a escrita na Ciência da Leitura. Estes autores têm defendido especificamente que a Ciência da Leitura se encontra incompleta sem a Ciência da Escrita. Porquê? A resposta a esta questão é muito simples. Décadas de investigação mostram a interdependência entre as habilidades de leitura e escrita (Graham et al., 2021; Katusic et al., 2009; Kim et al., 2024). O que isto significa exactamente? Ler e escrever não são processos autónomos. Constituem duas aptidões que se desenvolvem de forma simultânea, influenciando-se e complementando-se mutuamente. A título de exemplo, a leitura beneficia o desenvolvimento de diversas competências fundamentais para uma escrita clara e eficaz, como o vocabulário, o conhecimento gramatical e a compreensão das estruturas textuais. Por sua vez, a escrita consolida o conhecimento do significado das palavras, o domínio das regras gramaticais e a capacidade de compreender e organizar textos de forma lógica, dando origem a um ciclo de aprendizagem que beneficia tanto a leitura quanto a escrita.
De acordo com o Modelo de Literacia Interactiva e Dinâmica (Kim, 2020; figura 1), a leitura e a escrita baseiam-se essencialmente nas mesmas habilidades, a saber:
Habilidades de literacia lexical: referentes à capacidade de reconhecer, compreender e produzir palavras de forma eficiente. Estas competências envolvem processos cognitivos essenciais para a leitura e escrita, tais como a codificação, o armazenamento e a recuperação de informações relacionadas com a fonologia (sons), a ortografia (a forma escrita) e a semântica (significado) das palavras.
Habilidades de literacia discursiva: envolvem a capacidade de compreender e produzir textos coesos e coerentes. Segundo Kim (2020), estas habilidades baseiam-se nas habilidades lexicais, embora também dependam do domínio do vocabulário, das regras gramaticais e das estruturas sintáticas, além de exigirem conhecimento prévio e competências cognitivas de nível superior, como a capacidade de estabelecer inferências.
Habilidades de linguagem oral: habilidades como o vocabulário e as competências sintáticas são essenciais para analisar a informação linguística e construir uma representação mental do texto (isto é, compreendê-lo). Além disso, as competências de linguagem oral são fundamentais para expressar e comunicar as ideias do texto de forma clara e coerente.
Capacidades cognitivas de nível superior: As capacidades cognitivas de nível superior permitem estabelecer conexões entre as proposições do texto e o conhecimento prévio dos leitores, assim como associar as diferentes partes do texto para estabelecer inferências e preencher lacunas de informação. Neste sentido, estas exercem um papel fundamental na organização das ideias do texto de forma lógica e coerente.
Auto-regulação: Segundo Kim (2020), a leitura e a escrita dependem da auto-regulação, que envolve a capacidade de monitorizar e controlar os processos cognitivos. Leitores auto-regulados conseguem estabelecer metas, monitorizar a compreensão do texto e ajustar estratégias de leitura conforme necessário. Da mesma forma, escritores auto-regulados destacam-se na definição de objectivos, planeamento, auto-avaliação, monitorização, mantendo a atenção e a persistência, além de usar estratégias adequadas de escrita.
Conhecimento de conteúdo e discursivo: O conhecimento de conteúdo ajuda a integrar as informações do texto e a construir uma representação mental sólida, que facilita a compreensão. Além disso, fornece material para a escrita e permite um acesso mais rápido ao conteúdo. Por sua vez, o conhecimento discursivo envolve a compreensão das estruturas textuais e das características linguísticas associadas, assim como os procedimentos e estratégias para a produção de texto. Conhecer a estrutura textual facilita a identificação de informações relevantes e a compreensão das relações entre as partes do texto. Na escrita, esse conhecimento, frequentemente denominado «conhecimento de estrutura de género», ajuda a organizar e apresentar ideias de forma coerente, alinhada com o género e os objectivos de escrita.
Competências sócio-emocionais: As competências sócio-emocionais, como crenças, sentido de auto-eficácia e motivação, influenciam a forma como os leitores se envolvem com a leitura e a escrita. Estas afectam diretamente a disposição dos alunos para aprender, perseverar perante as dificuldades e acreditar na sua capacidade de progredir. Por exemplo, um aluno motivado tende a envolver-se mais activamente nas tarefas, o que frequentemente se traduz em melhor desempenho, tanto na leitura como na escrita.
Neste sentido, a literatura científica sobre a leitura e a escrita indica que estas habilidades não devem ser ensinadas de forma isolada, mas sim de maneira integrada. Mais especificamente, a investigação revela que o ensino integrado da leitura e da escrita proporciona oportunidades significativas de aprendizagem, promovendo um desenvolvimento equilibrado e eficaz em ambas as áreas.
Estudo de Kim e colaboradores (2024)
Kim e colaboradores (2024) analisaram o impacto de um programa de instrução (SRSD1 Plus) focado no ensino integrado da leitura e escrita, na aprendizagem de alunos do primeiro e do segundo ano. O estudo envolveu a participação de 10 professores e 232 alunos de quatro escolas localizadas no sudoeste dos Estados Unidos.
Figura 1. Modelo de literacia interactiva e dinâmica (Kim, 2020)
Os alunos foram distribuídos em dois grupos: o grupo de intervenção, que foi exposto ao programa SRSD Plus, e o grupo de controlo, que manteve as práticas de ensino habituais. O programa foi composto por duas componentes: a componente de ensino da leitura e escrita, baseada no modelo SRSD (componente A), e a componente Plus (componente B). A estrutura, conteúdos e métodos de ensino abordados no programa estão apresentados na tabela 1.
Tabela 1. Estrutura, conteúdos e métodos de ensino do programa SRSD Plus
Os alunos foram avaliados antes e após a administração do programa SRSD Plus em três eixos diferentes:
1) Composição escrita de textos informativos e expositivos, incluindo:
- Qualidade da escrita: Extensão e clareza no desenvolvimento e organização das ideias;
- Produtividade/comprimento do texto: Número de palavras escritas;
- Planeamento: (a) planeamento da composição (i.e., medida em que o texto elaborado na folha de planeamento foi incorporado na composição final); (b) número de ideias relevantes; (c) organização estrutural das ideias do texto; (d) notas organizacionais (e.g., numeração, setas, símbolos e mnemónicas).
2) Conhecimento discursivo, a partir das seguintes questões:
- «O que fazem os bons escritores quando escrevem?»;
- «Porque achas que algumas crianças têm dificuldade em escrever?»;
- «Quando te pedem para escrever um texto para a aula ou como trabalho de casa, o que podes fazer para planear e redigir o texto?»;
- «Quando escreves, pensas se o teu professor vai conseguir entender o que escreveste?»;
- «Quando escreves, pensas se os teus amigos vão conseguir entender o que escreveste?»;
- «Por que razão as crianças escrevem?»;
- «Por que razão os adultos escrevem?»;
- «Quando escreves, relês o que escreveste? Se sim, porque o fazes?»;
- «Imagina que o teu amigo tem de escrever um texto informativo para uma aula. O que lhe dirias sobre as partes que um texto informativo deve ter?»;
- «O que mais dirias aos teus amigos sobre o que é importante considerar ao escrever um texto informativo?».
3) Competências de linguagem oral, transcrição e leitura de palavras, nomeadamente:
- Vocabulário: definição de palavras;
- Proficiência na organização ou combinação de frases;
- Soletração de palavras (proximais, quase distais e distais);
- Fluência de escrita: Copiar o maior número possível de frases em um minuto;
- Leitura de palavras.
Os alunos foram avaliados por colaboradores de investigação previamente treinados, num espaço silencioso da escola. Os avaliadores não tinham conhecimento do grupo a que os alunos pertenciam. As tarefas de composição escrita, ortografia e fluência foram realizadas em grupos de três a quatro alunos, enquanto as demais tarefas foram administradas individualmente.
Principais resultados:
- Os resultados evidenciam a eficácia do ensino integrado da leitura e escrita. O programa SRSD Plus produziu melhorias nas habilidades de escrita, conhecimento discursivo, planeamento, linguagem oral e ortografia dos alunos do primeiro e do segundo ano de escolaridade. No entanto, comparando os resultados do presente estudo com os obtidos num estudo anterior que aplicou o mesmo programa (Harris et al., 2023), os resultados observados por Kim e colaboradores (2024) foram globalmente inferiores. Segundo os investigadores, esta diferença pode dever-se ao facto de, neste estudo, o ensino da leitura e escrita ter sido realizado em grande grupo (turma), enquanto no estudo de Harris e colaboradores (2023), a instrução ocorreu em pequeno grupo. Esta poderá ter permitido maior individualização do ensino, resultando em efeitos mais expressivos.
- O programa SRSD Plus revelou impactos positivos na escrita de textos de opinião, principalmente na produtividade e qualidade da escrita. Embora a instrução tenha sido direccionada para a escrita de textos expositivos, os alunos mostraram capacidade para transferir as habilidades adquiridas para a produção de textos de opinião. Segundo os autores, esta transferência de conhecimento poderá estar relacionada com o ensino de estratégias comuns a ambos os tipos de texto, como a organização textual, a construção de frases claras e a inclusão de detalhes relevantes. Além disso, o ensino de estratégias de auto-regulação, vocabulário e ortografia poderá ter contribuído para esses resultados.
- Não foram observados efeitos significativos na leitura de palavras e fluência da escrita, apesar de o programa ter incluído treino específico nestas áreas. Este resultado pode ser explicado por dois factores. Em primeiro lugar, os alunos já apresentavam um nível de leitura dentro da média antes da implementação do programa, sem indícios de dificuldades em comparação com outros alunos, o que poderá ter limitado o potencial de melhorias adicionais nesta competência. Em segundo lugar, o tempo dedicado ao treino de fluência da escrita foi relativamente curto, somando 56-70 minutos durante o programa (8-10 minutos por sessão), o que poderá ter sido insuficiente para promover mudanças significativas nesta área.
Os resultados deste estudo mostram a eficácia do ensino integrado da leitura e escrita no ambiente de sala de aula nos primeiros anos de escolaridade. Embora a leitura e a escrita devam ser abordadas de forma independente, o ensino da leitura que não inclui oportunidades e práticas de escrita, tal como o ensino da escrita que não integra oportunidades e práticas de leitura, provavelmente prejudica a aquisição e desenvolvimento de ambas as habilidades. Os resultados deste estudo, aliados a uma vasta literatura sobre as relações entre leitura e escrita, sugerem que a Ciência do Ensino da Leitura (Kim & Snow, 2021) e os esforços políticos e de apoio à investigação devem considerar as conexões entre leitura e escrita (Graham, 2020; Kim et al., 2024).
Este texto é um resumo do artigo «The science of teaching reading is incomplete without the science of writing: A randomized control trial of integrated teaching of reading and writing», disponível aqui.