domingo, 5 de março de 2023

Quando a inclusão joga na equipa titular

Esta história é sobre igualdade. Mas também sobre bravura e sacrifício. Sobre resiliência e inclusão. É sobre atletas com deficiência que competem lado a lado com os que não a têm. Sobre clubes que lhes abrem a porta de forma incondicional. Sobre desportistas que não escolheram as limitações que têm, mas que escolhem todos os dias dar tudo para as vencer.

David tem 11 anos, é ponta de lança e louco pelo Sporting de Braga, já lá joga vai para seis anos. Tem umas chuteiras da pinta e bom toque de bola, até o cabelo lhe dá ar de craque. Em jogo, é uma “carraça” para os adversários, agressivo com e sem bola, não há jogada que dê como perdida e ainda é exímio a encontrar espaços livres para se desmarcar. Idolatra Cristiano Ronaldo e Ricardo Horta, o avançado que é hoje figura incontornável dos arsenalistas. David quer chegar a sénior, pelo Braga pois – “a não ser que me paguem muito para ir para outro clube”, diz, a rir-se muito -, tem o sonho de ser jogador profissional, igual ao de tantos garotos com esta idade. Esta história é sobretudo isso, a igualdade a fazer-se maior do que a diferença. E por isso só agora isto vem ao caso: David é surdo, nasceu assim, tal como a mãe e o pai, a irmã mais nova também, na família alargada são todos, mais de 20. Como vai treinar, não traz as próteses auditivas. Mas usa-as todos os dias. Consegue até oralizar algumas palavras. E em língua gestual fala que se farta. “Adoro futebol, adoro competir, quero ser uma estrela no Braga”, atira, em gestos, um sorriso delicioso cravado no rosto arisco.

São quase sete da tarde de terça-feira, dia de treino dos sub-12 no campo de Palmeira, o céu já se tingiu de negro, os “guerreiros do futuro”, como chamam em Braga aos jovens craques da formação, vão chegando a conta-gotas, vários fazem questão de se dirigir a David, trocam cumprimentos e gestos cúmplices. No início, a integração não foi tão fácil, o treinador lembra um miúdo “mais tímido”, no canto dele, pouco dado ao convívio. “Mas adotámos estratégias para o integrar, muitas brincadeiras, o jogo da sardinha por exemplo, e isso foi mudando”, recorda o técnico João Rodrigues, de 26 anos. E assim David é hoje “o oposto” do que era quando chegou, “está muito bem integrado e sempre na brincadeira”. O resto também foi um processo. Mas João e a restante equipa técnica arranjaram sempre soluções. Para explicar as questões mais táticas, recorrem muitas vezes a desenhos. Com o tempo, foram também desenvolvendo uma espécie de código gestual próprio, para facilitar a comunicação em questões mais práticas do jogo. David vai exibindo uma parte desses gestos. Um é para pressionar o médio defensivo, outro para os cantos, outro ainda para quando a bola vai ao centro, há uma série deles. “Este ano, por exemplo, como passámos ao futebol de nove, começou a colocar-se a questão do fora de jogo e no princípio foi mais difícil. Mas ele é muito inteligente e facilmente percebe o que estamos a transmitir.” A chegada recente de Tomás, um estagiário surdo que reforçou a equipa técnica, também veio ajudar.

A prova do sucesso está nos números: na época passada, David somou 23 golos e 12 assistências. Aqui e ali, há uma situação mais inusitada – como a do árbitro que se esqueceu que era surdo e lhe passou um ralhete por não ter parado a bola -, mas, exceção feita a um treinador adversário que chegou a ser desagradável por David ter rematado já com o jogo parado, a presença do jovem craque é encarada com naturalidade. Entre os pais dos companheiros de equipa, então, nem se fala. “Muitos pedem para o David entrar e torcem para que ele marque. Até já aprenderam a bater palmas em língua gestual”, orgulha-se Márcio, sem esconder o sonho de ver o filho fazer-se o primeiro futebolista profissional surdo em Portugal. “O caso do David [um atleta surdo integrado numa equipa de ouvintes] ainda é raro, mas espero que seja inspirador, que abra portas a outros, que mostre que é possível.” O próprio treinador admite que o jovem guerreiro tem grande margem de progressão e “pode chegar a sénior”. Também por isso, Márcio não se cansa de elogiar a equipa técnica. “Aqui ajudam-no a ter estratégias para estar ao mesmo nível dos colegas. Era importante que outros fizessem o mesmo.” E voltando à parte em que esta história não é sobre a diferença: “Sentes-te igual aos outros, David?” Resposta lesta. “Sinto. Igual. Igualzinho.”

Correr só com 9% de visão

No caso de Carolina Duarte, 33 anos, atleta do clube Joma, em Queluz, as limitações vieram com o tempo. Encontramo-la junto à pista de atletismo do Centro de Alto Rendimento do Jamor. Está com o equipamento de treino, tem uns brincos cor de pérola que sobressaem nas orelhas a descoberto, um cabelo muito curto e fininho (mais adiante perceberemos porquê), uma sombra azulada sobre os olhos semicerrados. Com quatro anos, começou a usar óculos porque via mal, mas nada de crítico. Mais tarde, por volta dos 13, teve de sair do ténis, apesar de jogar “mesmo muito bem”, porque deixou de ver a bola. Virou-se então para o atletismo. Começou no Belenenses, depois passou por Sporting e Marítimo. Mesmo com a visão a decrescer a ritmo acelerado, ainda chegou a representar Portugal ao mais alto nível: primeiro, nos Europeus de 2012, nas estafetas (4×400 metros), depois na Taça da Europa de 2013.

Mas, se no desporto tudo parecia ir de vento em popa, na vida profissional os problemas visuais iam-lhe trazendo dissabores. “Licenciei-me em Gestão, mas não conseguia uma oportunidade na minha área. Quando ia fazer os testes psicotécnicos nunca conseguia acabar a tempo porque já via mal. Além disso, já tinha assim este cabelo esquisito, e acho que isso também levava a que as empresas não me quisessem contratar.”

Às dificuldades em arranjar trabalho, juntaram-se os problemas pessoais. Até dar por ela num lugar difícil. Em 2013, desistia do atletismo e rumava a Londres, em busca de dias melhores. Algures por essa altura, a visão voltou a piorar significativamente. Hoje, vê apenas 9% (no total dos dois olhos), desistiu de conduzir, ver filmes e séries está fora de questão. No resto, vai-se virando. Para ler mensagens escritas, por exemplo, socorre-se das funções de acessibilidade que lhe permitem aplicar um zoom astronómico. “Tenho o tamanho de letra sempre no máximo, mas mesmo assim não consigo ler. Tenho de carregar três vezes para aumentar ainda mais.” E nisto mostra-nos o visor com um zoom tal que surgem apenas três ou quatro palavras. Mas não cai nunca num tom miserabilista. Pelo contrário, ri-se que se farta, tem sempre uma piada na manga.

Voltemos a Londres e à fuga desesperada que acabou a ser um retomar de rumo. Foi lá, num hospital oftalmológico da cidade, que soube o que realmente tinha: uma mutação genética que se traduz numa perda progressiva da visão – aparentemente estabilizada nos 9% – e no cabelo sui generis. A descoberta serviu-lhe de passaporte para voltar a representar Portugal, agora no desporto adaptado. Com belos resultados a registar. Já foi campeã da Europa nos 100 e nos 400 metros e vice-campeã do Mundo nos 400. Nem por isso abdica de participar nas provas regulares, ao serviço do Joma (onde ingressou já depois de ter sido mãe, em 2021). Mesmo com dificuldades à mistura. “Para manter uma postura correta, tenho de contrariar a tendência natural e olhar para onde não vejo. É difícil. E depois, sobretudo em pista coberta, quando corro na pista de fora, há sempre o perigo de ir contra as grades. Felizmente, nunca aconteceu.” E volta a rir com vontade.

Carolina é um dos raros casos em Portugal de praticantes de atletismo que, cumprindo os requisitos para entrar nas competições do desporto adaptado, continuam a cumprir o calendário das provas regulares. Curiosamente, o Joma integra uma outra atleta com deficiência, no caso intelectual. Trata-se de Cláudia Santos, 34 anos, que se dedica ao salto em comprimento. Não sabe ao certo quando foi diagnosticada, nem conhece os detalhes dos resultados dos testes que lhe fizeram na altura. Sabe, isso sim, que a coordenação no treino não é a melhor, que por vezes demora “muito tempo” a perceber o que treinador lhe tenta explicar, que as outras atletas saltam todas perto dos seis metros e ela não (o recorde pessoal é de 5,41 metros). “Faço muitos saltos nulos. E noutros a corrida é uma porcaria”, reconhece, sem pruridos. Por isso, representa Portugal nas principais provas de desporto adaptado. Tal como Carolina, é atleta de alto rendimento, esteve nos Jogos Paralímpicos de Tóquio – “mas não me correu bem, estava lesionada”, justifica-se -, espera ir a Paris no próximo ano e em 2028 a Los Angeles. Mas não abre mão de competir em tudo o que são provas do calendário regular. “E às vezes até consigo bons resultados, quando me corre bem e as mais fortes não vão.”

Paulo, a exceção à regra

Para Paulo Francisco, a deficiência intelectual foi só outro obstáculo a somar-se a um princípio de vida particularmente pesado. Ainda catraio, foi retirado aos pais e levado para uma instituição, em Faro. Foi lá que se estreou a jogar andebol. “Numa equipa que era de uma associação de estudantes”, conta, sem dar mais pormenores. Passado uns tempos, os pais conseguiram reaver a custódia e ele mudou-se para Tavira. Foi então que entrou no Vela, como lhe chama. O Clube Vela Tavira, para sermos mais exatos. E não mais de lá saiu. Pelo meio, foi progredindo a nível escolar, concluiu até o 12.º ano pela via do ensino especial, com muito apoio especializado à mistura, mas diminuta evolução na aprendizagem. Jura até que só aprendeu realmente a ler e a escrever já depois de terminar o Secundário. Os testes que entretanto fez atestam as dificuldades: “desenvolvimento intelectual num nível inferior” e um QI abaixo da média foram algumas das conclusões.

Mas isso não o impediu nunca de ir progredindo no andebol. Hoje, é ponta na equipa sénior do Vela e joga na segunda divisão nacional. “Está a correr bem. Às vezes jogo dois minutos, outras vezes cinco ou seis. Temos tido algumas derrotas, mas vamos continuar a lutar para ganhar jogos”, diz, garantindo que não se sente diferente de nenhum dos outros companheiros. Entretanto, há dois anos, mais coisa menos coisa, foi ajudar a equipa de andebol adaptado do clube num torneio e o selecionador da modalidade (na vertente adaptada) não perdeu a oportunidade de o convencer a representar a equipa das quinas. “Lá estou mais livre para jogar como eu quero. E sinto que consigo ajudar os meus colegas a melhorar.”

Isto porque Paulo é um dos poucos elementos da seleção que consegue incluir-se numa equipa dita normal. Cristiano Valente, o gestor desportivo do Vela, que é também o treinador adjunto da seleção nacional de andebol adaptado – que por sinal foi campeã da Europa no ano passado -, explica porquê. “É raro. Normalmente as equipas sacodem a água do capote, até porque estes jovens pautam-se muitas vezes pelo mau comportamento. No caso do Paulo não. É um miúdo bem comportado, que não se mete em problemas, que às vezes se baralha a falar, mas que a nível competitivo cumpre, dá uma boa resposta na posição de ponta. E nós também o tentamos ajudar. Ele antes não tinha autonomia para se safar num aeroporto, por exemplo, e na última viagem que fizemos ao Porto incentivámo-lo a desenrascar-se sozinho. Também o incentivamos a ler. E claro, nunca ninguém o rebaixa, seja por que motivo for.”

Ryan prova que é possível

E se mais exemplos são precisos de que certas deficiências não têm de ser bilhete direto para as equipas de desporto adaptado, muito menos barreira insuperável na luta pelos sonhos, há, em Portugal, um exemplo maior disso mesmo. Chama-se Ryan Manoogian, é americano e, desde o início da época, líbero do Fonte do Bastardo, a equipa de voleibol dos Açores que já por duas vezes foi campeã nacional da modalidade e que esta época segue na vice-liderança da principal prova nacional. Ryan nasceu surdo profundo, apesar de nenhum elemento da família o ser, usou aparelho desde cedo e aos dois anos e meio já fazia terapia da fala. Hoje, consegue oralizar de forma bastante percetível. “E sou muito talentoso a ler os lábios”, conta-nos. O facto de ter frequentado sempre escolas “normais”, como lhes chama, possivelmente também ajudou. Só sentia mais dificuldades em acompanhar os professores que falavam muito rápido.

Já no desporto, sentiu-se sempre como peixe na água. “Fui sempre atlético e rápido. E nasci numa família competitiva, que adora desporto, por isso praticar desporto, para mim, foi sempre algo natural.” Passou por uma série deles. Futebol, futebol americano, basquetebol, hóquei. Com dez anos, começou no vólei de praia. “Fui criado na zona costeira, em Los Angeles, onde era fácil caminhar até à praia para jogar vólei com os meus vizinhos. Depois, aos 12 anos, entrei para a equipa da minha escola, de voleibol de pavilhão. Foi quando começou a minha verdadeira paixão.” Mais tarde, soube da existência de David Smith, o primeiro americano surdo a tornar-se jogador de voleibol profissional, e percebeu que lhe podia seguir as pisadas. Assim foi.

Aos 30 anos, traz no currículo passagens por alguns dos principais campeonatos europeus. “Empenho-me sempre em provar a mim próprio que, mesmo sendo surdo, consigo jogar bem. E faço questão de garantir que a minha surdez não atrapalha a química da equipa.” Duvida até que se tivesse saído melhor caso não fosse surdo. Por isso, para os pequenos Davids que andam por aí, que ousam derrubar barreiras e sonham fazer história, deixa uma mensagem que lhe serviu a ele próprio de farol. “Não deixem que a deficiência ou a surdez vos trave. Isso não é o que realmente importa. Trabalhem duro, nunca desistam. E vão ser recompensados.”

Fonte: Notícias Magazine com fotos

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