quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Porquê a CIF, se a investigação, os especialistas e os pais não a aconselham?


Face à proximidade da publicação da nova legislação da Educação Especial e à influencia decisiva da Classificação Internacional de Funcionalidade, Capacidade e Saúde (CIF) na definição das orientações educativas para este sector da educação, continua a ser importante termos uma postura crítica (favorável ou não!) e continuar o debate sobre as directrizes que nos são impostas. Neste contexto, penso que continua a ser pertinente a leitura de um texto, publicado em 24/07/2007, pelo Professor Luís de Miranda Correia (http://www.educare.pt/) onde, de forma clara, concisa e fundamentada, coloca várias objecções a esta subjugação da educação à CIF.


A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, através da sua Subcomissão para a Igualdade de Oportunidades, levou a cabo, em 16 de Julho de 2007, uma audição parlamentar subordinada ao tema "As crianças e a igualdade de oportunidades: Riscos múltiplos, necessidades especiais", em que o objectivo era o de tratar, de uma forma plural, na perspectiva dos Direitos Humanos, "o enquadramento das questões que se colocam às crianças com necessidades especiais", tendo por base os depoimentos de vários especialistas (professores universitários, médicos, psicólogos, educadores, terapeutas, técnicos de serviço social e pais) e o contributo da assistência.

Se o objectivo era, como referi, o "encontrar de bases sólidas" para a prevenção das necessidades especiais, um dos pontos quentes foi, sem dúvida, a reacção à pretensão do Ministério da Educação em usar a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, vulgo CIF, para, como se infere, no que presumo ser um anteprojecto de Decreto-Lei, no seu artigo 8.º (Processo de avaliação), Ponto 3, vir a usá-la para avaliar e elaborar o programa educativo individual de um aluno que tenha sido "referenciado" para a "educação especial". E foi-o, dado que a esmagadora maioria dos presentes, entre prelectores e assistência, se opuseram ao uso da CIF por várias razões, de entre as quais se destaca o objectivo para que foi criada.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a CIF serve para descrever "a forma como os povos vivem com as suas condições de saúde... A CIF é útil para se compreender e medir os resultados de saúde..." (ICF Home page, 2006). Mais, num comunicado emanado da OMS (Press Release, WHO/48), pode ler-se, "A CIF põe em pé de igualdade todas as doenças e condições de saúde, sejam quais forem as suas causas...Têm sido feitos estudos científicos rigorosos para assegurar a aplicabilidade da CIF... no sentido de se poderem recolher dados fidedignos e comparativos no que diz respeito à saúde de indivíduos e populações". Ora, pese embora o trabalho de alguns investigadores estrangeiros em tentar adaptá-la para ser usada com crianças e adolescentes, não se sabendo se para fins educacionais, se para se poder obter informação adicional acerca da problemática de uma criança ou adolescente, não existe ainda qualquer tipo de investigação fidedigna que aconselhe, de momento, a sua utilização.

Mais, numa carta que enviei à Senhora Ministra da Educação, em 2 de Julho de 2007, tive o ensejo de lhe transmitir a opinião de vários especialistas de renome mundial (alguns deles envolvidos na adaptação da CIF para crianças e adolescentes) a quem pedi parecer.

Eis alguns excertos desses pareceres.

O professor James Kauffman diz que "A minha opinião é a de que o uso da CIF na educação especial constituirá um erro sério, mesmo trágico. As definições clínicas/de saúde e as educacionais não são de forma alguma apropriadas para os mesmos processos e profissões". "Penso que as pessoas deste país (Estados Unidos), de um modo geral, concordariam que as definições clínicas/de saúde não são apropriadas para a educação especial. Isto não quer dizer que elas sejam totalmente irrelevantes, mas são em si insuficientes para definir as condições sob as quais a educação especial é necessária."

O professor Daniel Hallahan afirma "Penso que as discapacidades são condições intra-individuais, e que qualquer definição estará incompleta quando não reconhece os efeitos dessas discapacidades na realização educacional."

O professor William Heward diz "Na minha opinião, seria prematuro, no melhor dos sentidos, usar a CIF como base para determinar a elegibilidade para serviços de educação especial, sem que os resultados da investigação demonstrassem que tal mudança poderia afectar os alunos que actualmente estão, ou não, a ser atendidos. Neste momento, não vejo como o seu uso poderá ajudar quer na clarificação do processo de identificação de metas e objectivos para os alunos com NEE quer na solidificação dos serviços de que esses alunos são alvo."

No que respeita aos especialistas envolvidos na adaptação da CIF para crianças e adolescentes, a professora Judith Hollenweger, representante da área de educação na "Rehabilition International" e uma das promotoras do uso da CIF, acha de momento prematura a sua utilização, uma vez que refere que "A CIF não foi criada para substituir outros processos de categorização, como por exemplo o "autismo", mas sim para providenciar informação adicional... Como é usada esta informação adicional e como devem ser elaborados instrumentos práticos que a possam tornar real e aplicável são questões ainda por responder. Se o seu governo está a planear a substituição dos processos actuais de conceitualização das necessidades especiais (discapacidades) no sistema educativo, aconselhá-lo-ia, peremptoriamente, a que se opusesse ".

A professora Barbara LeRoy, vice-presidente da "Rehabilitation International", afirma que "a CIF é na verdade dirigida para a vivência comunitária e categorizações de saúde e não (para) a educação".

O professor Rune Simeonsson, destacado investigador e cientista, bem conhecido no nosso país, diz com alguma estupefacção: "Estou surpreendido por nem eu nem qualquer um dos meus colegas do grupo de trabalho da OMS CIF-CA ter sido convidado para dar sugestões sobre este assunto, mesmo sabendo-se que eu apresentei várias vezes a CIF/CIF-CA em Portugal, incluindo num organismo governamental... Estou muito decepcionado pelo facto de Portugal ser talvez o primeiro país a usar a CIF de uma forma compreensiva, embora ela não tenha sido usada de uma forma correcta."

Por último, o professor Peter Evans, responsável pela área da educação especial na OCDE, diz que, "embora tenha acompanhado algum do debate que respeita à CIF, não possuo um conhecimento profundo sobre o que exactamente será proposto na versão destinada às crianças e adolescentes que, penso, será anunciada no final deste ano. Pese embora este constrangimento, não estou seguro de qual o valor que a CIF-CA terá para as crianças. Será com certeza muito orientada para a saúde."

Todo este conjunto de afirmações não me deixa qualquer dúvida de que a CIF não deve ser usada em educação, a menos que se produzam resultados baseados em trabalhos de investigação fidedignos que venham aconselhar a sua utilização para fins educacionais. Assim sendo, não é difícil compreender-se que será deveras prematuro, e nada ético, o uso da CIF para fins educacionais, correndo-se o risco, se o fizermos, de estarmos a cometer "um sério erro, mesmo trágico", que, com certeza, poderá "trazer consequências desastrosas para os alunos com NEE".

Perante este cenário, cuja base científica, pedagógica e social, demonstrada quer na audição parlamentar quer nos pareceres de reputados cientistas, não nos ficam quaisquer dúvidas quanto ao erro que será cometido se se avançar com a utilização da CIF para fins educacionais. E, sendo assim, seria uma humilhação para todos nós, cidadãos portugueses, publicar uma lei que pretendesse reorganizar os serviços de educação especial com base no uso da CIF, à revelia de toda a investigação existente até à data.Tudo o que atrás ficou dito fará ainda mais sentido se atentarmos às conclusões da 2802.ª sessão do Conselho "Educação, Juventude e Cultura", realizada em Bruxelas, em 24 e 25 de Maio, onde a Senhora Ministra da Educação e o Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Educação estiveram presentes, e onde, no que diz respeito à tomada de decisões políticas fundamentadas em matéria de educação, o Conselho refere que se deve "levar mais longe o desenvolvimento da capacidade de investigação em matéria de educação" e se deve "intensificar, nas políticas e práticas educacionais, o recurso a tal investigação e a outros factos comprovados", sublinhando que "para serem eficazes, as políticas a longo prazo nos domínios da educação e da formação têm de assentar em elementos solidamente comprovados".

A CIF, se vier neste momento a ser usada na educação, contradirá tudo isto.

Contudo, continuo a acreditar no bom senso dos nossos governantes, das senhoras e senhores deputados que, como eu, ouviram na Assembleia da República (audição parlamentar) a voz do descontentamento científico, pedagógico e humano, da Senhora Ministra da Educação que, como professora universitária, sabe quão importantes são os resultados da investigação, e do Senhor Primeiro-Ministro que, amiúdes vezes, tenho ouvido realçar a importância da investigação e da ciência quer no que respeita ao crescimento do país quer no que concerne à criação de um Estado onde impere a igualdade de oportunidades.

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