A escola é uma instituição em que apenas se pergunta às pessoas: “O que sabes?” e muito poucas vezes: “O que sentes?”
(Miguel Santos Guerra, No Coração da Escola)
“O problema dos professores e o problema dos alunos é o mesmo problema, o que convida a uma relação de aliança, e não de confronto”
(Rui Canário, O que É a Escola)
Pode ser o esboço de um ensaio de compreensão sobre o estado de sítio docente. Pode ser o início de uma metamorfose nos modos de pensar e de agir na profissão. Pode ser o início de uma política de emancipação e libertação? De autorização e de construção de uma imagem social revalorizada?
O que sentes, tu, professor, quando ninguém se importa com as tuas dúvidas, com as tuas dores físicas ou sentimentais, quando tens de dizer bom dia, vamos então lá à lição número 55, o sumário é os sistemas lineares em ambientes caóticos, e quase ninguém escreve, quase ninguém liga, falam para o lado e para trás e a tua alma sangra e no teu peito bate um coração aflito, quase desesperado e exangue, quando tens de sorrir mesmo quando te apetece chorar, quando tens de encarcerar todos os teus sentimentos e apenas se te permite que sejas a máquina pensante, a máquina que ensina, a máquina.
Quando há mais de 15 anos andas a correr de escola em escola, qual pastor errante, e te humilhas face à máquina e à ordem social, tu que tens de aguentar com todo o mal do mundo, porque és o agente de Estado, o 007, o salvador da guerra civil de todos contra todos, o super-homem e supermulher que tem a obrigação moral de salvar a humanidade.
Quando estás encerrado numa carreira que não passa de um simulacro. E onde a maioria dos docentes está prisioneira no 4.º escalão. Quando observas que quase metade dos professores está refém nos quatro primeiros escalões e só uma minoria pode aspirar a chegar ao último. Quando sentes que a avaliação do desempenho é um mecanismo gerador de uma competição injusta e iníqua.
O que sentes, tu, aluno, quando o professor faz o ditado da matéria e tu nada entendes, quando és humilhado de mil e uma formas, quando tens uma nota que não corresponde aos teus saberes, quando a tua princesa encantada voou dos teus olhos e foi morar para longe de ti, ou quando o amor lateja intensamente e tem de ficar preso numa impossibilidade, quando o professor tem de dar o programa todo e tu te ficas apenas pela metade. Em nome dos exames, do acesso ao ensino superior, da meritocracia, da justiça e da igualdade de oportunidades, da igualdade de frequência, da igualdade de sucesso. E da inclusão.
O que sentes quando a (im)pura lógica burocrática e racional, formal e vazia se mostra distante face a um apelo lancinante de uma doença, às vezes terminal, sempre dolorosa, sempre crítica. O que sentes quando vês os mais de 100.000 jovens que tiveram de emigrar para buscar o "pão que o diabo amassou", quando vês claramente visto que a escola hoje já não dá qualquer certeza. Quando já não é o elevador social que foi no templo glorioso da produção das elites. E quando vês que, ao fim de 17 ou 20 anos de estudo contínuo, só consegues aceder a um lugar laboral numa qualquer caixa de supermercado, a ganhar 1000 euros brutos.
Triste é este mundo dos sistemas, triste é este sistema máquina, triste é esta vida desumana, triste é esta separação, esta alienação. Esta desesperança. Sem luz no fundo do túnel. E isto mereceria mil manifestos, mil denúncias, mil protestos. Ou um "ensaio sobre a cegueira", ou um "ensaio sobre a lucidez". Mas nem isso temos já. Resta-nos pensar, agitar, acordar. Agir e interagir para construirmos outros pequenos mundos. Habitáveis. Humanos.
E é a esta luz que temos de ver o movimento e a agitação de milhares de professores. Cansados dos bloqueios na progressão da carreira. Indignados face à indiferença de uma política que se alimenta de uma retórica que já não é sustentável. Que ignora que não é possível viver assim: numa paragem que parece eterna e que adia os sonhos de uma vida. Numa profissão desgastante, muitas vezes impossível e socialmente desvalorizada. Apesar de ser a matriz e origem de todas as outras. Apesar de possuir um valor incalculável que só os professores (e os alunos) sabem.
Precisamos de construir uma “arca de aliança” entre professores e alunos. Entre professores, alunos e pais. Uma aliança inscrita no território onde os professores podem ter uma voz poderosa e reconhecida. Porque é aí que o reconhecimento e a autoridade podem ser retomados. E onde uma nova “política” pode emergir.
José Matias Alves
Fonte: Público
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