Em entrevista exclusiva ao Healthnews, Mariana Rodrigues, investigadora do CIIE, comenta os alarmantes dados do estudo CARING: 1 em cada 8 jovens já pensou que "a vida não vale a pena". A especialista defende um plano nacional urgente e aponta a interseção entre mal-estar psicológico e mundo digital como o risco mais negligenciado
HealthNews (HN) – O estudo CARING revela que 1 em cada 8 jovens portugueses já experienciou pensamentos de que “a vida não vale a pena ser vivida”. Perante esta prevalência, qual é a mensagem mais urgente que gostaria de transmitir a pais, educadores e decisores políticos?
Mariana Rodrigues (MR) – Isto constitui uma evidência da elevada prevalência da ideação suicida entre adolescentes e jovens em Portugal, tal como documentado pelo estudo CARING. Esta prevalência revela que não estamos perante casos isolados, mas sim diante de um fenómeno silencioso, presente na vida de muitos adolescentes e jovens. Perante estes dados, é urgente transmitir a pais, educadores e decisores políticos que, por um lado, é essencial normalizar a conversa sobre sofrimento emocional e pensamentos suicidas com jovens. A investigação é clara ao demonstrar que perguntar diretamente sobre ideação suicida não aumenta o risco, mas antes cria oportunidades para identificação precoce e acesso a apoio adequado. Falar abertamente diminui o estigma, promove segurança emocional e valida experiências que muitos jovens vivem em silêncio. Por outro lado, torna-se imperativo reconhecer que a prevenção do suicídio juvenil não é apenas responsabilidade dos serviços de saúde mental, mas sim uma tarefa coletiva que exige respostas estruturais e concertadas. A literatura internacional e o próprio relatório CARING mostram que a ideação suicida resulta de uma combinação de fatores psicológicos, relacionais, escolares e digitais. Assim, a prevenção deve envolver: as famílias, que necessitam de apoio para desenvolver competências de comunicação e reconhecimento de sinais de alerta; as escolas, que devem ser capacitadas para implementar programas de promoção do bem-estar e intervenção precoce; as plataformas digitais, cujo papel na exposição a conteúdos nocivos e na amplificação do sofrimento psicológico exige maior responsabilização; os decisores políticos, que devem garantir recursos humanos, políticas públicas e estratégias nacionais coordenadas. A mensagem central é simples e urgente: os jovens não podem continuar a enfrentar o sofrimento emocional sozinhos. Precisamos de criar sistemas de cuidado, proximidade e proteção que respondam às suas necessidades reais e ao contexto digital em que vivem.
HN – Os resultados apontam para três fatores de risco principais: mal-estar psicológico, exposição a conteúdos online prejudiciais e cyberbullying. Na sua perspetiva, qual destes fatores representa o vetor de risco mais desafiante ou negligenciado atualmente?
MR – Os resultados do CARING mostram que o sofrimento emocional geral, a exposição a conteúdos online relacionados com suicídio e automutilação, e as experiências de cyberbullying são os fatores que evidenciam uma associação mais significativa com a ideação suicida na juventude. Na minha perspetiva, o fator de risco mais desafiante e mais frequentemente negligenciado é precisamente a interseção entre mal-estar psicológico e exposição a conteúdos online potencialmente prejudiciais. Vivemos num contexto em que grande parte do lazer juvenil decorre no espaço digital, sobretudo em redes sociais, o que significa que muitos jovens em sofrimento emocional procuram na Internet explicações, validação ou formas de lidar com a sua dor. Quando o fazem, encontram frequentemente conteúdos que normalizam a automutilação, romantizam o sofrimento ou apresentam estratégias nocivas, amplificando estados mentais já fragilizados. A literatura científica tem sido consistente ao documentar ligações entre a utilização intensiva de plataformas digitais, a exposição a experiências e conteúdos nocivos online e indicadores mais baixos de saúde mental, incluindo depressão, ansiedade e ideação suicida. Esta vulnerabilidade é intensificada pelo próprio processo de desenvolvimento biológico, psicológico e social da adolescência, que torna a população juvenil mais suscetível à influência externa, à validação social e à pressão dos pares. Trata-se, portanto, de um risco frequentemente subestimado porque ocorre em ambientes digitais opacos aos adultos, de difícil monitorização e onde a lógica algorítmica e comercial das plataformas nem sempre se alinha com a proteção de menores. Quando os modelos de negócio privilegiam o envolvimento acima da segurança, os jovens em situação de vulnerabilidade emocional podem ser facilmente conduzidos a cadeias de conteúdos que reforçam e aprofundam o seu mal-estar psicológico e social.
HN – O estudo identifica que jovens mais velhos, do sexo feminino e com estatuto socioeconómico mais baixo apresentam níveis mais elevados de ideação suicida. Que medidas específicas e direcionadas recomenda para apoiar estes grupos em particular?
MR – O CARING mostra que jovens mais velhos, do sexo feminino e com estatuto socioeconómico mais baixo estão associados a níveis mais elevados de ideação suicida. Para estes grupos, podem ser implementados programas de prevenção do suicídio e de promoção de competências socioemocionais, articulados com equipas de psicologia escolar e com acompanhamento e encaminhamento contínuo. A evidência mostra que programas escolares bem desenhados podem reduzir comportamentos suicidários e aumentar a capacidade de intervenção de professores e assistentes técnicos. Para raparigas, importa integrar abordagens específicas de género que trabalhem autoimagem, violência de género (incluindo online) e expectativas sociais, bem como a relação entre redes sociais, comparação social e autoestima. Para jovens provenientes de contextos socioeconómicos mais desfavorecidos, é fundamental garantir acesso a apoio psicológico gratuito, reforçar equipas multidisciplinares nas escolas situadas em territórios vulneráveis e articular serviços de saúde, educação e proteção social. A investigação demonstra que as desigualdades socioeconómicas estão associadas a níveis mais elevados de ideação suicida e de sofrimento emocional na adolescência.
HN – Do lado protetor, o CARING destaca a importância de fatores como a autoestima, a atividade física e o sono. Como é que as comunidades escolar e familiar podem promover ativamente estes recursos individuais no dia a dia dos jovens?
MR – O projeto CARING mostra que autoestima elevada, prática regular de atividade física, sono de qualidade e atividades ao ar livre estão associados a menor ideação suicida. Estudos longitudinais reforçam que uma autoimagem positiva, a prática de exercício e uma boa ligação à escola são fatores protetores robustos contra ideação e tentativas de suicídio. Por sua vez, dormir recorrentemente mal e pouco é um preditor do aumento da ideação suicida. Na prática, isto implica que, nas escolas, existam horários e cargas de trabalho que não comprometam o tempo de sono, uma oferta regular de atividade física atrativa, incluindo modalidades não competitivas para além das da disciplina de Educação Física, e o desenvolvimento de projetos inclusivos e colaborativos de promoção de competências de autoestima, pertença e empatia. Na família, implica estabelecer rotinas de sono regulares, sem dispositivos digitais no quarto à noite, incentivar atividades ao ar livre e desportivas, valorizar as pequenas conquistas do dia a dia e promover um clima comunicacional em que os jovens se sintam vistos e escutados.
HN – O papel da família e dos amigos como “âncoras psicológicas” é fundamental. De que forma é que o ambiente digital, frequentemente acusado de afastar as pessoas, pode ser também uma ferramenta para fortalecer estas relações de apoio e de qualidade?
MR – O ambiente digital é frequentemente acusado de contribuir para o isolamento social, mas pode também ser usado como uma extensão das relações de apoio, ao possibilitar canais de comunicação que colmatam distâncias e asseguram a manutenção da qualidade dos laços mais importantes, especialmente em contextos de migração, famílias separadas ou estilos de vida que dificultam o contacto presencial. O ambiente digital amplia ainda o acesso a redes de suporte formais e informais, onde uma pessoa pode encontrar validação e apoio de pares que enfrentam problemas comuns, como luto, ansiedade ou condições de saúde, para além do seu círculo imediato. Possibilita também a criação de meios digitais que facilitam pedidos de ajuda, anónimos ou não, a psicólogos, profissionais de saúde e serviços de apoio.
HN – Uma das recomendações do estudo é um maior controlo e responsabilização das plataformas digitais. Que tipo de regulamentação ou cooperação com as empresas de tecnologia considera mais viável e eficaz para criar ambientes online mais seguros em Portugal?
MR – O CARING sublinha a necessidade de maior controlo, responsabilização e regulação das plataformas digitais. A nível europeu, o Digital Services Act (DSA) já estabelece obrigações acrescidas para plataformas de grande dimensão na proteção de menores, incluindo avaliação de riscos sistémicos, mitigação de conteúdos prejudiciais e desenho mais seguro de serviços. Países como o Reino Unido aprovaram legislação que obriga à remoção rápida de conteúdos de suicídio e automutilação, responsabilizando empresas em caso de incumprimento; e a Dinamarca avançou para a proibição de acesso às redes sociais a menores de 15 anos. Em Portugal, considero urgente reforçar a implementação nacional do DSA com foco específico na proteção de menores, incluindo auditorias regulares às plataformas mais usadas por jovens. É igualmente essencial exigir mecanismos eficazes de verificação da idade, a limitação de funcionalidades aditivas (scroll infinito, autoplay) para menores e sistemas de reporte de conteúdos de autoagressão rápidos e transparentes. Importa também estimular acordos de cooperação entre escolas, serviços de saúde e plataformas para a remoção efetiva de conteúdos online potencialmente prejudiciais — desde violência e discurso de ódio a incentivos ao suicídio e outros comportamentos de risco — bem como para o desenvolvimento de ferramentas de sinalização e encaminhamento para linhas de ajuda.
HN – Considerando os dados alarmantes, qual considera ser o primeiro e mais importante passo a dar, de forma concertada, para transformar estas evidências científicas em ações concretas de prevenção do suicídio juvenil em Portugal?
MR – Atendendo aos dados recolhidos junto de uma amostra representativa de jovens, podemos assumir que existe um problema grave que exige ação concertada. Diria que o primeiro passo passa pela definição e implementação de um plano nacional integrado de prevenção do suicídio juvenil, que una saúde, educação e proteção social, articulando o que hoje existe de forma fragmentada. Este plano deve incluir o reforço imediato de recursos humanos em saúde mental nas escolas, garantindo psicólogos em número suficiente e equipas multidisciplinares capazes de identificar precocemente sinais de sofrimento emocional e responder de forma continuada. É igualmente necessário capacitar pais, professores e outros profissionais para desenvolver competências que lhes permitam reconhecer sinais de risco, falar sobre suicídio de forma segura e encaminhar para ajuda especializada. É urgente reforçar a educação digital no currículo, promovendo junto de crianças e jovens o conhecimento, as competências e as atitudes necessárias para lidar com os desafios trazidos pelas tecnologias digitais e participar plenamente numa sociedade diversa e altamente mediatizada. Por fim — e essencial, atendendo à centralidade que as tecnologias ocupam no quotidiano juvenil — é urgente garantir maior controlo, responsabilização e regulação das plataformas digitais, assegurando ambientes online mais seguros, transparentes e adequados ao desenvolvimento de crianças e jovens.
Fonte: Sapo por indicação de Livresco